Ziv Aviram: o aparelho de leitura para cegos pode ser acoplado aos óculos (Nir Elias/Reuters)
Da Redação
Publicado em 29 de março de 2018 às 05h00.
Última atualização em 1 de agosto de 2018 às 15h26.
Alcançar a categoria de unicórnio — quando a empresa é avaliada em 1 bilhão de dólares ou mais — é o sonho de muitos empreendedores de tecnologia. O israelense Ziv Aviram já realizou esse feito duas vezes. A primeira foi com a Mobileye, empresa voltada para o reconhecimento de imagem aplicado a carros autônomos, fundada por ele ao lado do professor de computação Amnon Shashua. A Mobileye foi vendida por 15 bilhões de dólares para a fabricante de chips Intel em 2017. Agora, Aviram, com o mesmo sócio, alcança o topo da cadeia alimentar da inovação com a OrCam, empresa que fabrica um pequeno dispositivo capaz de modificar a vida de deficientes visuais ao reconhecer rostos, ler textos e identificar cores.
“Eu e meu sócio procuramos por tecnologias capazes de beneficiar a humanidade em grande escala”, diz Aviram. “Fizemos isso com a Mobileye e esperamos fazer o mesmo com a OrCam.” Utilizar a tecnologia para fazer o bem é uma das razões do sucesso de Aviram. Quando foi fundada em 1999, a meta inicial da Mobileye não era desenvolver o sistema para ser usado nos carros autônomos, mas criar uma tecnologia capaz de diminuir o número de acidentes e de mortes no trânsito. Aviram e Shashua estavam olhando para um mercado maior do que o das montadoras. No limite, envolvia todos os motoristas e pedestres do mundo. Foi isso que levou a Intel a desembolsar uma bolada pela empresa no ano passado e se posicionar como um ator relevante no setor de transportes.
Na OrCam, a dupla israelense está olhando para um mercado potencial de 1 bilhão de pessoas no mundo. E isso não envolve apenas deficientes visuais mas também idosos e pessoas com dislexia, que podem se beneficiar do aparelho, chamado de MyEye 2.0. Menor do que uma caixa de fósforos, o dispositivo pode ser acoplado aos óculos e funciona da seguinte maneira: o usuário utiliza o dedo para apontar o objeto que precisa ser reconhecido, como uma caixa de sabão em pó em um supermercado, uma nota de dinheiro ou uma peça de roupa. Ao reconhecer o movimento do dedo, o aparelho responde, por meio de áudio, do que se trata, indicando a marca do sabão, o valor da nota ou a cor da roupa. Ao passar por um rosto previamente cadastrado, o sistema diz o nome da pessoa — pode parecer banal, mas é um recurso que aumenta a sociabilidade dos deficientes visuais.
Um detalhe que impressiona: o MyEye funciona sem acesso à internet, ou seja, pode ser usado em qualquer situação e em qualquer lugar do mundo. Ele está disponível em 12 línguas, incluindo o português. Apontado para jornais, livros e revistas, o sistema também consegue ler textos de maneira fluída, com pausas e todas as pontuações. “Durante o desenvolvimento do produto, conversamos com os deficientes visuais e 90% deles pediram a capacidade de leitura. Isso muda o jogo completamente, pois eles podem ter agora acesso a qualquer obra ou livro já produzido, não só aos textos traduzidos para o braile ou previamente transformados em áudio”, afirma Aviram.
No Brasil, a OrCam é representada pela empresa Mais Autonomia. Como ainda é uma tecnologia nova e com produção em pequena escala, o MyEye tem um preço elevado. Custa por aqui 18 900 reais, valor que pode ser financiado em até 60 vezes por meio da linha de crédito de produtos e serviços de tecnologia assistiva do Banco do Brasil — para quem estiver interessado, é possível testar o aparelho na biblioteca do centro cultural Unibes, em São Paulo. “É um produto caro apenas para quem olha o preço, mas não é quando se olha o benefício que ele traz de dar poder ao deficiente visual”, diz Doron Sadka, sócio da Mais Autonomia. Esse aumento do poder também significa um ganho econômico, já que o aparelho, ao oferecer a capacidade de leitura, amplia a chance de inserção do deficiente visual no mercado de trabalho formal. Atualmente, no Brasil, há 54 000 deficientes visuais com carteira assinada, segundo dados do Ministério do Trabalho. É pouco perto do universo de pessoas totalmente cegas no país, cujo número é superior a 500 000, e de pessoas com grandes dificuldades de visão, um grupo que ultrapassa os 6 milhões, de acordo com o último censo demográfico, de 2010.
Com tamanho impacto, ninguém estranhou a avaliação da OrCam em 1 bilhão de dólares em fevereiro deste ano, depois de uma rodada de captação. Ao vender 3% de participação, a empresa levantou 30 milhões de dólares com investidores institucionais, como a companhia de seguros israelense Clal e o fundo de investimentos Meitav Dash, também de Israel. Desde que foi fundada em 2010, a OrCam já conseguiu mais de 80 milhões de dólares de investidores. Atualmente, a maioria dos 118 funcionários da empresa trabalha no setor de pesquisa e desenvolvimento. Em breve, a ideia é apresentar uma nova versão do MyEye capaz de reconhecer a voz do -usuário. Isso vai representar uma economia de tempo, pois não será mais necessário que o aparelho leia todas as informações. No caso de um cardápio, por exemplo, o usuário poderá perguntar ao sistema quais tipos de comida o restaurante oferece, e a resposta será algo como “carnes, peixes e sopas”. Se o interesse for por carnes, bastará pedir ao dispositivo para que detalhe as receitas.
Há uma expectativa de que a oferta pública inicial de ações da empresa aconteça daqui a um ano e meio. As estimativas do mercado apontam que a OrCam até lá poderá valer 2 bilhões de dólares. “Listar a empresa na bolsa não é uma meta, mas um estágio em seu desenvolvimento”, diz Aviram. Além da criação de uma nova versão de seu produto, a OrCam é ajudada pelo fato de que seu mercado é crescente em todo o mundo — sobretudo por causa do envelhecimento da população e de sua perda progressiva da visão. Segundo a consultoria Coherent Market, o mercado de dispositivos de tecnologia para acessibilidade atingirá 26 bilhões de dólares em 2024, ante os 14 bilhões de 2015.
Outras empresas de tecnologia estão de olho nesse mercado afluente. A Microsoft acaba de lançar um aplicativo gratuito para iPhone — ainda não disponível no Brasil — capaz de ajudar deficientes visuais, com o uso de um fone de ouvido, a se localizarem enquanto andam na rua. Chamado de Soundscape, o app funciona de forma semelhante ao aplicativo de trânsito Waze, falando quando o pedestre deve virar à direita ou à esquerda, mas com a diferença de que emprega a técnica de som 3D para direcionar o deficiente. No exemplo fornecido pela Microsoft, uma deficiente pergunta ao app o caminho até uma loja de roupas. Nesse momento, um alerta sonoro constante é iniciado e fica cada vez mais forte conforme ela se aproxima do local. Por não indicar obstáculos pelo caminho, ainda é preciso utilizar uma bengala ou um cão-guia.
“Essa é uma mudança grande de paradigma. O cego pode agora, por meio da tecnologia, dizer àqueles que enxergam qual é o melhor caminho a ser percorrido na rua”, afirma Rico Malvar, cientista-chefe da Microsoft Research. Até mesmo o sistema operacional Windows está tirando proveito da inteligência artificial para tornar os computadores mais acessíveis. Agora o sistema consegue reconhecer uma imagem e gerar automaticamente uma descrição detalhada da figura, que posteriormente será ouvida pelo deficiente visual. “Temos histórias de pessoas que agora podem participar de reuniões, ler contratos”, diz Malvar. O futuro promete recursos ainda melhores — beneficiando toda a humanidade.