Vista do Pão de Açúcar, no Rio: na preparação para a Olimpíada, a cidade receberá cerca de 40 bilhões de reais em investimentos até 2016 (Oscar Cabral/Veja)
Da Redação
Publicado em 19 de julho de 2012 às 19h24.
Uma procissão. Essa é a impressão que se tem ao andar pelos bairros entre o centro e a orla de Barcelona durante um fim de semana de verão. Em vez de fiéis, enormes grupos de turistas transitam a pé pelas ruas estreitas do bairro Gótico, herança bem conservada do período medieval.
O mesmo acontece em La Rambla — que liga a principal praça da cidade à região portuária — e no calçadão da orla, ambos repletos de bares, restaurantes e lojas. Todo esse cenário se concentra num raio de menos de 5 quilômetros na cidade que é, hoje, a quarta mais visitada da Europa.
Há menos de duas décadas, o panorama era completamente diferente. O centro e a zona portuária de Barcelona eram áreas abandonadas e praticamente desprezadas pelos visitantes. No lugar da vibração, ruas ermas, edifícios decrépitos e um comércio mirrado e decadente.
Desde 1986, quando Barcelona foi eleita para sediar os Jogos Olímpicos de 1992, a capital da Catalunha foi da depressão à prosperidade. As transformações necessárias para receber a Olimpíada deram dinamismo econômico não só a Barcelona, mas a toda a Espanha.
Atualmente, a cidade recebe 8 milhões de turistas por ano, em vez de 2 milhões, como há 18 anos. A cidade avançou da 11ª para a quarta posição entre as melhores para fazer negócios na Europa.
“Barcelona mudou completamente a si e à Espanha depois dos Jogos”, diz Jordi Pardo, diretor da Fundação Barcelona Media, entidade sem fins lucrativos, ligada à Universidade Pompeu Fabra, que pesquisa inovação nos segmentos de comunicação, cultura e turismo.
As mudanças urbanas, econômicas e sociais alcançadas com a ajuda da Olimpíada fizeram de Barcelona um modelo a ser perseguido por todas as anfitriãs escolhidas posteriormente pelo Comitê Olímpico Internacional, inclusive pelo Rio de Janeiro.
“Barcelona é o grande exemplo de transformação com a Olimpíada”, afirma o prefeito do Rio, Eduardo Paes. “Temos muitas semelhanças físicas e também muitas necessidades parecidas, considerando os problemas barceloneses antes dos Jogos.”
A bem da verdade, as únicas semelhanças que Rio e Barcelona guardam entre si nos dias de hoje são a simpatia de seus habitantes e a proximidade de uma bela orla. No discurso, Paes mostra-se perfeitamente alinhado ao modelo de Barcelona.
“Em 2016, o Rio será uma cidade revitalizada, com uma rede de transportes eficiente, problemas sociais reduzidos e mais desejada pelo turista.” A prática, que possibilitará ou não atingir esses resultados, é que causa preocupações e críticas.
Sem dono
Depois de um ano e dois meses da escolha do Rio como sede olímpica, ainda não há no país uma pessoa que reúna todos os projetos e saiba responder pelo status de cada obra que será tocada até 2016.
Uma medida provisória, editada em maio, criou a Autoridade Pública Olímpica, um comitê formado por integrantes do município, do estado e da União com a missão de coordenar os esforços e responder às exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI).
Mas a MP ainda tem de ser aprovada pelo Congresso. Enquanto isso não ocorre, o projeto olímpico não tem um dono. É um problema sério de gestão dado o volume de recursos envolvido na realização do evento.
No caso do Rio, estima-se a soma de 40 bilhões de reais até 2016, uma média de 6,6 bilhões por ano, o que significa mais de sete vezes o que a cidade investiu no ano passado. Cerca de 70% desse valor será bancada pelos governos, parcela quase idêntica à que se viu em Barcelona.
A principal crítica ao projeto olímpico até o momento refere-se à decisão de concentrar a maioria das competições — e, portanto, dos investimentos — na Barra da Tijuca, um bairro de densidade populacional relativamente baixa e de renda elevada.
“Optou-se por beneficiar as áreas mais ricas da cidade, em detrimento do subúrbio, onde deveriam ser concentrados os esforços de recuperação urbana”, diz Sérgio Magalhães, presidente do braço carioca do Instituto dos Arquitetos do Brasil. A Barra concentrará a maior fatia dos investimentos em infraestrutura.
Lá, serão construídos três dos quatro BRTs (faixas exclusivas para ônibus biarticulados trafegarem em alta velocidade) projetados, além de cinco das seis estações de metrô que a cidade ganhará. O bairro também receberá a maior parte do investimento em habitação.
A Vila Olímpica, que alojará os atletas, e a Vila de Mídia, que hospedará a maioria dos jornalistas, serão erguidas por empresas privadas e vendidas como imóveis residenciais antes mesmo dos Jogos — exatamente como foi feito em Barcelona.
Outra preocupação refere-se à falta de clareza sobre o que se pretende transformar na cidade. A zona portuária só foi incluída no projeto olímpico depois de o Rio ser eleito pelo COI — e após inúmeras críticas da sociedade civil, que reivindicava que a área central da cidade fosse protagonista das intervenções.
“O desenvolvimento da região portuária será a principal marca olímpica na cidade”, afirma o secretário Felipe Góes, do Planejamento, designado como principal gestor do projeto na esfera municipal. Com o plano atualizado, a sombria região do porto, cheia de galpões e terrenos abandonados, ganhará dois museus, um aquário e o novo prédio do Banco Central.
Lá também serão construídos edifícios para receber parte dos jornalistas — erguidos pela iniciativa privada e vendidos como imóveis residenciais. O anúncio da recuperação da zona portuária já levou a uma valorização de até 600% nos imóveis dos bairros vizinhos.
Um dos segredos do sucesso espanhol foi concentrar as energias para recuperar o centro antigo e a zona portuária de Barcelona. A recuperação dessas áreas foi encarada como prioridade, pois ajudaria a promover dois grandes tesouros do turismo catalão: as áreas medievais da cidade velha e as edifi cações do genial arquiteto Antoni Gaudí.
Acervos a céu aberto, ambos permaneciam subvalorizados pelo turismo mundial em razão da decadência da cidade. Para isso, os Jogos foram distribuídos por quatro regiões, distantes, no máximo, 10 quilômetros do centro histórico, que teve boa parte das edifi cações restaurada. A Vila Olímpica, projetada na área portuária para receber 9 000 atletas, transformou-se num elegante bairro à beira-mar.
Seus 2 000 apartamentos foram arrematados por compradores antes mesmo do início dos Jogos. Hoje, o metro quadrado na Vila Olímpica de Poblenou custa, em média, 7 000 dólares. Outro feito dos planejadores espanhóis foi a melhoria do sistema de transportes da cidade. Barcelona construiu 80 quilômetros de metrô, dobrando a malha que existia anteriormente.
Na área de transportes, mais uma vez o Rio desperdiçará a chance de investir na ligação por trilhos entre o aeroporto internacional e as demais regiões — como ocorre nas grandes cidades europeias, incluindo o que fez Barcelona. O metrô carioca ganhará apenas 16 quilômetros e seis estações que ligarão a zona sul à Barra da Tijuca.
Por outro lado, as quatro vias expressas de ônibus, os BRTs, são elogiadas pelos especialistas na área de transportes. Serão 106 quilômetros de corredores exclusivos por onde trafegarão ônibus biarticulados para ligar os extremos da cidade.
“A solução é boa e ajuda a mostrar que metrô não é solução para tudo. O importante é escolher o veículo mais adequado a cada área e a cada situação”, diz Paulo Resende, coordenador do departamento de infraestrutura da escola de negócios Fundação Dom Cabral.
O projeto olímpico do Rio representa a maior intervenção já feita na cidade num espaço tão curto de tempo. Se ele for integralmente cumprido, moradores e visitantes terão uma cidade bem melhor em 2016. Para isso, os executores do programa terão de evitar a todo custo repetir o que aconteceu nos preparativos do Pan-Americano.
As despesas somaram quase 20 vezes o orçamento inicial. As obras mais esperadas, como a despoluição da baía de Guanabara e a construção do metrô da Barra, ficaram pelo caminho — e se tornaram exigências do COI para 2016.
A cidade herdou apenas um parque aquático — que não poderá receber as competições de natação, mas apenas as de salto ornamental e polo —, um estádio, arrendado a preço de banana pelo Botafogo, e um velódromo, famoso como cenário de competições ciclísticas da novela global Passione.
Em pouco mais de cinco anos e meio, os Jogos estarão começando. Durante 17 dias, o Rio receberá milhares de atletas e turistas, que circularão por suas ruas, usarão seus serviços públicos e conhecerão de perto suas belezas e mazelas. Nesse período, o Rio, e por tabela o Brasil, ficará exposto sob os holofotes de emissoras de televisão do mundo todo, 24 horas por dia.
As imagens projetadas influenciarão — para o bem e para o mal — a percepção que o mundo tem do país. “Além das arenas de competição, o que será testado durante a Olimpíada são os serviços públicos da cidade”, afirma o sociólogo canadense Harry Hilley, que estuda o impacto de eventos esportivos nas cidades.
“Um bom projeto deixa benefícios para a população que mora e trabalha nela.” Segundo ele, uma das maneiras de garantir o legado é, antes de eleger cada obra, fazer uma pergunta: “Ela seria realizada mesmo sem a Olimpíada?” Excetuando-se as arenas de competição, todas as propostas cuja resposta for não devem ser descartadas.
Ninguém espera que o Rio de Janeiro se transforme em uma cidade de padrão de vida europeu nos próximos seis anos. A dimensão dos problemas é muito superior à que os barceloneses tinham no período pré-olímpico.
De qualquer maneira, o volume de investimentos na capital fluminense será multiplicado como nunca, o que abre uma chance de ouro para a cidade solucionar ou atenuar alguns de seus maiores problemas urbanísticos, ambientais e sociais. A chave para transformar essa oportunidade em benefícios concretos será o monitoramento e a correção incansáveis dos projetos eleitos. Caso contrário, será uma valiosa oportunidade perdida.