Revista Exame

A década de 2020 vai trazer uma revolução tão grande quanto a de 1920?

Nos anos 1920, o mundo vivenciou uma era de prosperidade nas artes, na economia e na tecnologia. O que podemos aprender para que a década de 2020 siga pelo mesmo caminho?

 (Arte/Exame)

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Da Redação

Publicado em 11 de março de 2021 às 05h06.

O dia estava frio e ventava muito. Em pé, do lado de fora do Capitólio, o presidente recém-empossado pediu “uma nova unidade de espírito e propósito” para reconciliar uma nação que havia sido devastada por uma pandemia e pelo alto desemprego. Seu antecessor não estava presente. A cerimônia de posse do presidente americano Warren Harding em 4 de março de 1921 marcou o início nada auspicioso e informal de uma década histórica.

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O clima sombrio não dava nenhuma pista de que a economia e a cena cultural dos Estados Unidos estivessem prestes a decolar. Durante “os estrondosos anos 20”, o mundo viu a adoção generalizada da linha de montagem nas fábricas, do automóvel, do rádio, do cinema, do fornecimento de água encanada e dos eletrodomésticos. O consumismo e a cultura de massa tomaram forma. Foi a década do art déco e do jazz, de Coco Chanel e de Walt Disney. Foi “a primeira década verdadeiramente moderna”, diz Gene Smiley, historiador econômico aposentado da Universidade Marquette.

No momento em que os Estados Unidos e o mundo sofrem outra pandemia, é tentador perguntar se a história se repetirá. Assim que o vírus passar, a década de 2020 revolucionará da mesma forma que a de 1920? Não é impossível.

O ano passado comprova que a economia e a sociedade podem mudar rapidamente. Vimos diversas vacinas contra a covid-19 serem desenvolvidas em tempo recorde e uma transição instantânea para o trabalho remoto. A Tesla produziu quase meio milhão de veí­culos elétricos, apesar da pandemia. A DeepMind, empresa do mesmo grupo do Google, resolveu um quebra-cabeça científico de meio século, usando inteligência artificial para prever com precisão um processo das proteínas que pode revolucionar a descoberta de medicamentos.

Por outro lado, é bastante provável que os Estados Unidos continuem a lutar contra a “estagnação secular”, uma praga das nações desenvolvidas influenciada pelo envelhecimento da população, crescimento lento da força de trabalho e fraca demanda de crédito. 

Família americana nos anos 1920: a chegada da eletricidade nas casas impulsionou o surgimento e o consumo de eletrodomésticos (FPG/Hulton Archive/Getty Images)

Apesar das diferenças, ao copiar o que foi bem-feito nos anos 1920 e evitar o que deu errado, o mundo pode fazer da década de 2020 um sucesso — pelo menos para os padrões de hoje. O mundo de 2021 é “uma mistura confusa dos anos 1920 de várias maneiras”, diz o economista Eugene White, da Universidade Rutgers.

Os preços das ações estão altos em relação aos lucros das empresas, como naquela época. Há uma desconfiança das instituições internacionais como a ONU, que pareceria familiar para uma testemunha da década de 1920. As relações raciais estão mais uma vez tensas, embora os negros americanos estejam em uma posição muito melhor do que estavam há um século.

As tarifas de importação aumentaram com o presidente Donald Trump, como aconteceu na década de 1920. E a década de 1920 foi a primeira em que a população urbana ultrapassou a população rural; na década de 2020, a zona rural branca se sente desprestigiada. 

A década de 1920 não começou bem. A pandemia de gripe espanhola, que matou cerca de 675.000 americanos em uma população de 100 milhões, terminou, mas os Estados Unidos estavam mergulhados em uma recessão. O milagre econômico dos anos 1920 só começou realmente em julho de 1921, quando a recessão terminou, dando lugar a uma euforia.

Na metade de 2021, dependendo do progresso da vacinação, provavelmente haverá um vislumbre desse comportamento nos países ricos conforme as pessoas saírem do confinamento, prontas para comemorar. Economistas consultados pela Bloomberg preveem um crescimento anual acima da média no produto interno bruto americano, que pode atingir um pico de 4,7% no terceiro trimestre. As indicações de que existe uma demanda reprimida são muitas.

A empresa de cruzeiros marítimos Carnival planeja iniciar as viagens em abril para seu maior navio de todos os tempos, o Mardi Gras, com 5.200 passageiros. Finalmente livres para fazer o que quiserem, os americanos podem ficar parecidos com a Geração Perdida dos anos 1920, que escolheu “viver no momento puro, viver alegremente de gim e amor”, como descreveu o crítico literário Malcolm Cowley. 

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Gim e amor são um coquetel poderoso, mas não conseguirão sustentar uma década de crescimento. O argumento a favor de uma repetição da década de 1920 é que o bloqueio da pandemia acelerou a adoção de tecnologias como videoconferência e comércio digital, que continuarão pagando dividendos muito depois de o vírus ter sido vencido. Uma pesquisa global da consultoria McKinsey revelou que as empresas avançaram sete anos na participação de produtos digitais em suas receitas em relação ao que era esperado antes da pandemia.  

O difícil em prever o progresso tecnológico é descobrir onde estamos na curva de adoção. Por exemplo, os robôs. A palavra foi cunhada em 1920 por um dramaturgo tcheco, Karel Capek, mas um século depois os robôs não corresponderam às esperanças — ou temores. Demorou 13 anos, de 2005 a 2018, para que o número de robôs industriais dobrasse nos Estados Unidos, segundo a Federação Internacional de Robótica.

Para um pessimista, isso é quase um platô. Para um otimista, isso significa que os robôs ainda estão na parte inferior da curva de adoção e estão prontos para decolar. Analistas do mercado de ações mais pessimistas dizem que a expansão da força de trabalho e os ganhos em educação não correspondem aos da década de 1920, e os avanços da tecnologia da informação e da biotecnologia, embora impressionantes, não estão à altura das tecnologias que impulsionaram o crescimento há um século. Como disse o investidor Peter Thiel em sua famosa frase: “Queríamos carros voadores, mas em vez disso ficamos com [redes sociais de] 140 caracteres”. (O limite é de 280 caracteres agora, mas mesmo assim...) 

Home office: a pandemia forçou as empresas a migrar para o trabalho remoto quase instantaneamente (Romy Arroyo Fernandez/NurPhoto/Getty Images)

Para o americano médio, a vida mudou mais de 1920 a 1929 do que provavelmente mudará de 2020 a 2029. A energia elétrica nos deu geladeiras, máquinas de lavar e rádio. Com a eletrificação, as fábricas não precisavam mais depender da energia de um único motor conectado às máquinas. O motor de combustão interna ganhou força na década de 1920, movimentando carros, caminhões, máquinas agrícolas e aviões. O número de motoristas quase triplicou.

A ascensão do automóvel levou a investimentos em estradas e casas nos subúrbios, bem como à produção de borracha, aço, vidro e petróleo. Robert Gordon, economista da Universidade Northwestern, é um dos principais defensores do argumento de que os tempos modernos de hoje não estão à altura dos tempos modernos de 1920. A pedido da reportagem, Gordon coletou números sobre a produtividade do trabalho de 1893 a 2019, agrupando os dados em períodos aproximadamente iguais que começassem e terminassem em ciclos de expansão.

Os dados até 1948 vêm de um livro que ele escreveu, The Rise and Fall of American Growth (“Ascensão e queda do crescimento americano”, numa tradução livre). O restante são dados oficiais. Os números mostram que o crescimento da produtividade acelerou em 1920 e permaneceu alto por meio século antes de cair depois de 1973. “Embora seja provável que o crescimento da produtividade se recupere na década de 2020, não há chance de crescimento sustentado ao longo de uma década que corresponda à conquista dos anos 1920”, diz Gordon.

Uma lição é que o tempo é importante. A década de 1920 decolou porque as tecnologias vinham sendo desenvolvidas por várias décadas e finalmente estavam prontas para implantação em massa. Pode não ser o caso hoje. 

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Robert Gordon chama a década de 1920 de “uma década que desafia a mais simples descrição”. Foi uma época de libertação, em que as mulheres tiveram direito a voto e ousaram usar saias curtas, fumar cigarros e beber coquetéis baratos, enquanto poetas, autores e músicos negros encontraram grandes públicos. Mas as mulheres ainda enfrentavam discriminação e negros americanos e imigrantes enfrentavam isso e pior.

A Lei da Imigração de 1924 bloqueou as portas para imigrantes da Ásia e restringiu seriamente a imigração do sul e do leste da Europa — atraindo a admiração de ninguém menos que Adolf Hitler. 

Foi uma época de crescente prosperidade, mas também de crescente desigualdade de renda e de profundas divisões na sociedade.  Trabalhadores de fábricas, investidores em ações e grandes empresas se deram bem, mas a economia agrícola, ainda considerável, foi impactada pela queda de 53% nos preços dos produtos agrícolas na recessão de 1920-21 e levaria anos para se recuperar.

Os primeiros três anos do mandato de Trump foram igualmente marcados por uma maré de forte crescimento econômico que alavancou a economia, embora não totalmente. A taxa de desemprego para os negros, por exemplo, atingiu uma baixa recorde. A pandemia destruiu grande parte desse progresso. Trazer a economia de volta a seu potencial e melhorar a vida dos menos afortunados é uma segunda razão, depois de salvar vidas, para acelerar a distribuição de vacinas.

Antiga linha de montagem da Ford: a popularização do automóvel levou a investimentos em estradas e subúrbios, e incentivou a produção de borracha, aço, vidro e petróleo (Ullstein Bild/Getty Images)

Talvez a lição mais importante que a década de 2020 possa aprender com a de 1920 seja o perigo do isolacionismo. Os Estados Unidos emergiram da Primeira Guerra como a economia mais poderosa do mundo e seu maior credor, tendo financiado o esforço de guerra das potências europeias. Mesmo assim, os Estados Unidos resistiram em assumir a liderança global. Fartos da Europa e de sangrentas disputas, os isolacionistas do Congresso impediram os Estados Unidos de ingressar na Liga das Nações.

Washington também insistiu que o Reino Unido e a França pagassem até o último centavo as dívidas de guerra. Muito mudou desde então. Os Estados Unidos são agora uma nação devedora, consumindo mais do que produz. Em quatro anos no cargo, Trump reviveu o isolacionismo, até ressuscitando o lema “Estados Unidos em Primeiro Lugar” com o qual o presidente ­Warren Harding fez campanha em 1920. Mas, como há 100 anos, os Estados Unidos não podem escapar das obrigações que acompanham o fato de ser a maior economia do mundo. 

O presidente Joe Biden deve tentar demonstrar que o país é, de novo, um parceiro confiável. Enquanto isso, a noção de que a pandemia de covid-19 é um tipo de trampolim que impulsionará o país em direção a um futuro brilhante não é apenas desanimadora, mas está errada. As pandemias prejudicam as sociedades de forma duradoura, muito além do número de mortos.

Em outubro, o FMI publicou um artigo dos economistas Tahsin Saadi Sedik e Rui Xu que revelou um círculo vicioso: pandemias reduzem a produção e aumentam a desigualdade, alimentando a agitação social, que reduz ainda mais a produção e piora a desigualdade. O estudo foi baseado em surtos de doenças em 133 países de 2001 a 2018. Uma última lição do estudo é que a história tem algo a nos ensinar, ao contrário do que se pensava nos anos 1920.

“Os nervos dilacerados ansiavam pelos anódinos da velocidade, da excitação e da paixão”, escreveu Frederick Lewis Allen em 1931 no livro Only Yesterday: An Informal History of the 1920s (“Foi apenas ontem: uma história informal sobre a década de 1920”, numa tradução livre). Nossos nervos também estão em frangalhos. Mas aprender com o passado pode ajudar a iniciar a cura.  

Tradução de Anna Maria Della Luche

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