Programa de aceleração do Google em sua sede americana: prédio em São Paulo recebe mais dez startups para seis meses de mentoria (Google/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 30 de novembro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 30 de novembro de 2017 às 13h00.
Não eram nem 6 da manhã, os primeiros raios de sol iluminavam as ruas de São Francisco, na Califórnia, e o engenheiro Lucas Mendes já enfrentava sua terceira reunião com a equipe da Revelo, startup de recrutamento digital da qual é cofundador com o sócio Lachlan de Crespigny. Em pleno verão americano, a diferença de fuso horário entre a cidade americana e São Paulo, onde fica a sede da Revelo, era de 4 horas a menos. Do quarto do hotel, Mendes delegava via teleconferência tarefas ao pessoal de marketing e tecnologia antes de sua agenda do dia de fato começar. Ele era um dos 12 brasileiros que estavam no programa de aceleração de empresas do Google, o Launchpad, criado no início de 2016 e focado em países emergentes.
Na quarta turma acelerada pelo Google, quatro brasileiras estavam entre as 33 empresas de 17 países: além da Revelo, participaram a Contabilizei, plataforma de contabilidade para pequenas empresas; o Guichê Virtual, que vende passagens de ônibus online; e a Arquivei, de gestão de dados fiscais. O programa, de seis meses de duração, incluiu um intensivão, em julho, de duas semanas em São Francisco, com mentores e especialistas de áreas como marketing e desenvolvimento de produto.
Além disso, o Google oferece 50.000 dólares para a startup gastar como quiser, 100.000 dólares em créditos para compra de serviços do próprio Google e a colaboração de executivos no período. “Quando está em São Francisco, o empreendedor consegue ver de perto o que é o ecossistema do Vale do Silício e interagir com outras startups que no futuro poderão ser parceiras ou clientes”, diz Roy Glasberg, líder do programa de aceleração de startups do Google.
A rotina da turma que EXAME acompanhou no espaço do Launchpad foi puxada, com mais de 10 horas diárias de reuniões, palestras e rodadas de mentoria. O objetivo: melhorar o produto de startups que já estão no mercado mas ainda não ganharam escala, durante as duas semanas que os fundadores e os principais executivos passaram no Vale do Silício. Por isso, os times locais estavam em alerta para testar as sugestões dos mentores. “Uma mudança no produto que poderia facilmente consumir dois meses para ser testada no Brasil aqui tem de se provar em dias. A velocidade no Vale do Silício é outra”, disse Mendes na ocasião. Depois que ele voltou de lá, no final de julho, a Revelo recebeu 14 milhões de reais do fundo Valor Capital e do grupo australiano de recrutamento Seek. Além disso, o selo de empresa acelerada pelo Google trouxe novos clientes, como o Hospital Albert Einstein, a Ambev e a Cielo.
Para as startups que participam do programa do Google, que já gastou 7,5 milhões dólares com a iniciativa, as vantagens são grandes. Além de mentores, acesso a especialistas e à tecnologia, as startups acabam tendo contato com fundos de capital de risco e outros potenciais investidores. Mas qual é a vantagem para uma empresa como o Google, que faturou nada menos que 90 bilhões de dólares em 2016, apoiar novatas que ainda brigam por um lugar ao sol? Não é preciso ir longe para encontrar a resposta.
Em 1998, os fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, ainda estudantes da Universidade de Stanford, receberam o primeiro cheque de 100.000 dólares de um investidor e montaram oficialmente a empresa numa garagem da cidade de Menlo Park, na Califórnia. Em 2006, as maiores companhias do mundo em valor de mercado eram petroleiras. Agora, cinco companhias de tecnologia encabeçam o ranking das maiores, liderado pela Apple, avaliada em 898 bilhões de dólares e seguida pela Alphabet, dona do Google, com 720 bilhões. É consenso que a inovação disruptiva do futuro virá de startups que podem nem ter nascido ainda. E as grandes de hoje já foram iniciantes um dia.
Outra razão para investir no ecossistema de inovação é bem prática. Muitos produtos do Google são direcionados para desenvolvedores de novas tecnologias. “Se uma startup constrói produtos para o Android, sistema operacional de celulares do Google, isso é obviamente interessante para a companhia”, diz José Papo, gerente de relacionamento do Google com desenvolvedores e startups na América Latina.
A companhia não ganha dinheiro diretamente com o Android, pois é um sistema com código aberto, que pode ser modificado pelos desenvolvedores e ninguém precisa pagar nada por ele, mas fatura — e muito — com o licenciamento de outros produtos, como o Google Maps. Ou seja, incentivar uma iniciante a usar sua plataforma tecnológica é uma forma de conquistar mercado no futuro, quando essa startup ganhar musculatura. No Launchpad, ninguém é obrigado a usar os produtos da companhia, mas os 100 000 dólares em crédito de produtos são um incentivo a que pouca gente resiste.
Na próxima rodada de aceleração, agendada para janeiro, o programa deverá dar mais ênfase à inteligência artificial. Isso fez com que o Google selecionasse pela primeira vez startups brasileiras mais maduras. O Nubank, fintech — empresa de tecnologia da área financeira — mais badalada do país, é uma das escolhidas, juntamente com a Loggi, de entrega por motoboys, e com a Zap Viva Real, de classificados digitais de imóveis. “Escolhemos startups com grande base de dados que podem explorar melhor as possibilidades do machine learning”, diz Papo.
Com 2,5 milhões de clientes e outras 500.000 pessoas na lista de espera, o Nubank teve uma receita de 237 milhões de reais no primeiro semestre deste ano, e é uma das apostas para ser o primeiro “unicórnio” — empresa avaliada em mais de 1 bilhão de dólares — do Brasil. A empresa foi convidada a participar do programa de aceleração, que prometeu a seus fundadores adaptar parte da agenda para atender aos interesses do banco digital. “Além de inteligência artificial, queremos entender como o Google trabalha a escalabilidade de áreas como recursos humanos”, diz David Vélez, presidente e um dos fundadores do Nubank.
O Google não é o único gigante a apostar no que se convencionou chamar de aceleradoras corporativas de startups. Microsoft, IBM, Oracle e Cisco têm programas semelhantes focados no desenvolvimento de startups. Corporações que originalmente não têm nada a ver com o Vale do Silício, como Coca-Cola, Airbus e Disney, também criaram aceleradoras. Esse tipo de estrutura de apoio ao empreendedor digital é recente. Criada em 2005 em Boston e depois transferida para São Francisco, a Y Combinator é considerada a primeira aceleradora do mundo a impulsionar negócios inovadores com alto potencial de crescimento — e continua a ser uma das mais relevantes, com quase 1.500 startups aceleradas.
Boa parte das aceleradoras que vieram na sequência foi bancada por investidores individuais e fundos de private equity, que aportam valores baixos em troca de participação acionária na startup, em geral de 5% a 7% do capital. Em troca, oferecem apoio técnico e educacional, gestão e até um espaço de trabalho. E só ganham dinheiro se a startup der certo, vendendo suas ações para outros investidores. Ou seja, achar o próximo Airbnb ou Dropbox — ambas impulsionadas nas fases inicias pela Y Combinator — é a obsessão desse mercado. Nos últimos três anos, as grandes empresas despertaram para a criação dos próprios modelos de aceleração.
Recentemente, a americana Gust, plataforma digital de gestão de investimento em -startups, lançou um relatório que mapeia o cenário de aceleradoras no mundo. Existem 579 programas de aceleração, que já ajudaram mais de 11 000 novatas a ganhar escala. Mais da metade dos programas é financiada total ou parcialmente por grandes companhias — e isso deve crescer. Se no passado quase a totalidade das aceleradoras dependia da venda de ações para fechar as contas, o índice caiu para 33%. Isso porque o movimento de saída é lento e pode levar até dez anos. “Hoje, o modelo de aceleração faz mais sentido para uma corporação, pois ela não depende do retorno do capital investido, que é um valor ínfimo perto dos investimentos totais”, diz o húngaro Miklos Grof, um dos autores do estudo da Gust e investidor em espaços de trabalho compartilhados no Brasil.
O temível “efeito Kodak” é um dos principais motivadores para as grandes empresas se aproximarem das startups. Ninguém quer ser surpreendido por uma tecnologia que acabe com seu negócio da noite para o dia, como foi o caso da fabricante de produtos fotográficos analógicos que não conseguiu antever a rápida ascensão da fotografia digital. Por isso, muitos programas de aceleração miram startups que criam produtos nas áreas de atuação da companhia patrocinadora.
A Oracle, empresa de softwares corporativos, lançou neste ano seu programa de aceleração em oito cidades globais — São Paulo está entre as escolhidas. Um dos focos é encontrar startups com boas soluções de computação na nuvem, área que já representa 51% do faturamento da Oracle. Na versão brasileira do programa, seis startups foram selecionadas para receber mentoria, ter acesso gratuito a produtos da Oracle e utilizar seu espaço de trabalho compartilhado, que fica perto da sede da empresa justamente para aproximar empregados de empreendedores . “A expectativa é que a cultura de inovação das startups, que têm processos mais ágeis, acabe influenciando de forma positiva os funcionários da empresa”, diz Rodrigo Galvão, presidente da Oracle no Brasil.
Do ponto de vista das corporações, acessar a inovação por meio de startups é também uma forma segura de pisar em terrenos incertos. “É compreensível que uma grande empresa seja cautelosa no foco de inovação, pois ela passou anos desenvolvendo uma marca e precisa proteger seu negócio”, diz Ron Yerkes, diretor da aceleradora SAP.iO Foundry, patrocinada pela empresa alemã de software SAP, nos Estados Unidos. “Já as startups estão inovando num ritmo muito mais rápido e podem se arriscar em tecnologias completamente desconhecidas.”
Apesar de parecer que todo mundo sai ganhando, há riscos para ambos os lados. Startups são, por definição, negócios de alto risco. A mortalidade dessas empresas é altíssima: no Brasil, 74% fecham as portas após cinco anos. Por isso, as corporações precisam estar preparadas para o fato de que aquela ideia brilhante, criada por um time jovem e empolgado, simplesmente pode não dar certo.
Outro risco é o choque de cultura. Companhias tradicionais podem não estar preparadas para a velocidade que os negócios digitais exigem e acabar engessando a relação com essas empresas. “Se a startup precisa entrar na fila de suprimentos para receber um material, já deu errado”, diz Pedro Waengertner, da Ace Startups, aceleradora que criou programas específicos para algumas empresas tradicionais, como a Braskem. “Se uma grande empresa quer trabalhar com uma startup, tem de buscar uma afinidade de cultura, caso contrário, ambas acabam frustradas.”
Não existe, porém, um modelo único de aproximação entre esses dois universos. O ecossistema de inovação hoje no Brasil é composto de diversas camadas: há desde a turma de uma ideia na cabeça e sem um produto viável até empresas estruturadas que já sabem como e onde querem chegar mas precisam de financiamento para isso, sobretudo na faixa dos 500.000 aos 2 milhões de reais. É justamente nesse segmento que a Microsoft quer atuar.
No exterior, a empresa de Bill Gates é dona de uma das maiores aceleradoras corporativas do mundo, por onde já passaram 647 startups. No Brasil, quer ajudar as novatas com dinheiro. Para isso, montou o fundo BR Startups, com capital de 27 milhões de reais, do qual são sócias também Qualcomm, BB Seguridade e Grupo Algar, entre outras empresas, e que foi estruturado para atuar em diferentes áreas, como finanças e agronegócio.
Em setembro, a Tbit, empresa que analisa imagens de grãos, sementes e folhas, recebeu 1 milhão de reais do fundo e da empresa de biotecnologia Monsanto, outra sócia da BR Startups. “O que acontece no Brasil é que muitas empresas passam pela fase de aceleração, estão prontas para os próximos passos, mas não têm recursos para seguir em frente”, diz Franklin Luzes, vice-presidente da Microsoft Participações.
O fato é que cada vez mais grandes empresas querem se associar a startups. O laboratório Dasa, por exemplo, aposta em diferentes formas de trabalhar com elas. Em agosto, anunciou uma parceria com o Cubo, espaço de trabalho financiado pelo banco Itaú e pelo fundo RedPoint eventures. A Dasa bancará um andar do novo prédio do Cubo apenas para abrigar startups da área de saúde. Essas companhias poderão utilizar — para fazer testes clínicos, por exemplo — a capacidade ociosa nos laboratórios e nos hospitais do grupo (a família Bueno, principal acionista da Dasa, é dona também da Ímpar, que tem nove hospitais). “Uma grande empresa não consegue ser tão ágil e eficiente quanto uma startup quando se trata do desenvolvimento de novas tecnologias em saúde”, diz Pedro Bueno, presidente do laboratório.
Outra frente criada dentro da Dasa são as chamadas células ágeis, espécie de startups dentro da própria companhia. Para elas, são colocados desafios relacionados aos negócios do grupo, como aumentar em 20% os agendamentos de exames de ultrassom pela internet. Hoje, existem 15 células em operação, mas a meta é ter 40 em 2018. Bueno é quem também está liderando os investimentos da família por meio do fundo DNA Capital, com cerca de 200 milhões de reais separados para focar empresas de biotecnologia. Duas delas já receberam investimento do DNA Capital: a americana Arterys, de inteligência artificial em radiologia, que fica no Vale do Silício, e a brasileira Beep.
No caso da startup nacional, que recebeu 5 milhões de reais em agosto, o foco é o atendimento médico em domicílio. Com 800 médicos cadastrados, as consultas são agendadas pelo site ou via aplicativo. A breve chegada da Beep ao universo da Dasa já mexeu com a empresa. “Vimos que havia uma oportunidade de oferecer vacinas pela plataforma, com a aplicação no laboratório. Em dois meses, as vendas de vacinas da Dasa aumentaram cerca de 5% com a ferramenta”, diz Bueno. Quando há afinidade entre um gigante do mundo empresarial e uma startup de tecnologia, o céu é o limite para os novos negócios que podem ser gerados.