Pingente da coleção Água, da joalheria Carla Amorim: peça inspirada na Amazônia, com renda destinada a ações sociais (Foto/Divulgação)
Beatriz Correia
Publicado em 2 de julho de 2020 às 05h15.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h10.
O ouro é um porto seguro para os investidores em pânico com os mergulhos do mercado acionário. Pela alta liquidez, seu valor subiu mais de 40% neste ano de pandemia. Apesar do bom momento, esses quilates que seduzem as carteiras mais conservadoras não parecem apontar para o futuro da joalheria brasileira. As gemas coradas e os formatos arrojados são o que de melhor o país oferece ao mercado internacional. Hoje, o Brasil é visto como fonte de pedras e metais preciosos, e também de designers e empresas que começam a levar para as avenidas de consumo conceitos como acessibilidade e sustentabilidade.
Carla Amorim, Silvia Furmanovich e Ara Vartanian são três nomes da extensa lista de autores brasileiros que transitam nos tapetes vermelhos com a palavra da vez: transparência. Assim como o varejo de roupas vem revendo métodos de produção e contratos com fornecedores para provar que está livre de trabalho escravo e do uso de matérias-primas poluentes, o mercado de joias pesa ainda mais a mão no compliance para ganhar o selo de sustentável. Entre as certificações do segmento está a conflict free, comprovação de que um diamante não foi extraído para financiar conflitos armados, prática comum na África até poucos anos atrás.
Um dos principais nomes dessa nova corrente é Fernando Jorge. Provavelmente o mais festejado designer brasileiro de sua geração, aos 40 anos de idade e com menos de dez à frente da marca própria, Jorge tem entre suas clientes celebridades como a atriz Amy Adams, a cantora Beyoncé e a ex-primeira-dama americana Michelle Obama. Ele está sediado em Londres, celeiro dos joalheiros de olho nas carteiras do Oriente Médio, onde desenha peças que ganharam fama pelo viés arquitetônico.
O trabalho de geometria Jorge adquiriu na formação em arquitetura. Mas foi sua obsessão por trabalhar com gemas, muitas delas brasileiras, extraídas de minas comprometidas com o entorno e com a mão de obra, o ativo que o ajudou a fincar os dedos no olimpo da joalheria. “As grandes marcas oferecem o incontestável, ou seja, aquilo que é seguro”, afirma. “Os brasileiros chegaram com novas formas, novos materiais e novas possibilidades de uso da matéria-prima disponível. Isso foi bem recebido pelos clientes, porque as pessoas querem sempre novidade, e, depois da crise de 2008, as marcas de luxo precisam se diferenciar e sair das formas básicas.”
Em sua coleção de prêmios internacionais está o reconhecimento dos Gem Awards, um dos maiores do mundo, que Jorge ganhou no ano passado na categoria Design de Joias. Com a pandemia, ele passará a investir no próprio canal de vendas online para divulgar as iniciativas de sustentabilidade. Uma das regras adotadas por ele para garantir a origem das joias é a compra ou consignação das pedras diretamente de minas, sem intermediários. “Quanto menos intermediários, mais garantias temos da procedência do material. Gemas como topázio imperial, rubelita e esmeralda são mais fáceis de rastrear no Brasil”, afirma.
Rubelitas e esmeraldas são também o foco do trabalho de seu colega de profissão Ara Vartanian. Em sua nova fase, Vartanian está mapeando a origem de todas as gemas e do ouro usados na confecção das joias que adornam seus pontos de venda em Londres e em São Paulo. “Nos anos 1980 e 1990 era comum não saber de onde vinham as pedras e o ouro”, conta. “Era tudo misterioso e o sistema abria margem para práticas criminosas. Comprava-se barato para vender caro. Isso não cabe mais nos dias de hoje.”
Além de reciclar o próprio ouro, Vartanian costuma visitar as minas das quais compra matéria-prima, como a Cruzeiro, em Minas Gerais, fonte das rubelitas e turmalinas verdes usadas em suas peças. “É chegada a hora de bater palmas para as pessoas que estão por trás dos produtos finais e colocá-las em evidência. O Brasil tem um potencial enorme que por muito tempo foi mal aproveitado. Custa mais caro a um fornecedor garantir licenças e certificados, mas esse é um caminho sem volta.”
Os números do Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos não negam: atravessa-se um bom momento para as gemas no mundo. No ranking dos países exportadores, o Brasil é o segundo colocado, atrás apenas de Moçambique. Embora o país tenha utilizado 8 toneladas de ouro na fabricação de joias em 2018, 5% mais do que no ano anterior, o consumo mundial do metal diminuiu, ao mesmo tempo que cresceu a procura por materiais leves. Ainda nesse ano, o último analisado pelo relatório anual, a exportação de gemas lapidadas cresceu 35%, o que prova o interesse cada vez maior nas pedras nacionais prontas para uso pela indústria joalheira internacional.
Entusiasta das pedras nacionais, com destaque para as esmeraldas extraídas em Minas Gerais e para os topázios e turmalinas da Paraíba, a grife Carla Amorim resiste desde meados dos anos 1990 às oscilações no preço do ouro. Nesse período, viu o grama passar de 90 reais, quando a marca iniciou as operações, em Brasília, para mais de 300 reais neste ano. O preço final das peças, é claro, acompanhou o aumento. Atualmente, o tíquete médio gira em torno de 12.000 reais, similar ao da maioria das marcas nacionais de fine jewelry, segmento que usa apenas ouro como base de suas joias.
“Nascemos na crise e, se morrermos, morreremos na crise”, afirma Kelly Amorim, diretora de negócios e sócia da irmã na empresa. Ela conta que é fácil entrar no mercado de joias, o difícil é continuar. Isso porque, além do design, o planejamento de estoque e os desenhos devem acompanhar tanto o preço da matéria-prima quanto o gosto da clientela. É nesse contexto que a sustentabilidade — “indispensável para alguns clientes, mas não para todos”, segundo Kelly — surge como diferencial para o momento pós-pandemia.
Carla Amorim atua no rastreamento da matéria-prima e começa a promover ações de responsabilidade social. No ano passado, a coleção Água, feita com gemas nacionais, trazia um pingente com parte da venda revertida para a construção de poços em comunidades ribeirinhas sem água potável na região da Amazônia. Dentro da peça foi colocada água do Aquífero Alter do Chão, sob os estados do Pará, Amapá e Amazonas. “Precisamos devolver algo à sociedade”, afirma Carla. “Mas é fantasia achar que o país, cheio de pequenos produtores, vai se formalizar e seguir todos os protocolos. É trabalho do mercado exigir isso e, aos poucos, mudar o cenário da economia extrativista, valorizando o que é nosso.”
A preocupação com métodos de confecção, origem e sustentabilidade não se reflete no preço das ações de uma joalheria ou de uma mineradora nas bolsas, segundo Bruno Lima, especialista da equipe de renda variável da EXAME Research. “Questões relacionadas ao trabalho escravo e conflitos podem minar uma empresa, mas o mercado precifica seu valor com base na capacidade de ampliação da receita”, afirma Lima. “Existem novos fundos voltados para as empresas de economia sustentável, porém, no caso específico das joalherias, a lógica do preço das ações é a mesma aplicada ao varejo como um todo.”
Isso explica a iniciativa recente da Vivara, a única joalheria do país listada na B3, de ampliar o uso de prata na confecção das peças para amortecer a alta do ouro e, assim, garantir margem e diversidade ao portfólio. No ano passado, quando a empresa arrecadou 2,3 bilhões de reais em sua oferta pública de ações, mais da metade das peças tinha o ouro como principal matéria-prima. Hoje, esse índice é de 44%. É essa diversificação que, ao longo dos anos, permitiu à rede penetrar nos armários da classe média e responder por 10% do mercado joalheiro nacional.
O mercado brasileiro de joalherias é bastante pulverizado. Na época do IPO da Vivara, as quatro maiores marcas respondiam por apenas 16% desse varejo. “Como a maioria delas atua no segmento de alto padrão, há pouco potencial de expansão. Hoje, para uma joalheria se firmar e abrir o capital, é mais negócio investir no mercado internacional e, depois, abrir ofertas nas bolsas estrangeiras”, afirma Lima. É o que essas empresas estão fazendo. Seguindo os passos da H.Stern, uma das pioneiras no uso de gemas brasileiras, novos nomes estabelecem pontos e representações em solo estrangeiro, mais especificamente em Nova York, para atingir o mercado americano, e em Londres, com o intuito de seduzir europeus e clientes do Oriente Médio de passagem.
São estes últimos, aliás, os compradores mais exclusivos de Bia Tambelli, nome já de destaque na cena internacional com apenas dois anos de experiência no mercado. É no Catar que estão dois modelos de sua peça mais emblemática, um bracelete que leva 300 horas para ser confeccionado, com cristais, diamantes e ouro. Os acessórios seguem o mantra criativo da designer, baseado em cálculos de energia eletromagnética. Cada um custa cerca de 40.000 dólares, e só há um exemplar no país disponível na plataforma da Farfetch, por 105.000 reais. Rússia e Estados Unidos também são mercados onde ela atua.
“Tenho poucas mas boas clientes, que enxergam o valor de um trabalho longo e autoral, mas não é possível sobreviver nesse segmento sem o mercado internacional. Infelizmente, olhamos muito para o que vem de fora”, lamenta Tambelli. Artista plástica de formação, ela faz o tipo de joia complexa de ser executada, pelas formas inusuais, sem moldes para criá-las. Seguindo a tendência do mercado, Tambelli planeja atingir um público com menos poder de compra. Ela apresentou recentemente em feiras internacionais um pingente para fones de ouvido chamado B-Tech Charm. Feito de ouro e gemas coradas, deve alcançar um preço médio de 4.000 reais no varejo nacional.
Novos designers brasileiros contam com um programa de incentivo chamado Precious Brasil, patrocinado pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos. Muitas vezes, também recebem ajuda de empresas para chegar ao mercado internacional. Uma dessas fomentadoras, com uma carteira de 20 marcas, é a Julls, das empresárias Camilla Guimarães e Debora Lucki. As peças que elas comercializam nos pontos do varejo online, como Moda Operandi e Net-A-Porter, têm uma faixa de preços ampla, de 1.000 a 300.000 dólares, a depender da classificação e das pedras usadas.
“Por incrível que pareça, é um mercado que não sentiu os efeitos da crise gerada pela pandemia. Nos últimos três meses fizemos vendas muito importantes, porque a clientela não deixou de comprar, mas prefere itens originais que valham o investimento”, diz Lucki. Uma dessas marcas, cujo nome ela não cita, vendeu de dez a 12 peças por mês com um tíquete médio de 8.000 dólares, mais que o dobro do valor no período anterior à pandemia.
Entre as clientes mais famosas da Julls estão as grifes Aron & Hirsch, Daniela Norinder e Casa Castro, especializadas em segmentos que vão do fashion jewelry, com bases que não são de ouro, ao high jewelry, cujas pedras, de centenas de quilates, só cabem em bolsos restritos. Segundo Lucki, é a curadoria do designer que vai importar a partir de agora. Ela dá uma pista do novo caminho das pedras, que não passa pelo ouro: “O mundo já tem peças demais com base de metal e uma gema só. O consumidor procura agora desenhos fora do padrão e, principalmente, as cores vivas de nossas pedras”.