Revista Exame

“Não se negocia com a natureza”

O jornalista Thomas Friedman, do The New York Times, reflete sobre os efeitos econômicos e políticos do coronavírus

O jornalista americano Thomas Friedman, colunista do The New York Times  (Divulgação/Divulgação)

O jornalista americano Thomas Friedman, colunista do The New York Times (Divulgação/Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 23 de abril de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 13h17.

O jornalista americano Thomas Friedman notabilizou-se como um dos mais respeitados intérpretes das relações políticas, econômicas e sociais deste século. Nas últimas semanas, tem aproveitado o toque de recolher para refletir sobre os efeitos da crise atual e outros temas, como o choque do petróleo e o aquecimento global. Em meados de março, Friedman causou barulho ao questionar se a paralisia econômica pelo mundo não seria pior do que a doença no combate à pandemia do coronavírus.

É um daqueles temas complexos que o jornalista se especializou em analisar em suas colunas no jornal The New York Times e em livros como O Mundo É Plano – Uma Breve História do Século XXI. Recentemente, Friedman participou de um bate-papo pela internet para o lançamento da EXAME Academy, plataforma de educação da EXAME. A conversa foi mediada por André Esteves, controlador do banco BTG Pactual e do grupo que controla a EXAME (a íntegra da conversa está no canal da EXAME no YouTube).

Que análise o senhor faz da situação que vivemos hoje?

Não tenho a menor dúvida de que o mundo que nós conhecemos vai se dividir em AC/DC: antes do corona e depois do corona. Um fator que vai definir muito esse mundo é o que eu chamo de briga entre a Lei de Moore e a Lei de Covid. A Lei de Moore é uma metáfora do poder da inovação, algo que nós hoje precisamos como nunca, seja para a criação da vacina, seja para a cura da doença causada pelo coronavírus. Infelizmente, nós estamos lutando contra a Lei de Covid, que não se baseia na Lei de Moore, mas na mãe natureza. Hoje, estamos correndo contra esses dois expoentes. Segundo ponto: a crise dos bancos de 2008 foi um teste de estresse no sistema bancário, mas hoje o teste é sobre a sociedade como um todo. E o debate não pode ser sobre combater o vírus ou pensar nos empregos; temos de fazer os dois juntos. Não sei qual vai ser a decisão, mas temos de fazer isso com o máximo de dados possível, com máscaras, distanciamento e outras medidas e com o vírus à solta, porque ele não vai embora até surgir uma vacina.

Como compararia a situação atual à crise de 2008-2009?

Da perspectiva de hoje, 2008 parece uma minicrise, que criou o Tea Party, à direita, e o Occupy Wall Street, à esquerda. Agora pense nos movimentos populistas que vão surgir desta crise. Por isso eu defendo um governo de unidade nacional, que nos Estados Unidos inclua da esquerda de Bernie Sanders aos republicanos de Mitt Romney. Hoje, as pessoas estão em casa, mas em algum momento nas próximas semanas elas vão sair às ruas e ver o tamanho do estrago nos empregos e nas empresas, e isso causará uma enorme tensão social. Por isso não podemos cuidar do impacto socioeconômico de modo partidário. Além desse debate social unificado, vamos precisar de um grande debate sobre direitos civis digitais, e também discutir políticas públicas sobre o nível de acesso à vida da população que o governo precisa ter para fazer a economia voltar a funcionar. Os governos vão ter de garantir às pessoas que elas não serão infectadas por quem estiver na poltrona ao lado no avião, por exemplo.

Para contextualizar o debate: como estava o mundo antes do coronavírus?

Antes do vírus, nós estávamos vendo uma nova divisão entre o que chamei de mundo da ordem e mundo da desordem. Durante milênios, o mundo foi governado por impérios, britânico, espanhol, otomano, grego… Com o fim da colonização e após a Primeira e a Segunda Guerra, nós dividimos o mundo em cerca de 190 estados-nação, e um belo dia acordamos com uma Organização das Nações Unidas. Se você fosse um estado-nação fraco nesse período, estaria feito, porque duas superpotências competiriam por você no xadrez global. União Soviética e Estados Unidos jogavam dinheiro em sua direção, ajuda externa, trigo, armas etc. Além disso, não se falava em aquecimento global e crescimento populacional, e ninguém tinha celular para comparar seu líder com o da vila do lado, que dirá o país vizinho. Por último, como a China não fazia parte da OMC, qualquer um podia estar no setor têxtil ou pagar baixos salários. Isso tudo mudou no começo do século 21. Primeiro, nenhuma superpotência quer você, porque ninguém quer pagar a conta. O aquecimento global está arrebentando vários estados fracos, e há uma explosão populacional. Além disso, atualmente todo mundo tem um celular para ver se o país vizinho é melhor. O que se viu antes desta crise foi um movimento em massa de pessoas tentando sair dessas zonas de desordem, como o Oriente Médio, rumo às zonas de ordem. Havia muitos estados frágeis antes da crise atual, e eles ficaram ainda mais fracos.

Nova York durante a pandemia: a crise expôs a enorme fragilidade do sistema de saúde dos Estados Unidos | John Nacion/NurPhoto/Getty Images

Por falar no Oriente Médio, e quanto à crise do petróleo? Que previsões é possível fazer?

Não acho que esse choque na indústria do petróleo passará logo. Há excesso de oferta. Parece haver um desejo saudita e russo de esmagar o setor de gás natural dos Estados Unidos derrubando os preços do petróleo. E uma coisa que vai acontecer no mundo DC [depois do corona] é uma aceleração dos setores eólico e solar, que têm ido bem, com uma grande inovação ligada aos veículos elétricos baseados em energia eólica e solar. Fora isso, poderá ocorrer uma queda real no preço dos painéis solares chineses. Creio que para a Petrobras, para o Brasil, pelo menos nos próximos dois anos, será difícil ver os preços do petróleo de volta ao mesmo patamar de antes da crise. Não sou especialista em petróleo, mas acho que esse choque de demanda não passará tão cedo. Uma coisa positiva que deve sair desta crise é uma melhor distribuição da geração de energia, para termos comunidades mais resilientes. Tudo isso sem falar no pano de fundo que é o aquecimento global, o próximo desafio que a mãe natureza vai jogar no nosso colo. Não há imunização de grupo para aquecimento global, só uma devastação sem fim do grupo.

A avaliação para o cenário nos Estados Unidos é que a pandemia chegou ao pico?

Parece que estamos chegando ao pico em Nova York, mas o pico não será pontiagudo  e seguido de uma queda abrupta, e sim algo mais parecido com um gráfico dentado, cheio de altos e baixos. Mas vale frisar que nós só estamos ganhando tempo. Estamos contendo o vírus e o distanciamento social funciona, mas não temos vacina nem imunização de grupo. Mesmo na China os casos estão voltando a crescer, sendo que o país tem condições de impor medidas bastante invasivas, o que democracias como o Brasil e os Estados Unidos não conseguem implementar.

O que isso significa?

Nós nunca tivemos um inimigo assim nos Estados Unidos. Combatemos os nazistas e os russos e vencemos nos dois casos, mas as duas forças mais poderosas do planeta são a mãe natureza e o pai ganância — o mercado. Trump se enrolou no começo porque olhava o mercado usando o Dow Jones como termômetro pessoal, e achava que, se o mercado reagisse, seria um sinal de que estaria vencendo. Enquanto isso, a mãe natureza espalhou silenciosamente esse vírus entre nós. Você não negocia com a mãe natureza.

Nas crises deste e dos outros séculos, havia o Fundo Monetário Internacional, ou o Tesouro dos Estados Unidos, ou uma mistura dos dois para resgatar os países…

A mãe natureza não faz resgates.

Há algumas semanas, o senhor escreveu um artigo polêmico, em que criticava o “pensamento único” do lockdown e dizia que renda é um bom indicador de saúde. De lá para cá, sua opinião sobre isso mudou?

É importante destacar que não estou falando de uma solução ou/ou. Não defendo salvar todo mundo e matar a economia, ou matar a economia e salvar todo mundo, mas, sim, uma estratégia que combine as duas coisas do melhor jeito possível e reduza os danos à nossa saúde econômica e pública, claro. Eu falei disso antes, mas, essencialmente, o Brasil, os Estados Unidos e todo lugar terão um cenário assim: os mais vulneráveis terão de ser protegidos e separados, isto é, os idosos e quem tiver doenças que baixem a imunidade. Além disso, com base numa análise de dados confiáveis, queremos o retorno ao trabalho e nos setores mais críticos de quem já sarou da doença. Depois, aos poucos e com dados regionais, colocaremos mais mão de obra de volta, e assim por diante. Todos os líderes mundiais farão no mínimo alguma versão dessa estratégia no próximo mês. O presidente Bolsonaro parece que já tomou essa decisão no Brasil ou tende a decidir nesse sentido. São as decisões difíceis que todos nós vamos ter de fazer.

O senhor disse que a crise de 2008-2009 criou, à esquerda, o Occupy Wall Street e Bernie Sanders e, do outro lado, o Tea Party e a Presidência de Trump, os chamados efeitos políticos daquela crise. O que se pode esperar do cenário político após a crise atual?

Nos Estados Unidos, há uma mudança total no baralho político. O que quer que tenha acontecido em janeiro, fevereiro ou março não importa mais. Hoje, a medida de liderança é uma só: se você foi bom e eficiente em ter o apoio de sua cidade, estado ou país para este desafio. Quanto você inspirou? Quem você confortou? Cada líder hoje tem um novo boletim pelo qual vai ser julgado, e estão surgindo novas lideranças femininas e masculinas. É interessante ver governos autoritários respondendo bem à crise e outros fracassando. Temos de dar aos líderes dos Emirados Árabes Unidos no mínimo uma nota boa, porque eles reagiram logo no início e se isolaram. Já o Irã foi mal. Há democracias que agiram bem, como a Alemanha, e outras que foram mal. Os Estados Unidos foram mal, eu diria. Em 2008, Warren Buffett disse uma frase célebre: “Quando a maré baixa, você vê quem está de sunga e quem não está”. Esta crise expôs a enorme fragilidade de nosso sistema de saúde e de gestão de desastres. Em termos históricos, geralmente os Estados Unidos tiveram três papéis no mundo em crises assim. Um: nós liderávamos a coalizão que enfrentava a crise que fosse, de um inimigo como Hitler a um vírus como o ebola. Dois: nós éramos fonte da melhor ciência e dos melhores dados. Três: nós éramos fonte de socorro e conforto aos aflitos. Infelizmente, nós não temos cumprido nenhum desses papéis.

Acha que podemos esperar mais solidariedade no mundo? Esta crise servirá para manter a Europa mais unida, ou por causa dela nós veremos outra discussão sobre a utilidade da União Europeia, como aconteceu em 2011-2012?

Na América nós pagamos pela crise de 2008-2009 na prática, com o governo lançando títulos e o Fed [banco central americano] comprando. É o que está acontecendo agora na Europa com o banco central europeu. O resultado disso vai depender do tamanho do buraco, e no caso da Itália ele pode ser tão fundo que a relutância, digamos, dos alemães ou de outros europeus do Norte em mandar recursos à Itália talvez chegue a um ponto em que a Itália e também a Espanha digam: “Vamos ter de nos virar sozinhos, romper e desvalorizar nosso câmbio e não pagar a dívida para nos salvarmos”. É um cenário possível. Ao mesmo tempo, nós já depreciamos todos os câmbios do mundo. O que isso fará do dólar como reserva cambial e o que isso fará com as moedas quando todo mundo fizer a mesma coisa? Estamos vendo uma impressão em massa de dinheiro que ainda não acabou. Não acho que o iene tomará o lugar do dólar em breve, mas vou me repetir: nós não estamos tão bem sem nossa roupa de banho.

Teste para o coronavírus no Rio de Janeiro: o vírus não vai embora até surgir uma vacina | Mauro Pimentel/AFP

Qual seria o legado sociológico desta crise? Que tipo de mundo devemos esperar no médio prazo com base em tudo isso que mencionou?

Sempre me meto em confusão quando começo um texto com “o mundo nunca mais será o mesmo” [risos]. Tudo depende do intervalo de tempo, mas é preciso ter em mente o longo prazo. Tantas coisas serão digitalizadas que vamos descobrir coisas surpreendentemente boas. Por exemplo, por que diabos não fizemos isso de chamadas em vídeo antes? Estamos descobrindo novas ferramentas e novos usos. Vamos acelerar o ensino em casa, não há dúvida, mas passaremos a valorizar mais os professores. E também estamos entendendo a importância dos vizinhos, da qualidade da vizinhança. Creio que a impressão 3D vai explodir depois disso. Acho que as pessoas usarão impressoras 3D para buscar maneiras de encurtar a cadeia de fornecedores mais do que nunca.

E quem poderá sair prejudicado?

No curto prazo, isso vai acelerar o comércio pela internet. Vai ser muito difícil em alguns sentidos para o setor de varejo, que hoje está sendo arrasado, mas já estava difícil antes por causa da internet, com a migração para a compra online e para as Amazons do mundo. A parte triste, para mim, é que antes da crise — só posso falar dos Estados Unidos, não do Brasil — estávamos vendo alguns dos setores que ganham menos da nossa sociedade recebendo salários maiores, com a demanda e a competição por mão de obra e com a economia crescendo. Agora saímos desse cenário para outro de piso desabando e pressão social. Como cuidar dessas pessoas é o que vai de fato definir a política no Brasil e nos Estados Unidos, mais do que qualquer outro fator.

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