Produção da Eldorado: a venda da empresa ajudaria a pagar as dívidas do grupo J&F (João Quesado/Exame)
Maria Luíza Filgueiras
Publicado em 29 de junho de 2017 às 10h00.
Última atualização em 4 de julho de 2017 às 16h30.
São Paulo — Os seis conselheiros da fabricante de celulose Eldorado sabiam que teriam uma reunião tensa na manhã do dia 16 de fevereiro. A empresa, que é controlada pelo grupo J&F, da família Batista, e tem como sócios dois dos maiores fundos de pensão do país, a Funcef (da Caixa Econômica) e a Petros (da Petrobras), estava envolvida em três operações da Polícia Federal. Para tentar acalmar as autoridades, a Eldorado havia concordado, meses antes, em permitir uma investigação independente para avaliar sua contabilidade e suas práticas internas.
O relatório da investigação, conduzida pelo escritório de advocacia Veirano e pela consultoria EY, seria apresentado naquela reunião. Quando a apresentação começou, os dois conselheiros que representavam os fundos de pensão ficaram atônitos: parecia quase tudo bem, mas faltava uma explicação para um total de 37,4 milhões de reais em pagamentos feitos às empresas do doleiro Lúcio Funaro, preso desde julho de 2016 em meio à Operação Lava-Jato. Àquela altura, o papel de Funaro no submundo da política brasileira já era de conhecimento público. A recomendação dos advogados e dos consultores, caso quisessem detalhes, era que uma nova investigação, mais ampla, fosse feita para explicar quais serviços o doleiro havia prestado à Eldorado e à holding J&F. Coisa boa, pensaram alguns dos presentes, não deveria ser.
Os representantes dos fundos de pensão no conselho concordaram, mas Joesley Batista, presidente do conselho na época, achou desnecessário. Teve início uma discussão e, no meio da confusão, o representante da Funcef, Max Pantoja, pediu licença para ir ao banheiro. Discretamente, levou consigo o relatório de EY e Veirano e foi embora. Dias depois, o relatório foi parar na mesa do procurador do Ministério Público Federal Anselmo Lopes, um dos responsáveis pela Operação Greenfield, que investiga transações fraudulentas em fundos de pensão, incluindo o investimento feito na Eldorado. Parte do relatório e do depoimento de Pantoja ao Ministério Público, em que ele especula que os controladores da Eldorado estavam tentando cobrir irregularidades que ocorriam na empresa, tornou-se pública. Na época, Joesley Batista classificou a denúncia de “estapafúrdia e de cunho pessoal”.
Tudo isso aconteceu três meses antes de Batista fechar um acordo com o Ministério Público e fazer uma delação premiada — nos depoimentos, em maio, ele não apenas confirmou como também deu detalhes das irregularidades envolvendo a Eldorado e acrescentou outras à lista. Segundo o empresário, a J&F subornou executivos do Funcef e da Petros para que os fundos se tornassem acionistas e aportassem, cada um, 550 milhões de reais na empresa — sem esse dinheiro, a operação jamais teria saído do papel.
Ainda de acordo com Batista, houve doações à campanha do PT, a pedido do ex-ministro Guido Mantega, para conseguir empréstimos em bancos públicos, e pagou ao doleiro Lúcio Funaro para conseguir dinheiro com o FI-FGTS, fundo gerido pela Caixa Econômica Federal e que deveria buscar bons investimentos para o dinheiro dos trabalhadores ali depositado. O fundo acabou comprando 1 bilhão de reais em títulos da dívida da companhia, dando o impulso que faltava para concluir as obras da fábrica da Eldorado inaugurada em 2012. Ficou claro, nas informações prestadas pelo empresário, que a companhia dificilmente teria chegado aonde chegou sem as práticas ilegais, que garantiram recursos para erguer uma das maiores fábricas de celulose do mundo em tempo recorde.
Seria apenas mais um caso de polícia no currículo dos irmãos Batista não fosse a Eldorado fundamental para a saúde do grupo J&F hoje. Os Batista decidiram vender a empresa e usar os recursos para ajudar a pagar parte da multa de 10,3 bilhões de reais estipulada no acordo de leniência fechado com o Ministério Público e reduzir o endividamento do grupo, que alcança 70 bilhões de reais somando a dívida de todas as empresas. Há interessados numa eventual aquisição. Os principais são as fabricantes de papel e celulose Fibria e Suzano, do Brasil, e Arauco, do Chile.
O problema é que o histórico de corrupção torna a Eldorado um alvo que, se atrai cobiça, tem um quê de radioativo. A lista de preocupações dos potenciais compradores é extensa. Uma delas é o risco de a J&F não pagar o que deve e as autoridades decidirem buscar dinheiro nas empresas que faziam parte do grupo, o que está previsto no acordo de leniência. Para limitar o risco de perdas e conseguir fixar um preço para a Eldorado, segundo executivos próximos à transação, é preciso negociar em conjunto com o Ministério Público para não ter susto.
Outro receio é a possibilidade de a empresa ser processada. O conselheiro Max Pantoja quer processar a Eldorado e Joesley Batista pelas “declarações ofensivas” (procurado, ele não deu entrevista). EXAME apurou que o escritório Veirano, que analisou parte das operações da Eldorado, contratou um criminalista para avaliar o que fazer — o escritório não comenta, diz apenas que a investigação foi feita com base nas informações prestadas pela empresa. A consultoria EY diz que “os trabalhos foram realizados no limite do escopo contratado”. Por fim, os fundos de pensão tentam reverter as eventuais perdas que tiveram ao investir na companhia quando ela foi fundada em 2010.
A relação da cúpula da Eldorado com os fundos de pensão é a pior possível. Quando a Operação Greenfield começou, em setembro, a J&F, pressionada pelo Ministério Público, fechou um acordo em que se comprometeu a comprar a participação de Funcef e Petros na Eldorado por um valor que deveria assegurar o retorno das fundações sobre o montante investido. A partir daí, começou uma guerra de laudos de avaliação, com cada lado tentando ganhar em cima do outro.
A consultoria Deloitte havia avaliado a Eldorado em 17,6 bilhões de reais em 2015, a pedido da J&F, mas o grupo argumentou que o valor havia diminuído em razão da queda dos preços da celulose. O interesse dos Batista, claro, é pagar o mínimo aos sócios — que têm 8,5% do capital cada um. Em 2016, a Funcef contratou a consultoria Baker Tilly Brasil, que avaliou a empresa em 4,7 bilhões de reais, o que renderia 399 milhões de reais para cada fundo, em comparação aos 550 milhões totais investidos — um valor que a fundação considerou inaceitável.
Em janeiro deste ano, a Previc, órgão do Ministério da Previdência que regula os fundos de pensão, reforçou, num auto de infração, que a Petros pagou quantias superiores ao que valia a empresa. Petros e Funcef não comentaram. Executivos próximos às fundações afirmam que elas podem processar a Eldorado e a holding pedindo ressarcimento caso a diferença seja maior do que a quantia que elas já vão receber como parte do acordo de leniência.
A EXAME, José Carlos Grubisich, diretor-presidente da Eldorado, disse que desconhece essa possibilidade e que a relação com os fundos não mudou. A J&F acredita, segundo pessoas próximas ao grupo, que deixa de ter a obrigação de recomprar a fatia dos fundos de pensão porque vai vender sua participação na Eldorado — o compromisso, então, passaria a ser dos novos donos (questionado sobre isso, o Ministério Público não respondeu). Como os fundos têm o direito de receber o mesmo prêmio pago aos controladores caso a Eldorado seja vendida, decidiram esperar para negociar com os futuros controladores.
A criação da Eldorado, em 2010, surpreendeu Fibria e Suzano, as maiores fabricantes de celulose do país. Afinal, o plano era montar do zero a maior e mais moderna fábrica de celulose do mundo — à base de bilhões e bilhões de reais em financiamento. Não faltaram especialistas dizendo que o projeto iria naufragar. Diante de concorrentes atônitos com a “eficiência” da empresa em captar recursos, a primeira fase da fábrica da Eldorado foi inaugurada na cidade de Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul, em 2012. A construção levou apenas dois anos, prazo recorde para um projeto desse tamanho.
A festa de inauguração contou com uma apresentação do tenor italiano Andrea Bocelli e com a presença do então vice-presidente Michel Temer e do governador do estado, André Puccinelli. “A Eldorado é um produto de corrupção”, diz o executivo de um fundo de pensão. “A JBS foi turbinada pelo esquema de propina, mas a Eldorado foi viabilizada por ele.” A Eldorado passou a preparar uma possível abertura do capital para reduzir a dívida e expandir a fábrica. A operação não foi adiante. Primeiro, porque o declínio da economia brasileira praticamente inviabilizou novas ofertas de ações. Depois, porque a empresa entrou na mira da Justiça.
A primeira vez em que a Eldorado foi envolvida nas investigações policiais foi em julho de 2016, quando a PF deflagrou a Operação Sépsis, que apura esquemas de corrupção envolvendo a Caixa Econômica. Foram apreendidos documentos e computadores na sede da Eldorado. Dois meses depois, foi deflagrada a Operação Greenfield, com medidas cautelares contra os irmãos Batista e Grubisich (os advogados de Grubisich argumentaram à Justiça que ele não estava no grupo na época do investimento dos fundos de pensão; foi presidente da geradora de energia ETH, do grupo Odebrecht, até 2012). Em janeiro, a Operação Cui Bono incluiu a empresa nas investigações sobre outras transações com a Caixa.
Além das pendências judiciais, a J&F tem um enrosco financeiro a resolver na Eldorado. A dívida da empresa é alta, de 8 bilhões de reais, equivalente a cinco vezes a geração de caixa. Além disso, 2 bilhões de reais vencem em até um ano, e a empresa tem cerca de 1 bilhão de reais em caixa. Ou seja, para pagar o que deve, precisaria captar recursos em bancos ou no mercado de capitais. Sem a ajuda dos amigos do passado, porém, analistas acreditam que as linhas de financiamento serão escassas e mais caras.
A situação complicada levou a agência de classificação de risco Fitch a rebaixar a nota da Eldorado, já que pode ficar difícil honrar todos os pagamentos. Grubisich diz que a empresa só terá pagamentos relevantes a fazer a partir de setembro e que sua relação com os bancos continua boa, mantidas as linhas de crédito, inclusive do BNDES. “A Eldorado está no auge operacional e é a mais eficiente do setor”, diz ele, destacando a geração de caixa, que foi de 54% no ano passado (a geração de caixa da Fibria ficou em 43%, e a da Suzano, em 40%). Os números da Eldorado, no entanto, são rebatidos por especialistas ouvidos por EXAME.
Fibria e Suzano provisionam créditos de ICMS que têm a receber — isso significa que consideram baixa a chance de receber de fato esses recursos e, por isso, não viram automaticamente receita ou lucro. Já a Eldorado inclui esses valores na geração de caixa. “O indicador Ebitda serve para medir a eficiência de uma empresa em produzir bem. Um crédito tributário não atenderia a esse propósito”, diz Ricardo Almeida, professor de finanças no Insper. O mesmo aconteceria com os “ativos biológicos”, como a madeira armazenada para produzir celulose.
Esses ativos só terão um valor de mercado no futuro, quando a celulose for produzida e vendida, mas as empresas fazem estimativas de quanto valem hoje. A Eldorado também inclui esse valor em seu indicador de geração de caixa. “Como a geração de caixa não é um valor contábil, não é alvo das auditorias”, diz um analista. Se ela seguisse o padrão dos concorrentes, a margem seria mais parecida com a da Fibria e a da Suzano, de acordo com os especialistas. A Eldorado diz que “segue o conceito puro de Ebitda” e tem “números auditados e públicos no balanço”.
Por que, então, há interessados em comprar a empresa? Ainda que haja questionamentos sobre o patamar de eficiência e sobre sua capacidade de se expandir, a Eldorado tem o menor custo do setor graças a investimentos em tecnologia e gestão. Além disso, cresceu mais do que o esperado: a meta inicial era que a primeira fase da fábrica produzisse 1,5 milhão de toneladas de celulose — chegou a 1,6 milhão de toneladas em 12 meses. A empresa conseguiu driblar uma das dificuldades iniciais, que era não ter florestas próprias em número suficiente para abastecer a produção ao firmar contratos de longo prazo de arrendamento nas proximidades da fábrica.
EXAME apurou que os bancos que assessoram Arauco, Fibria e Suzano avaliam a Eldorado em até 11 bilhões de reais, incluindo a dívida de 8 bilhões de reais (as empresas não deram entrevista, mas confirmam em nota ao mercado seu interesse no negócio). O valor pedido inicialmente por Wesley Batista, irmão de Joesley e responsável por conduzir as negociações com os potenciais compradores, era de 13 bilhões de reais. No preço, os potenciais compradores incluem o risco de a venda ser embargada pela Justiça, como aconteceu com a tentativa da empresa de alimentos JBS, também controlada pela J&F, de vender ativos na América do Sul em junho. No caso da Eldorado, a expectativa é que compradores e vendedores cheguem a um acordo em 45 dias. Dessa vez, sem atalhos.
Atualização (4/jul/2017): corrigida informação sobre investimento dos fundos de pensão