Nicolás Maduro, da Venezuela: as distorções econômicas provocadas pelo regime chavista levarão anos para ser corrigidas | AGB Photo /
Filipe Serrano
Publicado em 14 de fevereiro de 2019 às 05h42.
Última atualização em 14 de fevereiro de 2019 às 05h42.
Uma cena insólita marcou a entrevista que Nicolás Maduro concedeu a jornalistas na tarde do dia 8 de fevereiro. Naquela hora, o líder venezuelano já falava por mais de 30 minutos e aproveitava a entrevista para criticar o carregamento de alimentos e remédios, enviado pelos Estados Unidos, que aguardava na fronteira com a Colômbia. “Não vamos ser mendigos de ninguém”, disse Maduro, classificando a ajuda humanitária e as sanções impostas pelos Estados Unidos ao país como um “show” da oposição. “Eles roubam nosso dinheiro e, depois, nos entregam papel higiênico.” De repente, o microfone de Maduro ficou mudo e as luzes do Palácio Miraflores, sede da Presidência venezuelana, se apagaram, deixando o presidente e os jornalistas no escuro. A transmissão na TV foi interrompida, e só foi retomada quando a energia do Palácio Miraflores voltou, 5 minutos depois.
Desde que a Venezuela começou a enfrentar uma severa crise econômica, em 2014, os apagões tornaram-se frequentes nas cidades do país por causa da falta de manutenção da rede elétrica. Sem energia, nem alimentos, nem remédios, nem sequer produtos básicos de higiene, os venezuelanos vivem um drama sem precedentes na história recente da América do Sul. A pobreza atinge 91% da população. O salário mensal de um professor venezuelano, por exemplo, equivale hoje a apenas 8 dólares (aproximadamente 30 reais). O empobrecimento é uma consequência de uma forte desvalorização cambial combinada a uma hiperinflação que, neste ano, deverá atingir 10.000 000% (dez milhões por cento), segundo previsão do Fundo Monetário Internacional.
A situação da Venezuela é a de um colapso que só se iguala à de países em guerra, como a Síria. A economia perdeu mais de dois terços do valor em seis anos. Se em 2012 o produto interno bruto era de 331 bilhões de dólares, no ano passado ele chegou a 96 bilhões. Com a queda, a população também perdeu o poder de compra. A renda per capita, que era de 15.900 dólares em 2014 (então uma das maiores da América Latina), deverá diminuir para 3.900 dólares neste ano. Em meio a essa situação, pelo menos 3 milhões de cidadãos deixaram o país, incluindo milhares de professores, médicos, engenheiros e outros profissionais de nível superior que dificilmente terão razões para retornar enquanto a crise se estender.
Aqueles que ficaram na Venezuela têm dificuldade de encontrar trabalho. A taxa de desemprego chega a 34% da população ativa, cerca de três vezes a do Brasil. Dados do Conselho Nacional do Comércio e dos Serviços da Venezuela (Consecomercio), uma entidade do setor privado, mostram que 500.000 empresas encerraram as atividades de 2002 a 2018. Só 230.000 continuam ativas. “Praticamente já não existem mais empresas que fazem distribuição de gás, nem papelarias, nem gráficas na Venezuela, porque todos os seus insumos são importados”, diz Josefina Salvatierra, diretora executiva da Consecomercio. Na indústria, a situação é parecida. Das 3.200 companhias, 700 estão fechadas porque não conseguem importar a matéria-prima necessária para a operação, segundo a Confederação Venezuelana da Indústria.
Nem o setor petroleiro, que sustenta a economia, está indo bem. A produção caiu à metade nos últimos cinco anos, para aproximadamente 1,5 milhão de barris por dia. A recente decisão do governo de Donald Trump de bloquear as contas de subsidiárias da estatal PDVSA baseadas nos Estados Unidos e impedir a importação de petróleo venezuelano só tende a piorar a situação e aumentar a pressão sobre Maduro. Os Estados Unidos compram mais da metade do petróleo exportado pela Venezuela. O restante tem como destino a China e a Índia, além de outros países. Substituir as vendas para os Estados Unidos não é fácil. Para que o petróleo bruto seja exportado, é necessário diluí-lo com produtos químicos comprados de empresas americanas, agora impedidas de vender para a Venezuela. Se as sanções forem mantidas durante todo o ano de 2019, a economia venezuelana poderá ter mais uma retração de 40%, aprofundando ainda mais a crise, segundo uma estimativa da consultoria britânica Oxford Economics.
Será difícil reverter as décadas de distorções econômicas provocadas pelos regimes bolivarianos de Hugo Chávez (morto em 2013) e Nicolás Maduro. A nova esperança dos venezuelanos é que Juan Guaidó, o jovem líder da Assembleia Nacional declarado presidente interino com um amplo apoio internacional, tenha sucesso em garantir a saída de Maduro da Presidência para restabelecer a democracia no país — um primeiro passo fundamental para a reconstrução da economia. Guaidó, que até janeiro era um político desconhecido, tem se esforçado para estabelecer-se como uma alternativa política viável em oposição ao governo Maduro. Seu objetivo é fazer com que a Venezuela realize novas eleições para então formar um governo legítimo (a última eleição presidencial que reelegeu Maduro, em maio do ano passado, não foi reconhecida pela comunidade internacional por causa de irregularidades, alta abstenção e indícios de manipulação).
Um projeto apresentado por Guaidó, chamado de Plano País, elenca algumas das prioridades para a reconstrução da Venezuela. Em primeiro lugar, é preciso fornecer alimentos e remédios à população desnutrida de forma emergencial. É por isso que nas últimas semanas o presidente interino vem pressionando o regime de Maduro para permitir a entrada dos carregamentos de ajuda humanitária enviados pelos Estados Unidos. “É preciso abrir um corredor para atender a essa emergência sanitária”, disse Guaidó em um vídeo publicado nas redes sociais. No dia 12, uma série de protestos foi organizada no país para pressionar o governo Maduro a aceitar o pacote de ajuda.
O passo seguinte exigirá maior articulação internacional. Segundo o plano de Guaidó, é preciso buscar um empréstimo no FMI e em outras instituições multilaterais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco de Desenvolvimento da América Latina, num valor que pode chegar a 80 bilhões de dólares. O objetivo é usar o dinheiro para estabilizar a inflação e recuperar o mercado de crédito, para que as empresas do país possam voltar à atividade, a investir e a gerar empregos. “O primeiro desafio a atacar é a hiperinflação. E, nesse sentido, é preciso combinar as ações com uma política de combate ao déficit fiscal, reduzindo o gasto público de forma racional”, diz a economista Sary Levy, professora na Universidade Central da Venezuela e uma especialista, entre outros, que tem contribuído para a formulação do plano econômico de Guaidó.
Uma medida essencial é retirar os mecanismos de controle de preços, que hoje são um desincentivo para as empresas, e privatizar as centenas de companhias que foram nacionalizadas durante o período chavista. Também será preciso renegociar a dívida externa. Há anos, o governo não tem honrado os pagamentos de títulos públicos emitidos no exterior. O valor devido já soma 63 bilhões de dólares e será uma dor de cabeça para quem assumir o poder no país.
No longo prazo, uma reforma da Venezuela também precisará buscar maior diversificação da economia. Hoje, as exportações de petróleo representam 88% de tudo o que o país vende ao exterior. O setor agrícola e o industrial são pouco desenvolvidos e precisam receber investimentos para competir no mercado internacional. Para José Botafogo Gonçalves, ex-embaixador e membro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, é nesse ponto que o governo brasileiro tem mais potencial de ajudar numa eventual reconstrução da Venezuela. “Uma assistência técnica para aumentar a produção interna de alimentos é uma coisa que o Brasil e a Embrapa têm muitas condições de fazer”, diz Gonçalves.
Qualquer saída para a crise venezuelana passa, obrigatoriamente, por uma negociação com os militares do país. O alto escalão das Forças Armadas hoje está no controle da distribuição de alimentos e também no comando da maioria das empresas, a começar pela petroleira PDVSA. O general da Força Aérea Francisco Estéban Yánez Rodríguez, por enquanto, foi um dos poucos militares a manifestar apoio publicamente a Juan Guaidó como presidente interino. Para Javier Corrales, professor de ciência política na universidade Amherst College, nos Estados Unidos, o fato de não ter havido uma repressão contra Guaidó é um sinal de que os militares estão divididos. “Não é uma surpresa que as Forças Armadas não estejam trocando de lado tão rapidamente. Os militares se envolveram muito no governo Maduro. Eles são os maiores vencedores nesta crise. E não têm certeza se vão estar numa situação tão boa num eventual governo Guaidó”, diz Corrales.
Com a resistência de Maduro em deixar o poder, qualquer tentativa de enfrentar a hiperinflação e recuperar a economia venezuelana estará incompleta, e a população continuará convivendo com a falta de alimentos e com os apagões de energia. Como tantos exemplos na história, o caso da Venezuela mostra, mais uma vez, que garantir o Estado de direito, a livre concorrência e eleições justas são a forma mais eficiente de voltar a gerar prosperidade.