Revista Exame

Do jeito que está, é melhor não fazer reforma nenhuma, diz Marcos Lisboa

Marcos Lisboa, do Insper: “Há uma dificuldade crescente de fazer uma política econômica coerente no Brasil”

Para o economista Marcos Lisboa, presidente da escola de negócios Insper, pior do que não fazer reformas é aprovar mudanças que custarão caro à sociedade num momento como o atual. Ele aponta que o Brasil vive as agruras do baixo crescimento nos últimos 40 anos pela atuação de grupos de interesse que capturam o Estado. E que é preciso enfrentá-los para aproveitar o melhor dos talentos e empreendedores que protagonizam histórias de sucesso  (Insper/Divulgação)

Para o economista Marcos Lisboa, presidente da escola de negócios Insper, pior do que não fazer reformas é aprovar mudanças que custarão caro à sociedade num momento como o atual. Ele aponta que o Brasil vive as agruras do baixo crescimento nos últimos 40 anos pela atuação de grupos de interesse que capturam o Estado. E que é preciso enfrentá-los para aproveitar o melhor dos talentos e empreendedores que protagonizam histórias de sucesso (Insper/Divulgação)

FS

Fabiane Stefano

Publicado em 16 de setembro de 2021 às 05h08.

Última atualização em 23 de setembro de 2021 às 12h29.

O economista Marcos Lisboa, presidente da escola de negócios Insper, é um crítico feroz dos chamados grupos de interesse que capturam o Estado brasileiro. São eles que impedem as reformas ou, pior, acabam influenciando a promoção de mudanças na economia que vão custar mais caro à sociedade brasileira. “Há uma série de temas em que, independentemente de qual seja o governo, o país não consegue avançar porque há grupos que se beneficiam desse Estado disfuncional”, diz o economista. 

Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda do primeiro governo Lula e ex-vice-presidente do Itaú, Lisboa acredita que as propostas de mudança no imposto de renda e da capitalização da Eletrobras são exemplos de que reformas ruins podem custar mais ao país. Lisboa, atual CEO do Insper e que recentemente passou a integrar o conselho da startup de tecnologia Méliuz, diz ainda que o país vive um longo período de fragilização institucional, que começou anos atrás, e que a conjuntura atual apenas agrava a perspectiva do país. “Há uma degradação institucional e uma dificuldade crescente de fazer uma política econômica coerente no Brasil.” Leia trechos da entrevista concedida à EXAME: 

O Brasil vive há anos em crise econômica, agravada por uma crise política. Como o senhor vê o Brasil de 2021?

Antes, vamos olhar um pouco para trás. O Brasil tem dificuldade de crescer há mais de 40 anos. É uma economia de baixo crescimento desde o fim dos anos 1970, com problemas estruturais graves. O país tem se afastado das nações ricas e cresceu menos do que boa parte dos emergentes. Apesar disso, do resultado médio geral da economia, alguns setores têm se destacado recorrentemente e aumentado sua produtividade. O agronegócio é um exemplo, e há outros na área de tecnologia. Isso compensa um pouco o restante do país, que tem muita dificuldade. A conjuntura atual agrava a perspectiva do país, mas os problemas estruturais vêm de décadas.

Mas por que a economia brasileira é tão disfuncional?

Independentemente do governo, toda vez que se tenta reduzir essas distorções, parte do setor privado se opõe. Temos grupos organizados que se beneficiam desse Estado disfuncional. As pessoas cobram “tem de fazer reforma tributária”, mas elas reagem “não podem cortar meu benefício tributário”. A ideia de toda economia ter a mesma carga tributária esbarra, por exemplo, em questões como o setor de serviços, que não quer pagar o mesmo que outras atividades. O setor público também é um obstáculo às reformas. Um estado ou município que queira aplicar avaliação do aprendizado dos alunos — não pelo gasto, mas pelo que os estudantes aprendem — sofre imensa resistência das corporações de servidores. Por que o nosso Judiciário é tão caro em relação ao restante do mundo? Há uma série de temas em que, independentemente do governo, e quero enfatizar isso, o país não consegue avançar porque os grupos de interesse resistem. 

Mas em relação ao governo Bolsonaro, em particular, qual é a avaliação?

O atual governo tem duas dificuldades grandes. A primeira é que ele tem uma agenda bastante confusa. O caso da reforma tributária é típico. Havia uma proposta no Congresso, a PEC 45, que propõe um regime tributário semelhante ao dos países da OCDE. O governo sinaliza que vai com ela e depois não vai mais. Aí cria outra versão só com os tributos federais. Depois, passa a apoiar uma reforma do imposto de renda cheia de distorções. O governo anuncia medidas e parece concordar com agendas que vão em certa direção, mas quando ele detalha as propostas vemos que são muito frágeis, incompletas e cheias de problemas. A segunda dificuldade é que este governo tem pouca atua­ção no processo legislativo, em garantir a consistência das medidas. Então, propostas entram de um jeito e saem de outro completamente diferente. 

A tensão entre os Poderes não eleva esse problema?

Sim, o ambiente institucional agrava o cenário econômico e gera instabilidade. Mas essa fragilização institucional vem de bastante tempo. As intervenções no setor elétrico, no setor de óleo e gás, regras especiais criadas para o setor automobilístico, regras incompatíveis com a OMC... Há muitos outros exemplos. Toda a questão do orçamento público que foi capturado pelas emendas parlamentares. Temos emendas indivi­duais, emendas de bancada, e neste governo veio a inovação das emendas do relator. Enfim, há uma degradação institucional e uma dificuldade crescente de fazer uma política econômica coerente no Brasil. 

Vemos manifestações nas ruas e voltamos a debater se há risco à democracia e às instituições. Como o senhor vê esse debate? 

Essa é mais uma etapa da fragilização institucional no país. Acho que as instituições do Estado de direito têm protegido, têm sido muito firmes no processo, mas certamente essas incertezas impactam toda a economia.

Congresso Nacional: “O governo tem pouca atuação no processo legislativo, em garantir a consistência das medidas que propõe. As propostas entram de um jeito e saem de outro completamente diferente” (Sergio Lima/Getty Images)

Nesse ambiente, como o setor privado consegue operar? 

Com muita dificuldade. Como se faz o cálculo de um plano de negócios? Como se planejam investimentos em áreas como infraestrutura? São investimentos de longuíssimo prazo em que é necessário ter confiança nas regras e nos contratos. Quanto mais se depende de infraestrutura e de investimentos de longo prazo, mais difícil é tomar decisões. O Brasil tem muitos talentos, muitos empreendedores, muitas histórias incríveis de sucesso. Quanto mais é afetada pelo quadro disfuncional, mais a empresa sofre. 

A discussão do pagamento de precatórios, que somam quase 90 bilhões neste ano, tornou-se um motivo para mais incertezas, sobretudo em relação a um possível rompimento do teto de gasto?

Precatório é dívida judicial e tem de ser pago. Além disso, temos outro problema aqui: o volume de precatórios vem aumentando há muitos anos. Isso está no balanço de riscos do governo. Agora, a União está fazendo a gestão mais adequada dos processos judiciais? Essa é uma pergunta que tem de ser feita. O número está ficando estratosférico. Uma parte desse aumento real era sabido que aconteceria. Agora, o teto de gastos é uma regra para evitar o aumento do endividamento. Todo mecanismo feito para dar um bypass nesse teto, no fundo, é a sociedade dizendo: “Vamos endividar mais o país”. O Brasil já tem um Estado caro e ineficiente. Outros países emergentes com um setor público do mesmo tamanho que o do Brasil conseguem fazer muito mais, seja no Judiciário, seja na educação de base... Precisamos discutir prioridades na hora de fazer o orçamento público. O que está ou não funcionando? O que é mais ou menos eficaz? Ou vamos simplesmente criar apenas novas políticas, como tem sido nosso hábito desde sempre? A gente não está conseguindo fazer isso. O teto leva a essa discussão, mas há uma resistência muito grande no debate orçamentário. 

O aumento da inflação também se tornou um fator de risco...

Estamos no meio de um choque de commodities muito favorável ao Brasil. Era para o câmbio estar bem mais valorizado. Isso é resultado da instabilidade e das incertezas sobre as regras do jogo e o caminho que o país está seguindo. Há essa constatação de que é um país de baixo crescimento, que não consegue enfrentar seus problemas e sem previsibilidade. O grau de instabilidade, a que se adicionou o conflito institucional, gera um câmbio mais desvalorizado, o que tem impacto sobre os preços e sobre a inflação. É verdade que houve excessos na política econômica no último um ano, justificados no contexto da pandemia. Mas houve excessos, com pouca focalização no auxílio emergencial para quem realmente precisa. Parte da sociedade dizia: “Não vamos pensar nisso agora”. Parafraseando Conselheiro Acácio [personagem da obra O Primo Basílio, de Eça de Queiroz], “as consequências vêm sempre depois”. 

Como o senhor vê a economia para 2022?

A economia vai andar de lado. Há alguma recuperação que virá da área de serviços, mas os problemas estruturais estão aí. Fizemos algumas reformas nos últimos cinco anos que melhoraram um pouco a economia, mas muitas pioraram muito a economia. Toda parte do setor elétrico, que é muito relevante para o funcionamento de toda a economia, tem problemas graves há muitos anos. E, em vez de melhorar, os problemas têm se agravado. Houve uma fragilização das agências reguladoras nesse período. A intervenção do setor elétrico deixou sequelas graves. Há diagnósticos de propostas de reformas que estão prontas e paradas há anos no Senado. Essa crise é uma crise anunciada.  

Dado o momento atual, é baixa a perspectiva de alguma reforma estrutural ser aprovada até o final do atual governo?

Do jeito que está aí, é melhor não fazer reforma nenhuma. As reformas estão piorando o quadro. A do imposto de renda é muito ruim e aumenta as distorções. Ela deveria atender dois princípios básicos: quem ganha igual paga igual, e quem ganha mais paga mais. Não é isso que essa reforma faz. Ela preserva o privilégio de vários prestadores de serviços no regime de lucro presumido. Ou seja, apesar de terem uma renda alta, essas categorias pagam muito menos imposto sobre a renda do que os trabalhadores. A capitalização da Eletrobras, que obriga, por exemplo, o Estado a fazer gasodutos no litoral, cria um custo adicional para a sociedade brasileira desnecessário por causa das pressões, novamente, de grupos de interesse. 

Essas pressões vêm aumentando? 

Acho que elas estão aumentando progressivamente ao longo de todos os governos. A gente assiste a isso desde o fim da década de 2000. Foram todas as políticas setoriais para beneficiar conteúdo nacional, distribuição de benefícios tributários, projetos de desenvolvimento que privilegiavam a empresa A ou a empresa B. Isso continua.

Não há uma contradição numa sociedade que briga por esses privilégios individuais e, ao mesmo tempo, pela modernização do Estado brasileiro?

Existe uma esquizofrenia. Em tese, muita gente defende as reformas, a tributação progressiva e um Estado mais eficiente, mas, quando essas mudanças vão ser implementadas, as pessoas descobrem que os privilegiados são elas mesmas — e se opõem. Aí vemos vários organismos da sociedade civil falando “veja bem, no meu caso, não”. Vimos manifestações de associações de advogados, de médicos... As pessoas têm dificuldade para perceber que elas estão no topo da pirâmide de renda. Se uma pessoa ganha 30.000 reais por mês, ela está entre o 1% mais rico do país. Não dá para ter uma tributação progressiva com o 1% pagando menos do que um trabalhador formal. 

A pandemia trouxe inovações no jeito de operar de muitas empresas. Isso vai ser incorporado definitivamente nos modelos de negócios?

Varia. Isso depende muito do setor. Há áreas­ em que as empresas se adaptaram muito bem com a tecnologia remota. O que ocorreu foi um grande experimento social em que as empresas foram obrigadas a migrar para o trabalho remoto. Essa mudança simultânea mostrou que muitas empresas se adaptaram bem. Há alguma correlação com o nível de educação dos trabalhadores e as atividades que exigem profissionais mais qualificados. As pesquisas nos Estados Unidos mostram essa dicotomia entre os trabalhadores mais qualificados, com mais possibilidades no mundo remoto, e os menos qualificados e que precisaram ficar distanciados. O impacto desse fenômeno vai ser particularmente grave para o Brasil. O país descuida da educação há muitos anos, e essa população com menos qualificação vai enfrentar dificuldades crescentes diante da forma como as empresas operam, agravada agora pelos novos processos incorporados na pandemia, e de um mercado de trabalho que valoriza a formação. O Brasil é um país que não consegue avançar no combate à desigualdade de oportunidades, que começa na educação básica e universal.


(Publicidade/Exame)

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