Sardinha: a produção nacional não atende ao consumo (Stock.Xchng)
Da Redação
Publicado em 16 de novembro de 2011 às 06h00.
São Paulo - Parece história de pescador: alimento barato e popular, a sardinha em lata sempre figurou entre os pescados de segunda categoria, mas recentemente entrou para a agenda do primeiro escalão do governo brasileiro. A ascensão começou em junho do ano passado, quando a tarifa de importação do produto foi elevada de 16% para 32%.
A mudança atendeu a pedidos do Ministério da Agricultura e do Conselho Nacional de Pesca e Aquicultura, entidade que reúne representantes das empresas do setor.
Ambos viam na barreira uma estratégia para fortalecer a pesca e a industrialização do peixe nacional — representada por duas grandes companhias: a Coqueiro, do grupo gaúcho Camil, e a Gomes da Costa, da espanhola Calvo, donas de mais de 80% das vendas.
Na época, o empresário mineiro José Eduardo Simão, ex-dono da Gomes da Costa, que acabara de lançar a marca Beira Mar, importando peixe enlatado da Tailândia, protestou.
Seu argumento era que a oferta de sardinha estava no limite e o país já dependia da importação. O Brasil pesca 60 000 toneladas por ano e enlata um total de 110 000 toneladas, contando com sardinha importada. O consumo, embalado pelo aumento da renda dos mais pobres, só cresce. No governo, ninguém quis ouvir.
Neste ano, a sardinha voltou a frequentar as reuniões em Brasília, desta vez pelo motivo oposto. As indústrias nacionais pediram autorização para importar o peixe congelado, com alíquota de 2%. E levaram.
A justificativa: falta sardinha brasileira. Ainda assim, o produto enlatado continua pagando a tarifa máxima. “Importar sardinha em lata é uma ameaça aos empregos no Brasil”, diz Antônio Carlos Conquista, secretário de Infraestrutura e Fomento do Ministério da Pesca. O setor emprega pouco mais de 3 000 pessoas. Instalada nas rodas palacianas, a sardinha agora alimenta controvérsias diplomáticas.
O Peru tentou negociar que sua anchoveta entrasse no Brasil com o nome de sardinha — mudança que poderia elevar a venda do produto peruano por aqui. O Brasil negou.
A disputa foi parar na Organização Mundial do Comércio. Pelo código alimentar das Nações Unidas, anchoveta e sardinha são a mesma coisa e o Peru já ganhou uma briga parecida com a União Europeia.
Enquanto os produtores nacionais reinam absolutos, o consumidor brasileiro paga mais pelo peixe. O quilo da sardinha nacional custa 65% mais que o das importadas e o preço no mercado subiu 19% desde 2007.
À mercê do lobby
O caso da sardinha é o exemplo pitoresco dentro do que o governo entende hoje como um avanço na área da defesa comercial. Com a alegação de que, frente à guerra cambial e aos riscos da crise dos países ricos, é preciso fomentar a indústria, os produtos e os empregos locais, estão sendo erguidas barreiras em torno dos mais diversos setores que se sentem ameaçados pelos estrangeiros.
Neste ano, tiveram a alíquota de importação elevada ao teto de 35% artigos como barcos esportivos, aparelhos de ar condicionado e porcelanato. Todos são produtos de nicho, com preços elevados para a maioria dos brasileiros, e cuja produção está concentrada em poucos fabricantes.
Como a estratégia não é uma reação a atos de concorrência desleal, os especialistas em comércio internacional têm outro nome para as medidas: protecionismo.
“A defesa comercial é uma reação justa a um ato ilícito de um concorrente desleal e está prevista na lei do comércio internacional”, diz Fernando Ribeiro, economista da Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior. “Protecionismo é a defesa de poucas empresas, com prejuízos para os consumidores. O que se vê hoje no Brasil é o avanço do protecionismo movido pelo lobby de setores organizados.”
A escalada protecionista brasileira é visível nas pesquisas internacionais. Segundo um levantamento da Global Trade Alert, centro de estudos especializado em catalogar barreiras comerciais, o Brasil é o sexto país mais protegido do mundo, junto com a Alemanha e à frente do Reino Unido e da França, três países conhecidos pela arte de criar desculpas para fechar as fronteiras a empresas mais eficientes que as suas.
Como o comércio é globalizado, esse tipo de proteção pode criar mais problemas do que soluções para a economia. “Os negócios estão interligados: para produzir internamente e exportar, é preciso importar”, diz Eduardo Matias, especialista em direito internacional da banca L.O. Baptista Advogados. “Se um país errar na mão na defesa de seus interesses, os parceiros vão reagir.”
O melhor exemplo dessa lógica está na reação às recentes medidas para proteção do setor automotivo. Em setembro, o governo anunciou que a partir de dezembro adotará uma taxa adicional de 30 pontos percentuais no imposto sobre produtos industrializados de carros que tenham menos de 65% de peças nacionais (exceção feita aos veículos produzidos no Mercosul e no México, com o qual o Brasil tem um acordo setorial).
A medida visa barrar o aumento das importações de carros da Ásia, em particular da Correia do Sul e da China. Entre os 40 importados mais vendidos no país, 19 terão acréscimo no IPI — todos são asiáticos.
Para o ministro da Fazenda, Guido Mantega, o Brasil sai no lucro, porque os importadores terão de instalar fábricas no país. Na prática, não é bem assim.
Os anúncios de investimentos vistos recentemente, como o de 1 bilhão de reais da Volkswagen e os das chinesas Chery e JAC (pouco mais de 2 bilhões de reais somados), ocorreram antes da divulgação das medidas de proteção à produção nacional.
A Foton Aumark, empresa com capital nacional criada para importar veículos da Foton, maior montadora chinesa de caminhões, avisou que o Brasil pode perder para o México a fábrica de 500 milhões de dólares planejada para atender o mercado brasileiro. No caso do setor automotivo, a OMC deve ser acionada.
A medida fere uma regra básica das leis do comércio internacional: dar tratamento igualitário a produtos nacionais e estrangeiros. Japão e Coreia avisaram que, baseados nesse princípio, vão questionar a sobretaxa.
“O Brasil é atavicamente protecionista, mas as medidas recentes são ainda mais rústicas que o habitual: a decisão sobre o IPI é ilegal e discriminatória”, diz Paulo Roberto de Almeida, professor de economia política do Centro Universitário de Brasília.
Custo Brasil
Mais do que proteger esse ou aquele setor, é hora de o governo se preocupar em tornar as empresas locais mais competitivas aliviando os muitos pesos do custo Brasil.
O sal do Chile foi acusado de fazer concorrência desleal ao sal brasileiro porque os produtores montaram uma estratégia de logística inteligente.
Para entrar aqui com preços mais baixos, os chilenos negociaram descontos nos fretes de navios que chegavam ao Chile carregados e retornavam vazios ao Brasil. O sal do Rio Grande do Norte, maior produtor nacional, ao contrário, incorpora no preço as ineficiências de nosso sistema de transporte.
O problema, portanto, é nosso. Ainda assim, o sal chileno teve um aumento de imposto para preservar o produto nacional. O processo de antidumping contra calçados chineses levou a reboque os tênis. De fato, o baixo custo da mão de obra na China torna seus sapatos imbatíveis.
Porém, 27% do preço do tênis brasileiro de corrida, categoria mais vendida no país, é imposto e até fabricantes nacionais foram para outros países para se livrar dele.
“A proteção beneficia o ineficiente”, diz Ricardo Sennes, sócio da Prospectiva Consultoria, especializada em comércio exterior. “Oferecer um ambiente que incentive a produtividade e a inovação é mais efetivo — e essa agenda o governo está devendo.”