Leta, da Fazenda Futuro: um produto, três meses de vida e 100 milhões de dólares de valor de mercado (Germano Lüders/Exame)
Marina Filippe
Publicado em 12 de setembro de 2019 às 05h50.
Última atualização em 12 de setembro de 2019 às 10h15.
Em cerca de 3.800 pontos de venda em todo o brasil, desde junho, quem passou pela prateleira de carnes bovinas deparou com uma novidade, à primeira vista fora de lugar: um hambúrguer à base de ervilha, soja e beterraba. Sob a marca Fazenda Futuro, o produto promete manter o gosto original da versão com carne bovina. “Não estamos em busca apenas dos consumidores veganos mas também dos carnívoros que procuram uma opção mais saudável e sustentável sem abrir mão do sabor”, diz Marcos Leta, fundador da empresa ao lado do sócio Alfredo Strechinsky.
A dupla é a mesma que criou a fabricante de bebidas Do Bem, de sucos e chás, vendida à Ambev em 2016 por um valor não revelado. Nos últimos dois anos, eles compraram maquinário alemão e passaram a testar receitas com a ajuda de inteligência artificial para obter textura e aparência semelhantes às dos hambúrgueres de origem animal. A beterraba, no caso, faz as vezes do sangue. Além do sabor, o produto — que também já é servido em algumas lanchonetes premium — promete a mesma quantidade de proteínas, com 15% menos gorduras e 90% menos colesterol.
A reportagem de EXAME provou dois diferentes sanduíches com o hambúrguer: o sabor não remete às tradicionais opções vegetarianas, mas, sim, à linguiça calabresa. A cor é “vermelho-mal-passado”, mas a textura ainda não se aproxima da consistência de carne bovina.
No final de julho, a Fazenda Futuro recebeu uma oferta de 8,5 milhões de dólares da Monashees, gestora de capital brasileira com participação em empresas como a de transporte 99 e a de entregas Rappi. Com um produto e três meses de vida, a Fazenda Futuro é avaliada em 100 milhões de dólares. O outro passo foi a exportação. Um dos primeiros destinos, em agosto, foi o Uruguai, país conhecido pelo culto aos cortes bovinos.
Leta tenta, guardadas as proporções, seguir os passos da americana Beyond Meat, fabricante de carne vegetal criada em 2009 na Califórnia. O valor de mercado da empresa saltou 700% desde sua estreia na bolsa em maio e atingiu mais de 13 bilhões de dólares. O ritmo seguiu a mesma velocidade de sua expansão no mercado. A marca já está em mais de 30.000 supermercados, restaurantes e outros pontos de venda na Europa e na América do Norte. A Impossible Meats, também californiana, criada em 2011, fornece seus produtos a mais de 2.000 lojas da rede de lanchonetes Burger King nos Estados Unidos.
No Brasil, o Burger King fechou parceria com a produtora de hambúrgueres Marfrig e passou a comercializar a opção vegetariana neste mês, nas unidades paulistas. A previsão é de que, em novembro, o sanduíche seja vendido em todas as unidades da lanchonete no país. Uma novíssima geração de startups de alternativas à carne promete algo ainda mais inovador: opções desenvolvidas em laboratório com células animais de verdade (veja quadro mais abaixo).
Estima-se que o custo do hambúrguer sintético alcançará o mesmo patamar do produzido com carne de verdade daqui a cinco anos. Diante desses avanços, o mercado global de substitutos de carne ganhou projeções impressionantes: segundo um estudo do banco de investimento Barclays divulgado no final de maio, esse mercado poderá chegar a 140 bilhões de dólares por ano em 2029, o equivalente a 10% da fatia do mercado de carnes convencionais.
O fenômeno retrata a velocidade com que novos hábitos começam a remodelar a indústria de alimentos no mundo. No centro das mudanças, um consumidor cada vez mais sensível aos apelos de saudabilidade e sustentabilidade. Segundo dados da empresa de pesquisa Euromonitor, o mercado global para produtos saudáveis — que vão dos orgânicos àqueles sem glúten e sem lactose — faturou 446 bilhões de dólares no último ano, o equivalente a 20% de toda a venda de alimentos industrializados. O que já foi apenas um nicho ganha relevância ano a ano. E deverá continuar assim, visto que o ritmo de crescimento dessas categorias é maior que o da indústria como um todo (veja quadro mais abaixo).
No Brasil, acontece algo semelhante. Os produtos considerados saudáveis faturaram 26,5 bilhões de dólares em 2018 — valor 53% maior que o de cinco anos antes. O mercado total cresceu 40% nesse período. “Os fabricantes estão dispostos a disputar a liderança em segmentos de rápido crescimento”, diz Maria Mascaraque, analista global de alimentos e nutrição da Euromonitor.
De acordo com a consultoria Kantar, a saúde é o terceiro assunto que mais preocupa os brasileiros, atrás da crise econômica e da violência. Há razões objetivas para isso. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde em julho mostram que mais da metade da população do país está acima do peso: quase 56% dos brasileiros têm índice de massa corporal acima do considerado ideal pela Organização Mundial da Saúde. Em 2006, quando o ministério passou a acompanhar esse dado, menos de 43% dos habitantes estavam nessa faixa. O retrato se repete em diversas partes do mundo. Na China hoje uma em cada cinco crianças estão acima do peso. Há duas décadas, a relação era de uma a cada 20.
Outro aspecto estimula novas tendências de consumo. Com a ampliação do número de consumidores preocupados com o impacto ambiental do que comem, eliminar ou reduzir a frequência de produtos de origem animal na dieta virou quase um ato político. Segundo dados reunidos pela consultoria americana CB Insights, a produção de carne em laboratório consome 82% menos água e emite 79% menos poluentes do que a pecuária de corte. Quando se fala sobre o desafio de alimentar 10 bilhões de habitantes em todo o planeta em 2050, esse é um argumento que ganha relevância, sobretudo entre os consumidores da nova geração.
Além das carnes, a indústria está investindo também em opções para ovos, queijos e leites. Um exemplo é o ovo 100% vegetal lançado em julho pela rede Pão de Açúcar, segunda maior varejista de alimentos do país. O produto à base de ervilhas é vendido em uma caixa de ovos tradicionais e é capaz de substituir o ingrediente em preparos como o de bolos. As semelhanças acabam aí, porque o produto vem em formato de pó. Uma caixa custa cerca de 30 reais e equivale a 12 ovos.
O Pão de Açúcar também é a primeira rede a fechar parceria com a chilena NotCo. Criada em 2015, seu nome deriva de The Not Company — a “não companhia”, que vende “não produtos” como a “não maionese”, uma versão vegetal da receita que, tradicionalmente, leva ovo. A marca se propõe a competir lado a lado com as de versões tradicionais. “Lançamos a maionese em março de 2017 no Chile e hoje temos 13% do mercado”, diz Matías Muchnick, um dos fundadores da NotCo, que cresceu 700% de 2017 para 2018. Assim como no caso dos hambúrgueres, a empresa promete uso de tecnologia para imitar a textura e o sabor. A maionese vegana está à venda no Brasil desde abril em 185 lojas do Pão de Açúcar e é apenas o primeiro produto da startup, que recebeu investimento de 30 milhões de dólares de nomes como Jeff Bezos, presidente do gigante de varejo e tecnologia Amazon. “Vamos lançar leite e sorvete à base de vegetais”, diz Muchnick. “Também estamos presentes na Argentina e no México, mas o Brasil corresponde a 50% do nosso plano de negócios.”
Grandes fabricantes tradicionais de alimentos também começam a entrar nesse mercado. A suíça Nestlé lançou na Europa, em abril, seu primeiro hambúrguer vegetal e, em junho, anunciou uma versão para os Estados Unidos. O movimento é um importante passo após a compra da empresa californiana de alimentos veganos e vegetarianos Sweet Earth em 2017, por valor não revelado. Outro exemplo para o mesmo tipo de produto é a compra da holandesa Vegetarian Butcher, em 2018, pela anglo-holandesa Unilever. A parceria entre as duas empresas, porém, teve início em 2016 com o lançamento de almôndegas vegetarianas.
A francesa Danone comprou por 10 bilhões de dólares, em 2016, a americana White Waves, fabricante de produtos orgânicos e opções de base vegetal para iogurtes tradicionais. Um exemplo é a bebida Silk, à base de amêndoas. A marca entrou no Brasil em 2017 e neste ano chegou a todo o país. A expectativa é ampliar a linha. “Os consumidores estão se movendo rapidamente para categorias diferentes e queremos acompanhá-los nessa jornada”, diz Emmanuel Faber, presidente mundial da Danone (veja entrevista abaixo).
Um estudo publicado neste ano pela consultoria Euromonitor aponta que as corporações que mais crescem no setor hoje são justamente as que realizaram fusões e aquisições sobretudo na seara de alimentos considerados saudáveis. “Essas parcerias são interessantes não só pelos produtos adquiridos mas pelas competências incorporadas, como agilidade e abertura para testar novos conceitos”, afirma Daniel Azevedo, sócio da consultoria Boston Consulting Group.
Um exemplo disso no Brasil se deu na Unilever, que adquiriu a marca de alimentos naturais Mãe Terra em 2017, por valor não revelado. Desde 2018, a Unilever usa o conhecimento da empresa fundada pelo empresário Alexandre Borges (que se manteve como presidente da Mãe Terra) para ampliar o escopo da Maizena, marca que durante 130 anos se resumiu ao amido de milho. Foram lançados barras de cereal e biscoitos integrais Maizena, à base de quinoa, milho, chia, amaranto e linhaça e adoçados com açúcar mascavo ou demerara. “A compra da Mãe Terra permitiu entender uma nova forma de trabalho, com novos fornecedores e ingredientes”, diz Marina Fernie, vice-presidente de alimentos da Unilever Brasil.
A ascensão da indústria de alimentos como conhecemos hoje teve origem há mais de um século. Um dos marcos da história do setor é relatado por Michael Moss em seu livro Sal, Açúcar, Gordura. O jornalista americano conta que o médico John Harvey Kellogg queria curar os casos de dispepsia (dor abdominal após a ingestão de alimentos), comuns nos Estados Unidos no fim do século 19. Para tal, ele criou um sanatório onde tratava os pacientes com atividade física e mudanças na alimentação, reduzindo o consumo de açúcar e sal.
Inspirado na ideia de um empresário, ele produziu um cereal em flocos, à base de trigo, que teve relativa boa recepção entre os pacientes. Em determinado momento, seu irmão, Will, passou a gerenciar a produção, criou uma versão de milho do cereal e, sem o consentimento de John, adicionou açúcar à massa. O sucesso do produto criou um conflito na família, mas deu origem à empresa Kellogg, registrada em 1922 por Will, que espalhou o cereal açucarado pelo território americano e, mais tarde, pelo mundo.
A primeira receita de “danone”, como o produto ficou conhecido, era vendida unicamente em farmácias. O fundador Isaac Carasso, membro de uma família judia de origem espanhola, cresceu na Grécia. Mas foi em Barcelona que se estabeleceu e começou a produzir o que na época era considerado um alimento exótico em boa parte da Europa: o iogurte. A motivação inicial era dar uma opção saudável ao filho Daniel (apelidado de Danon, em catalão). Mais tarde a sede da companhia se mudou para Paris, onde, aliás, Daniel morreu aos 103 anos em 2009.
Ao longo das décadas, o uso de açúcar e de aditivos como acidulantes, corantes, emulsificantes, estabilizantes e espessantes passou a integrar parte relevante dos ingredientes na indústria. Alguns conferem segurança contra doenças. Outros agem sobretudo no sabor e na estrutura do produto. Em alguma medida, a indústria de alimentos se aproximou da lógica da indústria de entretenimento, com produtos que disputam os sentidos dos consumidores com cores, aromas e formas cada vez mais atraentes.
Apesar do uso em larga escala, seus efeitos sobre a saúde não são claros. “Nos Estados Unidos, a maioria dos aditivos não foi bem estudada, e não se sabe muito sobre a segurança deles”, diz Marion Nestle, professora de nutrição na Universidade de Nova York. “Assume-se que eles sejam seguros pelo histórico do uso, e essa é a melhor informação que temos hoje.”
Menos aditivos
O fato é que a demanda dos consumidores colocou em xeque essa escalada. Uma das frentes de maior crescimento na indústria de alimentos é justamente a chamada free from, ou livre de ingredientes cada vez mais indesejados, como aditivos artificiais. Trilhar esse caminho para muitas empresas não é mais uma questão de opção. Já há categorias em declínio consistente, como a de refrigerantes: nos Estados Unidos, as vendas caem ano após ano há mais de uma década. Diversificar o portfólio tem sido uma regra no mundo todo.
No Brasil, a medida resultou em ofertas de produtos exclusivos no mercado local, como o Yas, lançado pela Coca-Cola em setembro de 2018. A bebida, à base de água gaseificada e suco de fruta, sem adoçantes e sem conservantes, pretende agradar aos que buscam uma experiência semelhante à do refrigerante, com menos aditivos artificiais. Nas campanhas publicitárias, a empresa tem dado destaque à versão da Coca-Cola sem açúcar, como fez neste ano na divulgação das novas embalagens retornáveis e do filme Vingadores.
Seguindo a mesma lógica, reformulou todo o portfólio da Verde Campo, fabricante mineira de lácteos adquirida em 2015. Até o fim do ano, nenhum produto da marca terá conservantes, espessantes e aromas artificiais. Para isso, 50 milhões de reais foram investidos na fábrica em Lavras. Cerca de 500 produtores de leite foram treinados para fornecer matéria-prima com qualidade que dispense aditivos. O desafio agora é dar escala aos produtos.
Para isso, os executivos da Verde Campo decidiram não alterar o preço, mesmo com o aumento dos custos de fabricação. Um exemplo é o iogurte 100% natural sabor morango colorido com beterraba, nas versões tradicional, light e sem lactose. O pote com 500 gramas custa cerca de 10 reais. “Temos posicionamento premium, mas queremos levar produtos naturais a mais gente”, afirma Arlindo Curzi, diretor de inovação da Verde Campo. “Apesar da crise, 42% dos brasileiros estão dispostos a mudar a alimentação em busca de algo melhor”, diz Ricardo Alvarenga, líder de negócios de serviços ao painel do consumidor na consultoria Nielsen.
Segundo a consultoria Nielsen, 55% da população brasileira reduziu o consumo de açúcar, gordura e sal no último ano. A Nestlé lançou em 2015 o achocolatado em pó Nescau 3.0, com adição de fibras e 33% menos açúcar se comparado à versão original. Em novembro de 2018 foi a vez de chegar ao mercado o Nescau Max Cereal, que não tem adição de açúcares e custou 26 milhões de reais em três anos de investimento. Foi aos poucos também que a Danone reduziu a presença do ingrediente no alimento infantil Danoninho. Hoje, o produto contém 40% menos açúcar do que a fórmula de 20 anos atrás. Nos últimos cinco anos a redução foi de 14%. Por esse motivo, a Unilever investiu em esforços que resultaram, por exemplo, na redução de 25% do sal na maionese Hellmann’s e de 30% no tempero Knorr.
Na processadora de carnes BRF, dona de marcas como Sadia e Perdigão, a diminuição do sal — importante na conservação de embutidos — também é um desafio. O controle do sabor dependeu do desenvolvimento interno de uma tecnologia: em pesquisas, constatou-se que o cozimento de sobras de carnes gera um caldo que, ao ser adicionado, mantém a percepção de sabor com 30% menos sódio em alguns produtos. “A mudança foi feita de maneira gradual”, afirma Fabio Bagnara, diretor de pesquisa e desenvolvimento da BRF.
Dentro da mesma tendência de reduzir o consumo de alimentos com aditivos químicos, os orgânicos constituem uma das principais frentes de crescimento da indústria de alimentos no mundo. No ano passado, o mercado movimentou 302 milhões de reais no Brasil, segundo a Euromonitor, 35% mais do que no ano anterior. A indústria segue a demanda. Em fevereiro de 2018, a Nestlé lançou a aveia orgânica. Em março deste ano, colocou no mercado uma edição orgânica limitada da marca de chocolate Talento. Um recente lançamento são as papinhas para bebês à base de vegetais orgânicos.
O que se discute na companhia, porém, é a viabilidade de larga escala dos produtos. “O desenvolvimento dessa cadeia depende do interesse do consumidor, mas também de tempo, investimento e proximidade com a fábrica para que sejam mantidos o frescor e a qualidade”, afirma Frank Pflaumer, vice-presidente de marcas e comunicação da Nestlé. Em 2016, a empresa iniciou um projeto piloto no país para produzir leite orgânico — sem a utilização de adubos químicos ou agrotóxicos na alimentação do gado, além do uso de medicamentos com base natural. Atualmente, o trabalho para a produção de leite orgânico conta com a adesão de 49 produtores, entre convertidos e em processo de conversão. Desse modo, a empresa conseguiu anunciar o lançamento do leite Ninho orgânico em pó a partir de setembro.
O desafio é desenvolver uma cadeia consistente para suprir a demanda. A rede francesa Carrefour, maior rede varejista do país, tem a ambiciosa meta de ser a varejista de produtos orgânicos mais acessíveis em distribuição e preço, nem que precise reduzir sua margem de lucro. A expectativa é que a venda de orgânicos decuplique até 2022 e chegue a 500 milhões de reais por ano. Para isso, estão sendo realizadas atividades como o mapeamento de fornecedores próximos às lojas e a expansão de sortimento. “O brasileiro é muito aberto ao consumo de produtos naturais, só precisamos torná-los mais acessíveis, a exemplo do que acontece na Europa”, afirma Noel Prioux, presidente do Carrefour Brasil.
O envolvimento de grandes empresas impulsiona o mercado em volume e em variedade. Um dos exemplos disso tem sido a Korin, companhia brasileira voltada para a produção de orgânicos. Com faturamento de 148 milhões de reais em 2018, a Korin cresceu 520% nos últimos dez anos sobretudo com a venda de frangos e carne bovina. Em maio, passou a vender tilápia livre de antibióticos e uma linha de produtos livres de transgênicos. Em 2020 pretende lançar carne suína orgânica.
Na revolução das cadeias de abastecimento em direção a opções mais saudáveis, há a ascensão dos “superalimentos” — ingredientes que chamam a atenção pelas características nutricionais. De olho nessa seara, a Nestlé comprou, em 2018, parte majoritária da empresa equatoriana Terrafertil. Com atuação em todo o mundo, a parceria começou no Brasil em junho mediante o lançamento de 20 produtos sob a marca Nature’s Heart. O carro-chefe é a superfruta physalis, rica em ferro e vitamina C. A Nature’s Heart é responsável por 90% do processamento global desse alimento — quase um monopólio.
A demanda por ingredientes mais saudáveis também movimenta produtoras de matérias-primas, como a americana Cargill. Nos últimos anos, a companhia desenvolveu, em parceria com a Unicamp, uma opção às gorduras saturadas que permite a consistência firme, por exemplo, no recheio de um biscoito. Em dois anos de pesquisa, a Cargill patenteou uma versão que confere textura, mas com teor de saturação de 25% a 35% menor que o da gordura de palma, largamente utilizada na indústria. Um desdobramento será lançado nos próximos meses para uso em produtos lácteos, como sorvetes. “O preço equivale ao de produtos tradicionais”, diz Marcos Guirardello, gerente de pesquisa e desenvolvimento da Cargill. Em 2018, a matriz criou junto com uma startup um adoçante capaz de extrair açúcares da planta stevia, sem o retrogosto amargo presente nas versões disponíveis até então.
Melhorar o sabor e tornar o custo acessível são dois fatores que devem dar cada vez mais escala a categorias antes escondidas num canto dos supermercados. Estima-se que 7 bilhões de dólares tenham sido investidos no mundo em 2018 nas chamadas foodtechs, que visam justamente resolver essa equação. As mais avançadas começam a estudar, no campo, como editar geneticamente (com e sem o uso de transgenia) a quantidade de glúten no trigo ou como fazer com que a soja produza óleos mais saudáveis, por exemplo.
Por vezes, atender às novas demandas significa trilhar uma rota tortuosa. Em julho de 2017, a Coca-Cola decidiu recolher a Sprite e a Sprite Zero, deixando apenas a Sprite Sem Açúcar no mercado brasileiro. Os fãs da bebida original reclamaram tanto que, em maio de 2018, a companhia relançou o refrigerante. “As pessoas nos dizem que buscam produtos mais saudáveis, mas percebemos que o sabor sempre é preponderante. O segredo agora está na busca pelo equilíbrio”, diz Andrea Mota, diretora de sustentabilidade da Coca-Cola Brasil.
Na eliminação de químicos como estabilizantes, a Coca-Cola também enfrentou um impasse no lançamento dos sucos Del Valle “totalmente naturais”. Disponível no mercado desde maio, o produto tem, em média, 78% de concentração de suco de fruta, além de água, vitamina C e aromas naturais. E mais nada. “Sem o estabilizante, a fruta decanta e o consumidor pode ter a impressão de que a bebida está alterada, mas a intenção é mostrar que, assim como o suco natural que se faz em casa, basta agitar e beber”, afirma Deise Garcez, diretora do centro de inovação da Coca-Cola no Rio de Janeiro, aberto em setembro de 2018 para desenvolver produtos localmente.
Diante de consumidores com dilemas cada vez mais complexos, nem hambúrgueres à base de vegetais são livres de polêmicas. “A maioria dos hambúrgueres veganos pode ser definida como ultraprocessada”, diz a pesquisadora Marion Nestle. Segundo ela, a comida considerada saudável é a que tem, entre outros fatores, processamento mínimo. A quantidade de sódio é uma crítica frequente, como no caso de boa parte dos hambúrgueres industrializados tradicionais. No caso das carnes com células animais produzidas em laboratório, há uma série de questionamentos. Um deles é a aceitação das pessoas ao que já recebeu o apelido nada apetitoso de frankenfood. Outras opções inovadoras parecem ainda mais indigestas, mas nutrem uma ampla gama de startups: a produção de proteína com insetos.
Há polêmica também em torno dos orgânicos. Em 2016, a revista britânica de ciência Nature Plants publicou um artigo de John P. Reganold e Jonathan M. Wachter, ambos da Universidade de Washington, no qual eles descrevem o resultado de uma comparação entre plantações convencionais e orgânicas. A conclusão foi que, embora o cultivo de orgânicos tenha rendimento de 10% a 20% menor do que o de convencionais, a solução é mais rentável e capaz de gerar produtos mais nutritivos. Há restrições de escala, no entanto. “No atual nível de tecnologia e de condições de produção que temos, o modelo de orgânicos não é capaz de atender a toda a demanda”, diz Marcelo Morandi, chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente. “As plantações convencionais e orgânicas não são necessariamente contraditórias: elas coexistem e devem evoluir na direção de aumentar a produção com o menor desgaste do solo e o menor uso de insumos possíveis.”
Como dar conta da crescente demanda por alimentos no mundo e ao mesmo tempo satisfazer o apetite do consumidor cada vez mais aguçado por alimentos considerados saudáveis e sustentáveis? Não existem respostas óbvias. Mas parece claro que a reinvenção do que comemos — ou do que a indústria nos oferece como alimento — é um caminho sem volta.
Cada vez mais startups do segmento de alimentos começam a usar a tecnologia para criar produtos mais saudáveis e sustentáveis | Murilo Bomfim
O mercado global de startups de tecnologia no ramo de alimentos já produziu 35 unicórnios — nome dado às que chegam rapidamente à casa do bilhão de dólares de valor de mercado. Entre elas há empresas da área de entrega de comida, como Uber Eats e Rappi. No time das consideradas foodtechs de próxima geração, que usam tecnologia para produzir ingredientes ou processos industriais totalmente novos, a principal delas é a Beyond Meat, criada na Califórnia em 2009 e especializada no desenvolvimento de produtos de base vegetal para substituir carne na confecção de hambúrgueres e salsichas. O valor da empresa, desde maio listada na Nasdaq, bolsa eletrônica de Nova York, subiu quase 700% e chegou a mais de 13 bilhões de dólares.
É nesse nicho que os investimentos devem aumentar nos próximos anos, e não apenas nos Estados Unidos. Na Europa, 1 bilhão de euros foram investidos nessas empresas consideradas de próxima geração no setor de alimentos em 2018. O montante cresce 63% ao ano desde 2013 e já atingiu 1 241 empresas. Entre elas existem companhias como a espanhola Nice Fruit, que desenvolve tecnologia para congelar frutas mantendo sua qualidade nutricional, e a holandesa Mosa Meat, que faz hambúrgueres por meio de clonagem celular.
Na esteira das alternativas às carnes, os holofotes se voltam para as startups que multiplicam células em laboratório. A americana Finless Food desenvolve peixes e frutos do mar dessa forma. É uma tentativa de atender a três demandas crescentes entre os consumidores: evitar impacto ambiental, evitar o sofrimento animal e ainda ter o produto original — ou, segundo a empresa promete, algo próximo de um filé de verdade. A Finless já recebeu 3,5 milhões de dólares e se prepara para fornecer a restaurantes.
Segundo um estudo da Liga Insights (área de pesquisa da aceleradora Liga Ventures, criada em 2017 e apoiada por empresas como a Ambev, de bebidas, e a Cargill, de alimentos) lançado em maio, há 332 foodtechs no Brasil, o que corresponde a 2,7% das startups do país. A maioria delas tem atuação em marketing, como a GoFind, aplicativo que localiza produtos em lojas próximas ao usuário. “Aqui temos menos participação de cientistas”, diz Ana Carolina Bajarunas, criadora do Foodtech Movement, iniciativa que une os atores do setor. Há exceções, no entanto. Entre elas estão a Hakkuna, produtora de uma farinha de proteínas de grilo, categoria que tem sido considerada promissora como alternativa para suprir a crescente demanda por proteína no mundo, e a Noviga, que pesquisa por meio de nanotecnologia substitutos aos ingredientes ricos em gordura trans usados na indústria de alimentos.
Em todo o mundo, o movimento já atrai as grandes indústrias, que começam a investir nessas empresas. É o caso da americana MycoTechnology, criada no Colorado em 2013. A empresa usa fungos para melhorar o sabor e o valor nutritivo de alimentos. A foodtech também tem um extrato de cogumelos capaz de inibir a percepção de sabores amargos, possibilitando a redução e até a eliminação do açúcar em alimentos. A startup já recebeu 30 milhões de dólares, vindos de gigantes tradicionais como a americana Kellogg. O produto está em fase de teste e pode ter uma versão com venda direta para o consumidor.
Para o presidente mundial da Danone, a demanda por alimentos mais saudáveis e sustentáveis deve continuar a crescer — e é preciso acompanhar esse ritmo | Marina Filippe, de Barcelona
Uma das primeiras medidas de Emmanuel Faber ao assumir a presidência da fabricante francesa de alimentos Danone, em 2015, foi assinar um “manifesto” com o compromisso de promover uma “revolução alimentar” e “levar saúde e bem-estar por meio da alimentação ao maior número de pessoas”. Um dos desdobramentos práticos foi a criação, no ano seguinte, do fundo Danone Manifesto Ventures, que já investiu 75 milhões de dólares em startups como a francesa Yooji, de comida orgânica para bebês. No portfólio da Danone, marcas tradicionais ganham versões orgânicas, além de alternativas ao leite, à base de vegetais. É um marco na história da companhia fundada há 100 anos em Barcelona, com vendas globais de 9 bilhões de euros em 2018. Nas comemorações do centenário, Faber falou a EXAME.
O discurso de “revolução alimentar” da Danone visa atender a uma demanda de mercado?
Os consumidores estão se movendo rapidamente para categorias diferentes e queremos acompanhá-los nessa jornada. Na tendência da preferência por alternativas mais saudáveis e sustentáveis, encontramos fenômenos como a dieta flexitariana. É quando os consumidores compram opções de proteína vegetal e animal ao mesmo tempo. Nesse sentido, lançamos em diversos países [no Brasil, em 2018], por exemplo, a bebida Silk, à base de amêndoas.
A taxa de obesidade tem aumentado em muitos países, o que costuma ser relacionado ao consumo exagerado de produtos industrializados. O que as empresas podem fazer, além de oferecer produtos mais saudáveis?
Estamos trabalhando com a educação alimentar das crianças nas escolas. E apoiamos ferramentas como o Nutri Score, na União Europeia, um sistema de rotulagem que fornece aos consumidores uma fácil compreensão do valor nutricional do produto. Fomos a primeira companhia a aderir ao programa, por acreditar que é possível melhorar o acesso à informação para que as pessoas façam escolhas melhores.
Por que a Danone anunciou neste ano a abertura de sua coleção de culturas de bactérias para pesquisa?
Abrimos as 193 cepas de fermentos lácteos e bifidobactérias depositadas na Coleção Nacional de Culturas de Microrganismos, no Instituto Pasteur, em Paris, assim como mais de 1 600 linhagens de nosso centro de pesquisa em Paris-Saclay. É um modo de tentar solucionar problemas alimentares e do agronegócio. Hoje usamos uma fração dessas culturas. O impacto de compartilhá-las com pesquisadores não sabemos ainda, mas temos clareza de que a fermentação é um poderoso mecanismo para promover alimentos seguros e de qualidade. Microbióticos podem ajudar também na recuperação da natureza, como na restauração do solo saudável, reduzindo o uso de produtos químicos. As novas gerações não vão aceitar decisões que não sejam benéficas para toda a sociedade.