Revista Exame

Venezuela: a falência de um Estado

O conceito de Estado falido, aplicado a países como Haiti, Somália e Síria, agora se lança sombriamente sobre o território venezuelano

Venezuela: Não faltam somente os bens de primeira necessidade nos supermercados da cidade, mas é difícil encontrar também dinheiro em espécie

Venezuela: Não faltam somente os bens de primeira necessidade nos supermercados da cidade, mas é difícil encontrar também dinheiro em espécie

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Da Redação

Publicado em 10 de agosto de 2017 às 05h00.

Última atualização em 10 de agosto de 2017 às 05h00.

Foi muito depressa. Não faz muito tempo, quando Hugo Chávez era vivo e comandava o país, o grande tema de debate entre cientistas políticos e observadores internacionais era se a Venezuela ainda podia ser considerada um Estado democrático, tamanha a interferência de Chávez e de seus seguidores nas instituições do país.

Hoje, o que se discute é se a Venezuela sequer ainda tem um Estado. O conceito de Estado falido, aplicado a países como Haiti, Somália e Síria, agora se lança sombriamente sobre o território venezuelano, onde estão as maiores reservas de petróleo do mundo, e que ficou conhecido no passado por ser uma alegre fábrica de misses e um paraíso para mergulhadores e turistas atraídos por sua formidável costa caribenha.

¿Que pasó? A resposta é simples: um furacão chamado chavismo, cuja força destrutiva arrasou os setores produtivos — que nunca foram grande coisa, mas existiam —, aniquilou até mesmo a capacidade de extração da antes imponente PDVSA, a estatal do petróleo, e colocou a economia numa desordem que beira o caos. Isso fica claro para qualquer estrangeiro ou cidadão venezuelano em Caracas, a capital do país.

Não faltam somente os bens de primeira necessidade nos supermercados da cidade, mas é difícil encontrar também dinheiro em espécie, mesmo em meio a uma hiperinflação que deverá chegar a 720% neste ano. A situação desafia as leis da oferta e da procura, segundo as quais os preços só deveriam subir quando a moeda fosse abundante. Não é o que ocorre na Venezuela. Os preços sobem mesmo com a falta de dinheiro em espécie.

Nicolás Maduro, da Venezuela: seu regime fica cada vez mais autoritário | Federico Parra/AFP Photo

A situação social da população é ainda mais trágica do que a falta de produtos e de moeda. Em seu último informe, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro, salientou que os índices de mortalidade infantil e de fome na Venezuela superam até mesmo os da Síria, país que vive uma guerra civil desde 2011. “Se isso não for um Estado falido, então não sei o que é”, diz Diego Arria, ex-embaixador venezuelano nas Nações Unidas de 1991 a 1994. Arria teve de se exilar em Nova York há um ano e meio. O regime de Nicolás Maduro emitiu uma ordem de prisão contra ele, depois de o ex-embaixador ter acusado o governo venezuelano de crime de lesa-humanidade na Corte Penal Internacional de Haia, na Holanda. Arria conhece o Brasil e sabe que o país também viveu a hiperinflação. Mas ele aponta uma diferença importante: o Brasil dos anos 80 produzia alimentos e medicamentos, enquanto a Venezuela precisa importar quase tudo que consome — incluindo 90 000 barris diários de petróleo leve dos Estados Unidos para misturar a seu óleo sulfuroso.

Ao lado da fragilidade econômica está uma brutal confusão institucional. Depois da eleição de uma Assembleia Constituinte, no dia 30 de julho — cujo resultado foi contestado por partidos de oposição e líderes mundiais —, a Venezuela passou a ter dois parlamentos. A Assembleia Nacional, dominada pela oposição, não reconhece a Constituinte. Já os chavistas querem que a nova Constituição transfira os poderes da Assembleia Nacional para os conselhos comunais, controlados pelo Partido Socialista Unido da Venezuela — o mesmo partido do governo. Outra proposta é esvaziar o Ministério Público venezuelano, que recentemente virou uma das principais forças de resistência às investidas do regime.

Nada disso é novo. Os chavistas vêm seguindo à risca a cartilha dos regimes autoritários antes dele. Os governos que começam embalados em políticas nacionalistas e desenvolvimentistas acabam esvaziando o Estado por dentro. Na estratégia de permanência no poder, criam estruturas paralelas que podem ser controladas mais facilmente. Foi assim com os sovietes que deram nome à União Soviética e com os conselhos locais e Comitês de Defesa da Revolução em Cuba, e, agora, com os conselhos comunais da Venezuela. A palavra de ordem da campanha do governo em favor da Constituinte, assimilada pela militância chavista, antecipou as medidas: a nova Carta vai “blindar” as missões, como são chamados os mais de 20 programas sociais do governo; os coletivos, bandos armados sobre motocicletas que abrem fogo contra manifestantes e fogem impunemente; e as milícias uniformizadas e também armadas que defendem o regime.

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Reação Internacional

Aplicar o conceito de Estado falido  à Venezuela de Nicolás Maduro não serve apenas para saciar a sanha classificatória dos acadêmicos. Tem consequências, do ponto de vista do direito internacional, para justificar a intervenção em um país sem que a medida seja vista como uma ingerência em sua soberania, diz Carlos Romero, professor de ciência política na Universidade Central da Venezuela. Para ele, está sendo construído um cenário para justificar o reconhecimento da oposição como o poder legítimo. “O que a oposição busca é um reconhecimento internacional do estado de beligerância do país e de sua legitimidade.” Os Estados Unidos saíram na frente e congelaram os bens de 13 autoridades venezuelanas na véspera da eleição. Como a advertência não fez Maduro recuar, o governo americano seguiu adiante e, no dia seguinte à votação, incluiu o próprio presidente venezuelano na lista. Com isso, Maduro entrou para o seleto clube de governantes que são alvo de sanções americanas ainda no poder, ao lado de Bashar al-Assad, da Síria, Kim Jong-un, da Coreia do Norte, e Robert Mugabe, do Zimbábue.

Ao anunciar o congelamento dos bens de Maduro, o secretário do Tesouro americano, Steven Mnuchin, disse que a Casa Branca consideraria “sanções adicionais” se o regime venezuelano continuasse no caminho da repressão e da ditadura. Maduro respondeu dizendo-se “orgulhoso” de sofrer as sanções e mandou de volta para o cárcere os líderes oposicionistas Leopoldo López e Antonio Ledezma, que estavam em prisão domiciliar.

Donald Trump: os Estados Unidos congelaram os bens de autoridades venezuelanas | Sail Loab/AFP Photo

Os Estados Unidos têm ainda outra opção na mesa: o embargo do petróleo. As empresas americanas compram aproximadamente 40% do petróleo venezuelano exportado — cerca de 700 000 barris por dia. Mas os especialistas afirmam que um embargo teria pouco ou nenhum efeito. A Venezuela não teria muita dificuldade de deslocar as vendas para a Índia e a China, que já compram 400 000 e 500 000 barris diários dela, respectivamente. O Catar, que é produtor de gás e está sob sanção de seus vizinhos e do Egito, seria outro comprador em potencial. Claro que nunca é simples substituir o mercado americano por outro da noite para o dia, ainda mais quando os clientes estão do outro lado do mundo. O fato é que uma eventual barreira americana dificilmente seria uma sentença de morte do regime. Por via das dúvidas, as refinarias americanas que processam o petróleo venezuelano aceleraram a produção, temendo um embargo.

Diante desse cenário, a alternativa mais provável é que a comunidade internacional continue a aplicar mais sanções individuais contra autoridades do governo venezuelano e também a vincular o regime ao narcotráfico e à corrupção. Neste último ponto, o Brasil é capaz de cumprir um papel decisivo. As delações da construtora Odebrecht indicaram pagamentos de propinas para o governo venezuelano, e a expectativa é que mais denúncias desse tipo devam surgir na esteira da Operação Lava-Jato. A combinação de acusações de corrupção com violações de direitos humanos, tráfico de drogas e quebra da ordem democrática pode render o reconhecimento a um governo transitório em algum momento.

Índios da Venezuela em Manaus: a população do país não tem acesso a comida nem a remédios | Edmar Barros/Futura Press

Depois de um plebiscito organizado pela oposição em meados de julho, no qual 7,5 milhões de pessoas votaram contra a Constituinte, a oposição venezuelana vem sendo pressionada a formar um governo provisório. O deputado Juan Requesens, do partido Primeiro Justiça, afirma que os dirigentes oposicionistas estão em contato com a comunidade internacional para avaliar a disposição de outros países de reconhecer um governo de transição. “Já nomeamos magistrados para o Tribunal Supremo de Justiça e vamos renovar o Conselho Nacional Eleitoral e fazer um julgamento de Maduro”, diz o deputado. “Esperamos agora que a Europa e a Ásia também congelem os bens de Maduro porque tudo o que ele tem vem do crime.”

Enquanto isso não acontece, os manifestantes continuam a enfrentar nas ruas de Caracas o gás lacrimogêneo e as balas de borracha da Guarda Nacional Bolivariana, além da munição real das milícias chavistas — uma situação que se repete quase diariamente há quatro meses. Até o dia 30 de julho, foram registradas 130 mortes de manifestantes, além de centenas de feridos e presos. Uma solução pacífica e democrática, infelizmente, ainda parece distante.

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