Magia natural no ar
Apenas alguns passos na maior cidade dos Estados Unidos bastam para notar que o pungente aroma dos terpenos presentes na maconha já faz parte de Nova York. A substância que se popularizou em rodas de jazz no Harlem no início do século passado saiu de vez do submundo para o centro da megalópole. Nas ruas, em lojas ou nos parques. Em algum lugar, quem for a Nova York vai sentir a sua presença.
Embora proibida por lei federal, 18 dos 50 estados americanos já aprovaram a legalização da maconha. Há uma década, Washington e Colorado se tornaram os primeiros a legalizar o uso recreativo da planta. Mas o modelo de Nova York, que tem vivido esta realidade apenas desde 2021, é considerado ainda mais liberal por permitir fumar em lugares públicos. De forma geral, onde pode tabaco, pode cannabis. Nos outros estados em que é legalizada, o consumo da cannabis é restrito a lugares privados.
A legalização fez surgir um mercado bilionário na cidade mais populosa dos Estados Unidos. Há lojas de maconha por toda Nova York, que atraem moradores e turistas. Para comprar, basta ter mais de 21 anos. O maior desafio, porém, é encontrar uma loja que tenha licença para vender legalmente o entorpecente.
Economia verde
Com mais pessoas acessando a maconha legal, esse mercado tem crescido a cada ano. Pesquisa realizada pela consultoria Grand View Research (GVR) mostrou que em 2022 seu tamanho chegou a US$ 20 bilhões no mundo. A estimativa é de que até 2030 essa cifra chegue a US$ 100 bilhões.
A projeção da GVR é de que, nos Estados Unidos, esse mercado ainda deverá triplicar de US$ 10 bilhões para US$ 30 bilhões até 2030. Os números consideram todos os diferentes produtos que podem surgir da planta: da flor, usada para bolar os cigarros, snacks feitos com o psicoativo da erva e medicamentos.
A cidade de Nova York estima que até 2025 a arrecadação com o mercado de cannabis irá superar a receita com a venda de cigarros. Para 2027, a expectativa é de que a maconha e seus derivados representarão mais que o dobro dos impostos gerados pela venda de cigarros.
Para todos os gostos
A diversidade das “weed stores” de Nova York dão uma noção da profundidade desse mercado. Existem lojas voltadas para o uso medicinal, mas é na maconha recreativa a aposta da maioria delas. Algumas são como “coffee shops”, tradicionais em Amsterdam: vendem a erva e oferecem o espaço para que os clientes façam o uso no local. Outras são pequenas, sem espaço para o consumo local. Há ainda lojas especializadas em derivados da maconha, que vendem, por exemplo, uma grande variedade de doces feitos à base da planta.
Mas a febre inicial por esse mercado foi tão grande que a falta de licença para comercializar maconha em Nova York se tornou um problema.
Embora as lojas tenham brotado por todos os cantos, até o fim de junho tinham sido liberadas apenas 127 licenças para a venda de maconha recreativa (CAURD) na cidade de Nova York. Ou seja, menos de 10% das 1.500 lojas de maconha contabilizadas pelo Conselho da Cidade de Nova York.
O volume de licenças, porém, não representa a quantidade de lojas legais na cidade. Para a região do Bronx, por exemplo, foram liberadas 18 licenças. Mas a primeira loja licenciada abriu apenas na quinta-feira, 6, de acordo com a emissora NY1. Segundo a página do estado que revela a localização das lojas legais de maconha recreativa, a cidade de Nova York tem apenas 8 delas abertas.
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O preço da (falta de) licença
A quantidade ainda irrisória de lojas licenciadas faz com que a arrecadação com a venda de maconha fique bem abaixo das expectativas. Em março deste ano, por exemplo, a receita com venda de maconha medicinal e recreativa em todo estado de Nova York ficou em apenas US$ 1,97 milhão.
Os números de arrecadação são pouco significativos em comparação com os de estados onde o mercado de maconha já é regularizado há mais tempo. A Califórnia, que liberou a maconha medicinal ainda nos anos 1990 e a recreativa em 2016, arrecadou US$ 216 milhões no primeiro trimestre em impostos com a erva e seus derivados, girando US$ 1,25 bilhão em vendas taxáveis.
Nova York se inspirava na arrecadação da Califórnia após tornar o consumo de maconha legal no estado. Estudos feitos ainda antes da legalização, em 2018, indicavam potencial de o estado conseguir arrecadar ao ano cerca de US$ 416 milhões em impostos com a venda de maconha e a cidade de Nova York, US$ 336 milhões – cifras ainda bem distantes das alcançadas.
Claramente, ainda falta muito para chegar lá.
Prioridade e avanços na concessão de licenças
Embora a lei que prevê a legalização da maconha recreativa em Nova York seja de 2021, foi somente no fim de agosto que o estado abriu a janela para que as lojas requisitassem a licença para a venda. Essa janela durou cerca de 30 dias, com 903 pedidos feitos em todo o estado. Até o fim de junho deste ano, apenas 249 lojas tinham recebido a licença. A primeira loja devidamente regularizada do estado só foi inaugurada em dezembro daquele ano.
O número ainda baixo de lojas licenciadas faz parte da estratégia do governo de Nova York de priorizar o licenciamento do cultivo comercial da erva, considerado “o primeiro passo para levar o produto aos consumidores e ter um mercado bem-sucedido de cannabis para uso adulto”. Dos 338 pedidos de licença para o cultivo comercial da planta feitos até o fim do ano passado, 279 já tinham sido aprovados.
Mas para quem busca licença para a venda de maconha medicinal, legalizada no estado desde 2014, o processo tem sido mais rápido. Somente entre abril e setembro do ano passado, foram emitidas 2.741 licenças para venda direta, encerrando o período com apenas 92 pedidos pendentes e 3.265 lojas licenciadas. Diferentemente das lojas de maconha recreativa, nestas são permitidas apenas a venda de produtos sem o agente psicoativo da erva, o tetrahidrocanabinol (THC), já que para o efeito medicinal são necessários apenas os canabinóides (CBD).
Queda de apreensões e brigas de gangue
Embora a lentidão na concessão de licenças tenha atrasado os planos econômicos de Nova York, a legalização da maconha surtiu efeitos culturais, como a venda de souvenirs que remetem ao consumo da erva, e de segurança pública.
O número de prisões associadas à maconha ilegal caiu 77% na cidade em relação a 2019, antes da legalização. No primeiro trimestre, foram registradas 137 prisões. Isso porque, apesar da legalização, ainda há algumas restrições à venda, à posse e ao consumo. Fumar próximo a escolas, por exemplo, é proibido, assim como a venda por lojas sem licenças e a posse de mais de 85 gramas de cannabis.
Dados do Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) também mostram maior diversidade nas prisões associadas à maconha após sua legalização no estado. Das prisões efetuadas no primeiro trimestre de 2019, 92% eram negros ou hispânicos. Essa proporção caiu para 65% no mesmo período deste ano, enquanto a de brancos presos por posse ou venda ilegal de maconha saiu de menos de 4% para 9%. Também houve redução dos homicídios relacionados ao tráfico de drogas e ao crime organizado, com recuo de 25% entre 2020 e 2022.
Apesar dos números recentes na cidade de Nova York, a relação entre a legalização da maconha e seus efeitos na sociedade ainda são alvo de um extenso debate acadêmico nos Estados Unidos. Diante do vasto conteúdo, pesquisa publicada pela Medical Care Research and Review analisou 113 artigos científicos sobre o tema. A conclusão foi a de que a legalização não tem efeitos negativos sobre a criminalidade, segurança nas estradas ou no mercado de trabalho.
Com essa constatação na mesa, resta à maior cidade americana agilizar a burocracia e garantir uma arrecadação mais robusto com a legalização da - já onipresente - cannabis.
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Créditos
Guilherme Guilherme
Repórter
Formado pela Universidade Metodista de São Paulo. Cobre mercado financeiro na Exame desde 2019. Também trabalhou na revista Investidor Institucional e participou do 9º Focas de Jornalismo Econômico do Estadão.