Crise na Cultura escancara apocalipse das livrarias no Brasil
Com pagamentos atrasados e forte concorrência da Amazon, a Livraria Cultura vai ter dificuldades em se reerguer.
Mariana Desidério
Publicado em 25 de outubro de 2018 às 12h13.
Última atualização em 25 de outubro de 2018 às 12h49.
São Paulo - A Livraria Cultura entrou ontem com pedido de recuperação judicial , escancarando o momento de penúria do mercado de livrarias no Brasil. Em entrevista a EXAME publicada no início da semana, o presidente da companhia, Sérgio Herz, afirmou que o setor encolheu 40% na crise econômica, o que levou ao fechamento de lojas e a atrasos nos pagamentos.
Editoras e funcionários demitidos estão sem receber. Se a recuperação judicial se concretizar, terão de esperar ainda mais. No ano passado, a Cultura recebeu 130 milhões de reais para assumir a operação brasileira da rede de livrarias francesa Fnac. Chegaram a ser divulgados planos para o fortalecimento da marca sob o guarda-chuva da Cultura, mas a decisão final foi encerrar todas as lojas da francesa no país - a última, em Goiânia, foi fechada este mês. Funcionários da Fnac demitidos fizeram um protesto pois não receberam verba rescisória após o encerramento das lojas.
Outra grande rede de livrarias, a Saraiva passa por problemas semelhantes. Editoras reclamam de atrasos nos pagamentos enquanto a companhia acumula perdas. No segundo trimestre, a Saraiva reportou prejuízo de 37,6 milhões de reais, com um saldo devedor de 296 milhões de reais, valor que a Saraiva levaria 12 anos para pagar se mantivesse um fluxo de caixa constante sem novos empréstimos. A Livraria Cultura tem capital fechado e há algum tempo não abre seus dados de balanço.
Efeito Amazon
Além do momento delicado para a economia do país, a situação das livrarias se agrava com as transformações do mercado em escala global. E essas transformações podem ser resumidas em um nome: Amazon. A gigante norte-americana do varejo é conhecida por abalar os setores em que atua. Nos Estados Unidos, a força da Amazon e das compras pela internet já iniciou um processo batizado de apocalipse do varejo.
Por lá, enquanto os consumidores optam por comprar no conforto de casa, shopping centers e redes antes consolidadas fecham as portas. Alguns exemplos são a rede de brinquedos Toys R Us que decidiu encerrar as atividades no país, e a rede de lojas de departamentos Sears, que chegou a ser a maior do mundo nos anos 1960 e recentemente recorreu à lei de falências dos Estados Unidos para tentar um suspiro final (a rede tem uma dívida de 5,6 bilhões de dólares).
A Amazon chegou ao Brasil há seis anos, vendendo apenas livros. Na época, livrarias se mobilizaram e procuraram ajuda do governo para limitar a atuação da varejista, alegando risco para o mercado. Levantou-se a possibilidade de criação de um preço único do livro, para impedir que a multinacional vendesse mais barato que suas concorrentes. Uma regra semelhante existe em países como França, Alemanha, Espanha e Argentina. Um projeto que tramita no Congresso (PL 49/2015) define que qualquer livraria, física ou virtual, só pode dar descontos de até 10% para publicações no primeiro ano após seu lançamento. Limitar descontos em livros num país com pouco hábito de leitura é um tanto contraditório e o tema divide o setor. Enquanto isso, as promoções e facilidades oferecidas pela Amazon atraem os consumidores brasileiros.
Mas é simplista achar que a derrocada da Livraria Cultura é culpa da Amazon. O fato é que a companhia demorou para investir em tecnologia, e há algum tempo vinha tomando decisões controversas. Uma delas foi vender espaços de destaque em suas lojas para ações de marketing das editoras. A prática pode até ajudar a pagar as contas no curto prazo, mas é criticada por parte do mercado por reduzir a relevância da livraria para o seu maior ativo: o leitor disposto a comprar.
Na entrevista a EXAME publicada essa semana, Sérgio Herz afirmou que algumas das apostas da companhia para sair da crise são investir no online e transformar suas lojas em locais voltados a experiências, com teatros, restaurantes e eventos. A rede tem hoje 15 lojas no país. O pedido de recuperação judicial mostra que a estratégia ainda não deu os resultados necessários para levantar para a empresa. Se a recuperação for aprovada pela Justiça, a Livraria Cultura ganha uma sobrevida, mas dificilmente sairá do buraco se mantiver práticas ultrapassadas num mercado em rápida transformação.