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Ucrânia e China devem ficar em segundo plano no encontro entre Lula e Biden, diz especialista

Viagem aos EUA deve ter mais o efeito simbólico do que render grandes acordos formais, avalia Tatiana Teixeira, editora do Observatório Político dos Estados Unidos (Opeu), em entrevista à EXAME

Lula nos Estados Unidos (Ricardo Stuckert/PR/Flickr)
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Alessandra Azevedo

Publicado em 10 de fevereiro de 2023 às 06h00.

O objetivo da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, nesta sexta-feira, 10, é retomar as relações bilaterais com os EUA, enfraquecidas durante o governo Bolsonaro. O encontro deve ter mais o efeito simbólico de reforçar o que une os dois países do que render grandes acordos formais, avalia a professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (Irid) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Tatiana Teixeira, editora do Observatório Político dos Estados Unidos (Opeu).

Os atos golpistas de 8 de janeiro inevitavelmente serão um dos destaques da conversa entre Lula e Biden. O presidente dos EUA precisou lidar com episódio parecido em 2021, quando o Capitólio foi invadido, e rechaçou os ataques ocorridos em Brasília -- inclusive em ligação para Lula, a segunda desde que o presidente brasileiro foi eleito. "É um assunto que os aproxima, em meio a outros", diz Teixeira, em entrevista à EXAME. Em ano pré-eleitoral nos EUA, guerra na Ucrânia e relação com a China devem ficar "em segundo plano", acredita.

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Mas a agenda em comum é mais ampla do que os atos antidemocráticos e envolve, entre outros temas, as políticas relacionadas ao meio ambiente, que "têm potencial grande de cooperação", na visão da especialista. Para Lula, é essencial, do ponto de vista internacional, levantar a bandeira do desmatamento zero na Amazônia, por exemplo. Não por acaso, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, o acompanhou na viagem. Para Teixeira, "isso mostra que o governo brasileiro tem uma carga de legitimidade em áreas importantes".

Veja os principais trechos da entrevista:

Nesta sexta-feira, será a primeira reunião bilateral entre Lula e Biden. Os dois presidentes precisaram lidar com ataques antidemocráticos pouco depois de serem eleitos. Nesse contexto, os atentados devem ser um assunto importante?
Sim, porque é um assunto que os aproxima, em meio a outros. Acho que esse encontro vai ser mais de simbolismo do que concretude, no sentido de anunciar grandes acordos, tomar decisões importantes. Mas nada na política internacional substitui um encontro presencial, o olho no olho. É um encontro mais de reconhecimento mútuo, no sentido de exibir um apoio, um início de relação entre eles.

A viagem tem potencial de render algum acordo formal de cooperação entre os países? De que forma os EUA e o Brasil podem unir esforços nas pautas que têm em comum? O que se espera de resultado do encontro, na prática?
Pode vir algo simbólico, como memorando de entendimento, protocolos, que costumam sair desses encontros. Mas o mais importante é esse olho no olho. Biden deve falar algo em relação à Ucrânia, e Lula deve levar algo sobre um possível “clube da paz”. Não interessa de modo algum, não faz nenhum sentido e seria contra intuitivo imaginar que possa haver algum tipo de rusga entre os dois.

Qual é o impacto real da mudança de governo no Brasil na relação com os EUA? Como isso poderá ser observado neste sexta-feira?
Nesse primeiro encontro presencial, ambos vão estabelecer as suas agendas, seus pontos prioritários na relação bilateral. Essa mudança de governo, com a saída de Bolsonaro e chegada do Lula, traz uma percepção de estabilidade e mais previsibilidade, de modo global. Lula é um político experiente e não gera tanta dúvida em relação à política externa. A percepção é de que tudo correrá dentro da normalidade, que o governo vai cumprir compromissos adotados e agir com razoabilidade na política externa. A relação com EUA não foi conflituosa nos governos anteriores de Lula e não tem nenhuma evidência que aponte nessa direção agora. E entendo que Lula não chega aos EUA numa condição de fraqueza. Diferentemente do governo Bolsonaro, que entrou em um alinhamento ideológico automático e acrítico aos EUA, Lula deve manter o poder de negociação do Brasil.

E para os Estados Unidos? O que Biden pode esperar desse encontro com Lula?
No último discurso do Biden [sobre o Estado da União, no dia 8 de fevereiro], o que dominou foi a agenda doméstica. Ele está em ano pré-eleitoral e deu sinais de que pretende buscar a reeleição. Por isso, está voltado agora, mais ainda, ao eleitorado. Política externa, guerra na Ucrânia e relação com a China estão em segundo plano. Lula tem um capital simbólico e social grande, que converge com agendas que hoje são importantes para o Biden domesticamente. Questão ambiental e pautas sociais, por exemplo. Para o Biden, o encontro pode servir como uma indicação de que está olhando para determinadas pautas mais progressistas. A comitiva do Lula tem Ministério da Fazenda, que é muito importante, mas tem também Igualdade Racial e Meio Ambiente. Biden ganha pontos com a ala mais progressista do partido.

Existe a expectativa de que Lula e Biden discutam questões ambientais, como a adesão dos EUA ao Fundo Amazônia. Essa será uma pauta de destaque? A presença da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na comitiva presidencial, é um sinal positivo nesse sentido?
É um bom sinal, porque [Marina] é uma pessoa que tem trajetória na área e é reconhecida internacionalmente. É uma interlocutora válida. Isso mostra que o governo brasileiro tem essa carga de legitimidade em áreas importantes. Espero um pronunciamento positivo [sobre meio ambiente], porque é uma temática importante na plataforma do Biden. Algumas áreas têm potencial grande de cooperação, como energia eólica, transição energética, biocombustível, estabelecer cooperações para criar empresas verdes. Se Biden condicionar a adesão ao Fundo Amazônia a termos que sejam considerados prejudiciais para o interesse nacional brasileiro, imagino que sejam rejeitados ou conversados para que sejam reformulados. Existe uma questão de soberania importante. Todas as demandas que forem feitas pelos EUA serão levadas em consideração pelo atual governo brasileiro dentro da leitura de interesse nacional brasileiro, de um ponto de vista estratégico. O que se espera da política externa é a defesa do multilateralismo.

No histórico da diplomacia brasileira, como podemos ler a relação do Brasil com os governos americanos? Qual é historicamente o papel dos EUA na diplomacia brasileira?
É uma relação que sempre moldou muito a identidade do Brasil em relação à sua projeção internacional, diante do peso dos EUA no continente. Há momentos de maior aproximação e de maior afastamento, não é linear. No caso de maior aproximação, o que a gente vê é que tem uma carga ideológica grande, e o risco dessa aproximação é que ela se dê de forma acrítica, sem considerar os interesses do Brasil. Mas também tivemos momentos de política externa mais pragmática, que atuava levando em consideração de que forma o Brasil, em suas relações, pode trabalhar para defender os seus interesses, garantir a sua autonomia.

Na nossa condição de país periférico, não faz muito sentido se alinhar automaticamente e acriticamente com a potência, porque isso esvazia nosso poder de negociação. É importante, diplomaticamente e politicamente, colocar o Brasil no jogo. Mas o diálogo com os EUA nunca acabou. Às vezes fica mais concentrado em outros níveis, mas não há interrupção. Mesmo nos momentos de maior tensão, as relações entre os dois países não pararam. Nos níveis entre os entes subnacionais, na diplomacia, isso nunca estagnou. O que muda é a densidade.

Lula e Biden têm divergências em relação à guerra na Ucrânia. Ainda não sabemos como o assunto será abordado. Alguns analistas têm apontado que falar de Ucrânia poderia ser um problema e azedar a reunião. Que tipo de posicionamento o governo Lula deve ter em relação a isso?
Em relação à Ucrânia, imagino que Lula vai insistir na solução diplomática, dentro do que for possível, que seja pacífica. Já está circulando que ele vai sugerir um “clube da paz” para mediar essa negociação entre países que não estejam envolvidos no conflito. Entendo que Lula reconheceu que a Rússia foi o agressor ao invadir a Ucrânia, ponto. Mas é contra o envio de armas. O que faz sentido pela tradição diplomática brasileira. Não é surpresa esse posicionamento. O discurso de “ou você está com a gente ou está contra” vale muito para os EUA, para o eleitorado doméstico americano, mas para a gente não faz sentido. Nós estamos na esfera de influência dos EUA, nossa identidade está relacionada a essa relação bilateral e nós compartilhamos valores ocidentais. Não tem questionamento quanto a isso. É um conflito que, embora tenha impacto na economia brasileira, não envolve diretamente o Brasil.

Também não se sabe ainda se a relação com a China, principal parceiro comercial do Brasil, será abordada. A China está crescendo em importância na América do Sul. O que isso significa para os EUA? Como esse assunto deve ser tratado entre Biden e Lula?
Se a China for abordada, a postura do Brasil certamente será no sentido de não abrir mão do principal parceiro comercial. Mas o objetivo da visita não é entrar em confronto. Ambos os lados sabem as linhas vermelhas de cada um. O que quer que possa surgir de divergência vai ser colocado de forma diplomática e pragmática. Diferentemente do governo Bolsonaro, que entrou em um alinhamento ideológico automático e acrítico aos EUA, espera-se do governo atual que mantenha uma postura assertiva e o poder de negociação do Brasil.

No ano passado, tivemos a Cúpula das Américas, e a leitura final daquele evento foi de uma certa desconexão entre as prioridades dos EUA e os sul-americanos. Ficou a sensação de que os EUA queriam discutir Ucrânia e os latinos queriam discutir pobreza, desigualdade, economia. Mas faltava também uma unanimidade entre esses países do Sul. Esse diálogo pode mudar agora?
Lula é uma pessoa que tem capacidade de articulação muito grande, tem um perfil de agregar as pessoas. Então, é possível que haja uma maior unidade nos países sulamericanos. Para o Brasil, é mais interessante agir em conjunto, porque ganha mais força. Para os Estados Unidos, essa postura do Brasil não seria ruim, porque é bom que a região se mantenha pacífica. É uma expectativa do Biden que Lula funcione como um mediador de conflitos.

Lula sinalizou em conversa com a imprensa que espera discutir com Biden as sanções americanas aos regimes cubano e venezuelano, dentro dessa pauta de fortalecimento da América do Sul. De que forma ele deve se posicionar sobre o assunto?
Esse não é um tema prioritário do Brasil. Se Lula abordar o assunto, deve reforçar o papel de agregador, defensor de interesses da América Latina. Claro que Lula pode colocar isso sobre a mesa, levar a pauta, mas terá valor simbólico. Não há expectativa de uma guinada do Biden em relação ao embargo. Principalmente em ano pré-eleitoral, é muito improvável. O eleitorado doméstico é mais conservador. Biden não pode perder eleitores republicanos moderados.

Em relação ao discurso de ódio e fake news, espera-se alguma colaboração entre os dois países?
Faz sentido que haja conversas sobre uma possível regulação das redes sociais, porque Lula defende um debate global sobre o tema. Mas é uma questão que o Biden precisa olhar para dentro de casa primeiro. Levantar o assunto seria mais uma forma de levar as questões para o plano internacional, para que sejam debatidas e tratadas politicamente, para o Brasil mostrar que quer agir de forma cooperativa. Pode ser importante essa simbologia para mostrar para o mundo que o assunto, de fato, foi colocado na mesa.

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