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Trump, Putin e o “nicho branco”

Lourival Sant’Anna Nesta quarta-feira, o candidato republicano à Casa Branca, Donald Trump, conclamou hackers russos a encontrarem 30.000 emails perdidos de sua adversária democrata Hillary Clinton. O pedido só vem reforçar um laço esquisitíssimo. Desde o início da semana, o FBI já suspeitava que hackers contratados pelo governo russo estejam por trás do vazamento dos emails do […]

TRUMP E MELANIA: ele lidera as pesquisas ao opor os americanos ao “resto”, numa estratégia parecida com a de Putin na Rússia / Spencer Platt/ Getty Images (Spencer Platt/Getty Images)
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Da Redação

Publicado em 27 de julho de 2016 às 12h33.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h37.

Lourival Sant’Anna

Nesta quarta-feira, o candidato republicano à Casa Branca, Donald Trump, conclamou hackers russos a encontrarem 30.000 emails perdidos de sua adversária democrata Hillary Clinton. O pedido só vem reforçar um laço esquisitíssimo. Desde o início da semana, o FBI já suspeitava que hackers contratados pelo governo russo estejam por trás do vazamento dos emails do Partido Democrata, no mais recente golpe na campanha de Hillary Clinton. Há um paralelo natural entre o presidente Vladimir Putin e seu declarado admirador Donald Trump. Tanto Putin quanto Trump apelam para o orgulho ferido de uma população nostálgica por um passado de glória nacionalista e de segurança no emprego. E prometem uma nação forte, que defende os interesses de seu povo, custe o que custar.

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A polícia federal americana afirma ter identificado o mesmo tipo de vírus usado antes por hackers a serviço do Kremlin que invadiram sites da Casa Branca, do Departamento de Estado e de outros órgãos do governo na quebra do sigilo dos emails de dirigentes democratas. As mensagens evidenciaram uma estratégia da direção do partido de prejudicar Bernie Sanders, senador por Vermont, em sua disputa com Hillary pela candidatura presidencial.

A conspiração reforça a imagem de Hillary como manipuladora do partido e violadora de regras. A presidente do Partido Democrata, Debbie Wasserman Schultz, teve de renunciar e cancelar o discurso que faria na convenção, na Filadélfia, depois do vazamento dos mais de 19.000 emails.

Sanders, de orientação socialista, apoiado por sindicatos, manteve a promessa de apoiar Hillary na convenção, com um discurso no qual exaltou o fato de que, graças à sua atuação nas primárias e ao seu acordo com a candidata escolhida, o Partido Democrata disputará a presidência com a plataforma mais à esquerda de sua história. Enquanto isso, sondagem realizada pelo instituto ORC para a rede CNN, mostra que Trump vence Hillary por 48% a 45%. É o melhor desempenho do bilionário desde setembro do ano passado. A explicação da ascensão de Trump passa por Moscou e chega aos grotões da América.

Conexão Manhattan-Moscou

A identificação Trump-Putin, reafirmada pelo bilionário diversas vezes, é um dos muitos aspectos bizarros de sua candidatura. E ela vem de longe. Em entrevista a Larry King, da CNN, em outubro de 2007, Trump declarou: “Olhe para Putin, o que ele está fazendo com a Rússia. Você goste dele ou não, esse cara está fazendo um grande trabalho”.

Em setembro do ano passado, já como pré-candidato (ele se lançou em junho), em entrevista à Fox News, Trump deu uma nota a Putin: “ Ele está tirando ‘A’ e nosso presidente não está indo tão bem”. Em outubro, Trump declarou no programa Face the Nation, da CBS, que ele e Putin tinham se conhecido no 60 Minutes, da mesma emissora, no mês anterior. Na verdade, os dois participaram do mesmo programa, mas não se encontraram fisicamente: Putin foi entrevistado em Moscou.

Em uma coletiva em dezembro, Putin descreveu Trump como “um homem muito exuberante, muito talentoso”, e acrescentou que o então pré-candidato republicano desejava “relações mais profundas” com a Rússia. No mesmo dia, Trump respondeu dizendo que os EUA e a Rússia podiam cooperar para derrotar o terrorismo, e arrematou: “É sempre uma grande honra ser tão simpaticamente elogiado por um homem tão altamente respeitado dentro e fora de seu país”.

Em entrevista ao jornal The New York Times, publicada no dia 21, ele advertiu que só defenderia os aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra uma eventual agressão russa se eles pagassem aos Estados Unidos pelo custo de sua proteção.

Obama — e Hillary, como sua secretária de Estado no seu primeiro mandato — têm sido pedras no caminho de Putin. Os Estados Unidos conduzem um programa de escudo antimísseis na Europa, para a defesa de seus aliados da Otan contra um eventual ataque russo. Além disso, apoiam a Ucrânia nas disputas territoriais com a Rússia e os rebeldes sírios contra o regime de Bashar Assad, aliado de Moscou.

Putin se mantém no poder desde 1999, com uma combinação de repressão e popularidade, que ele alimenta com a suposta restauração da “dignidade” dos russos, perdida pela deterioração econômica e enfraquecimento militar da antiga União Soviética e finalmente pela sua dissolução, em 1990.

Andrei Kolesnikov, pesquisador do Carnegie Endowment em Moscou, descreve assim esse fenômeno: “O cidadão russo pós-soviético parece — ou finge — estar satisfeito com uma sensação de pertencimento a algo grandioso e sem face, uma multidão que compartilha orgulho de si mesmo e de seu líder. O russo médio sente de novo o orgulho de ser diferente de todo mundo e está pronto para sofrer em nome do bem maior”. As aventuras militares de Putin, na Geórgia em 2008, na Ucrânia a partir de 2014 e na Síria no ano passado e neste ano, serviram para reafirmar esse resgate do poderio russo.

Da mesma forma, Trump tem prometido restaurar o poderio americano, fazer com que os Estados Unidos voltem a ser respeitados como superpotência. Isso atende a percepções difusas dos americanos brancos e protestantes, que perderam o sentimento de pertencimento dentro de seu próprio país. No plano econômico, essa sensação está associada à desindustrialização e à queda na qualidade do emprego para os blue-collars, trabalhadores de baixo nível de instrução, que foram prejudicados pelo deslocamento das indústrias para outros países. O aumento da participação de não-brancos, principalmente os imigrantes hispânicos, reforça a sensação de perda do próprio país, associada não só à diminuição de vagas no setor industrial — em parte disputadas com esses imigrantes — mas também à “desamericanização”, por assim dizer, da América.

O fim da base republicana

Em seu livro The End of White Christian America, que acaba de ser lançado, Robert Jones, presidente do Instituto de Pesquisa da Religião Pública (PRRI), de Washington, faz uma radiografia desse sentimento. Ele cita uma pesquisa feita pelo PRRI em março de 2013, na qual os entrevistados responderam à seguinte pergunta: “Desde os anos 50, você acha que a cultura e o modo de vida americanos mudou mais para melhor ou para pior?” Em geral, 53% disseram que mudou para pior e 46%, para melhor.

As diferenças de percepção entre as raças e religiões, no entanto, foram marcantes: 72% dos evangélicos brancos e 58% dos protestantes tradicionais brancos disseram que piorou, assim como 58% dos católicos brancos. Em contrapartida, 59% dos católicos hispânicos consideraram que mudou para melhor, da mesma forma que 55% dos protestantes negros e 63% dos sem filiação religiosa.

“Essa divisão cultural ilustra as consequências políticas e culturais de longo alcance”, escreveu Jones. “Estamos testemunhando o fim da América cristã branca.” O pesquisador considera a posse de Barack Obama em janeiro de 2009 “o desafio simbólico mais visível ao domínio dos cristãos brancos sobre os Estados Unidos”.

Como resposta a essa demanda de resgate da identidade branca e cristã, o Tea Party, corrente conservadora no interior do Partido Republicano, surgiu em abril de 2009, com manifestantes pedindo menos governo e menos tributos. Pesquisa do PRRI de 2013 revela que 73% dos membros do Tea Party concordaram com a frase: “Hoje a discriminação contra os brancos se tornou um problema tão grande quanto contra os negros e outras minorias”. Entre os americanos em geral, 45% concordavam.

Esse americano “abandonado à própria sorte em seu próprio país” é o público-alvo preferencial tanto de Trump quanto de seu principal rival nas primárias republicanas, o senador texano Ted Cruz. Com uma diferença: Cruz é evangélico, enquanto Trump não esconde sua distância do moralismo religioso. Ao contrário, parte de seu suposto charme consiste justamente numa irreverência maliciosa, que resvala facilmente para a baixaria. Em seu discurso de aceitação da candidatura a presidente, no dia 21, em Cleveland, Ohio, Trump não mencionou Deus, algo muito raro em convenções republicanas. Ele agradeceu o apoio da comunidade evangélica e arrematou, num raro momento de modéstia: “Não tenho certeza de que o mereço”.

A volta do Trump populista foi consagrada em seu discurso de aceitação, o mais importante de sua incipiente carreira política. Em 76 minutos, um dos pronunciamentos mais longos da história das convenções americanas, Trump se apresentou como o defensor dos americanos comuns. “Os homens e mulheres esquecidos do nosso país, gente que trabalha duro mas não tem mais uma voz: eu sou a sua voz”.

Quais as chances de alguém se eleger presidente dos Estados Unidos apostando todas as suas fichas nesse, digamos, nicho? Em seu livro, Jones faz um inventário da abrupta mudança demográfica do país e de suas consequências políticas.

O pesquisador lembra que, em 1992, na primeira eleição de Bill Clinton, 73% do eleitorado era branco e cristão. Na última eleição presidencial em 2012, essa fatia havia caído drasticamente, para 57%. Neste ano, ela é de 55% e, seguindo nesse ritmo, deve se tornar 52% em 2020. Se a tendência se mantiver, 2024 será a primeira eleição com minoria de cristãos brancos. Então, mesmo que o candidato republicano obtiver todos os votos cristãos brancos, faltarão 3 pontos porcentuais para a maioria.

Na última eleição presidencial, em 2012, 79% dos eleitores do candidato republicano, Mitt Romney, eram cristãos brancos, e cerca de metade desse contingente eram evangélicos. Mitt Romney ganhou entre eleitores com mais de 30 anos por 1,8 milhão de votos, mas perdeu entre os com menos de 30 anos por 5 milhões. Jones observa que o grupo dos cristãos brancos “foi uma âncora importante para a política republicana no passado, mas é prenúncio de fracasso no futuro”: eles constituem apenas 26% dos eleitores mais jovens, e os evangélicos, 12%. Jones acrescenta que os democratas dependem pesadamente dos sem filiação religiosa, mas esse é um contingente que está crescendo rapidamente.

A conclusão inevtiável, diz Jones, é que, “se o Partido Republicano quiser continuar competitivo em 2016 e depois, a estratégia cristã branca, uma das mais importantes no manual republicano, terá de ser deixada de lado”.

Talvez por isso Trump tenha derrotado Cruz nas primárias: ele não se restringe aos religiosos, embora tenda a abarcá-los. Seu discurso é mais amplo que isso. Ele opõe os americanos ao “resto”. Na convenção republicana, havia homossexuais e negros apoiando o bilionário — embora não em grande número. Será fascinante ver no que dá essa aposta.

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