Perto da eleição, Trump redobra a aposta no confronto com os cientistas
Presidente americano contradiz diretor do CDC, que afirmou que as máscaras são a "melhor ferramenta" contra o coronavírus
Carolina Riveira
Publicado em 17 de setembro de 2020 às 16h12.
Última atualização em 17 de setembro de 2020 às 17h28.
O presidente dos Estados Unidos , Donald Trump , deu ontem mais uma mostra de que não dá muita importância para a opinião dos cientistas e especialistas de seu próprio governo.
Mais de seis meses depois de oficialmente declarada a pandemia global de covid-19 , é consenso que o uso de máscaras está entre as medidas mais importantes para evitar a disseminação do coronavírus.
Horas antes das declarações de Trump, Robert Redfield, diretor do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC), uma das entidades de saúde pública governamentais mais admiradas do mundo, afirmou em depoimento a senadores que as proteções faciais podem ser até mesmo mais eficazes do que as vacinas.
“Se eu não tiver uma reação imunológica à vacina, não estarei protegido. Esta máscara vai me proteger”, afirmou Redfield.
Mas, segundo Trump, não é bem assim. “Acho que ele cometeu um erro ao dizer isso”, afirmou o presidente americano numa entrevista coletiva na Casa Branca realizada às vésperas de o país registrar 200.000 mortos por covid-19.
Trump também contradisse o diretor do CDC, que expressa cautela em relação à disponibilidade de uma vacina. Redfield disse no Senado que a maioria dos americanos só deve contar com imunização em massa em meados do ano que vem.
Em suas aparições de campanha, Trump vem fazendo repetidas promessas de que uma vacina possa receber aprovação até o final do ano. Ele sugeriu até mesmo que isso aconteça a tempo da eleição, que acontece em 3 de novembro.
Anunciar uma vacina logo seria um feito e tanto, afinal de contas a pandemia representa a mais séria ameaça à reeleição de Trump. Mas, mesmo com um esforço global jamais visto, tudo indica que a ciência não vá atender aos desejos do presidente americano.
Apesar da corrida mundial para encontrar um instrumento de imunização, os projetos mais avançados ainda estão sendo testadas. Há cerca de dez dias, o laboratório AstraZeneca suspendeu temporariamente seus testes porque um paciente britânico teve uma reação adversa.
Nem a empresa, que será responsável pela produção, nem os pesquisadores da Universidade de Oxford, que desenvolveram a vacina, revelaram qual foi o problema nem a gravidade dos sintomas apresentados pelo voluntário.
Mas o evento foi um lembrete de que apressar a ciência é um risco. Vacinas normalmente levam anos entre o desenvolvimento em laboratório e a produção em massa. Mesmo que uma imunização para o coronavírus esteja disponível no primeiro trimestre de 2021, todo o processo terá sido realizado em tempo recorde.
“A suspensão dos testes clínicos mostra que existe um sistema de controle, apesar da pressão política”, disse à revista Nature Marie-Paulie Kieny, pesquisadora do instituto francês Inserm. “Serve para lembrar a todos — até mesmo presidentes — que, quando se trata de vacinas, a segurança vem antes de tudo.”
Trump afirmou que a vacina estará disponível “imediatamente” para a população em geral e “sob nenhuma circunstância vai demorar tanto quanto disse o doutor [ Redfield ]”.
Mas os próprios integrantes do governo já deixaram claro que a produção de centenas de milhões de doses leva tempo, e as primeiras devem ser reservadas para certos grupos, como profissionais de saúde e grupos de risco.
A expectativa é que a vacinação de toda a população americana demore de seis a nove meses — a maioria das vacinas em teste hoje exige duas doses.
As máscaras — “a ferramenta de saúde mais importante e poderosa que temos”, nas palavras do diretor do CDC — também voltaram ao centro das discussões políticas. Trump famosamente se recusa a usá-las, afirmando que não quer parecer “fraco”.
Enquanto o candidato democrata, Joe Biden, tem evitado todo tipo de evento que cause aglomerações, Trump retomou sua agenda de comícios. No final de semana passado, ele falou para centenas de apoiadores em um armazém perto de Las Vegas.
A imensa maioria dos participantes não usava máscara. Somente aqueles que estavam numa arquibancada atrás do palco, e portanto na linha de visão das câmeras, foram obrigados a usar proteções faciais.
O evento violou uma regra que proíbe reuniões de mais de 50 pessoas em lugares fechados e está em vigor desde maio no estado de Nevada. O presidente americano tem atitudes “inconsequentes e egoístas, que colocam inúmeras vidas em risco”, disse o governador do estado, o democrata Steve Sisolak.
Num programa transmitido na noite de terça-feira pela rede ABC, Trump respondeu a perguntas de eleitores da Pensilvânia, um dos estados-chave no colégio eleitoral.
Questionado sobre o porquê de não determinar o uso obrigatório de máscaras, Trump primeiro tentou colocar a culpa em Joe Biden, sugerindo que a responsabilidade seria do democrata — embora Biden não tenha cargo executivo.
Trump então disse que “muita gente não quer usar máscaras”. Pressionado pelo moderador a dizer quem são essas pessoas, ele ofereceu uma resposta inusitada:
“Garçons. Eles vêm e te servem, e estão de máscara. Vi outro dia, quando estavam me atendendo. Eles ficavam mexendo na máscara. Não estou colocando a culpa neles, só estou dizendo o que acontece. Eles estão de máscara, encostam nela e depois encostam no prato. Não pode ser coisa boa.”
Como se sabe há meses, os riscos de transmissão do vírus por superfícies são pequenos diante da transmissão pelo ar — como o próprio Trump afirmou em entrevista ao jornalista Bob Woodward.
As mais recentes declarações de Trump deixam claro que, a um mês e meio da eleição, o tom da campanha não vai mudar: tudo ia bem até a chegada do “vírus chinês”, e as precauções defendidas pelos cientistas e pelos democratas só estão agravando a crise econômica.
Seguir contradizendo a opinião dos especialistas — algo que o presidente faz quase diariamente — pode agradar sua base de apoiadores fiéis, mas também pode custar votos dos indecisos.
Uma pesquisa recente realizada pelas universidades Harvard, Northeastern, Rutgers e North western indica que quase 80% dos americanos confiam no CDC — e somente 43% confiam nas palavras de seu presidente.