Venezuela: pacientes com HIV enfrentam falta de recursos e estigma
Governo Maduro não faz campanhas preventivas há anos, e 36 mil pessoas não estão recebendo tratamento para o vírus, segundo a ONU
Agência de notícias
Publicado em 28 de janeiro de 2024 às 10h32.
Última atualização em 28 de janeiro de 2024 às 10h32.
Escondido pela imensa crise política, econômica e social em que a Venezuela submergiu, levando mais de 7 milhões de pessoas a deixarem o país, um outro drama se desenrola sem chamar tanta atenção, o dos quase 100 mil venezuelanos infectados pelo HIV, que ainda têm muito a lutar por seus direitos.
A falta de uma campanha maciça de prevenção somada ao preconceito e à discriminação são fatores que limitam o acesso ao tratamento no país. Números da ONU Sida apontam que cerca de 36mil pessoas não estão recebendo tratamento para o vírus HIV.
Há anos o Estado não faz campanhas de conscientização sobre o vírus, o que deixa mais de 28 milhões de pessoas sem orientação. A problemática é agravada pela falta de médicos e enfermeiros especializados em HIV/Aids, o alto custo de vida, o tabu em torno do vírus e a falha na informação sobre cuidados. Sem apoio estatal, os infectados recorrem a ONGs para conseguir cuidados e orientações para lidar com a condição de saúde.
Escassez de remédios
O problema já vem de longe. Em 2018, ano mais crítico da crise na Venezuela, a escassez de antirretrovirais chegou a 84% em todo o país. Na época, pessoas em tratamento de HIV não tiveram acesso a remédios e a provas rápidas de detecção do vírus.
Carlos foi um deles. Portador do vírus há duas décadas, este mecânico de 62 anos lembra que no auge da crise ele precisou recorrer a paliativos para evitar a evolução do HIV a um quadro de Aids:
— Fiquei uns três meses sem remédios. Precisei cuidar mais da alimentação quando as filas proliferavam por causa da escassez de remédios e de comida. Quando consegui os comprimidos, segui o tratamento e me recuperei — conta ele ao GLOBO.
O governo de Nicolás Maduro bate na tecla de que a delicada situação do país foi causada pela “guerra econômica”. Ao avaliarem os índices econômicos e sociais, os organismos internacionais declararam em 2019 que a Venezuela vive uma emergência humanitária. A partir de então, o país passou receber do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ajuda humanitária e o financiamento do Fundo Mundial de combate ao HIV, Tuberculose e Malária. É graças a essa doação que os portadores do HIV conseguem tratamento. Os recursos são divididos entre a Organização Panamericana de Saúde, que compra os remédios, e a ONU Sida, que direciona a verba às fundações.
“Desde 2016, 2017 o Estado não compra retroviral. Tampouco há provas de detecção rápida. O sistema de saúde foi muito afetado pela crise”, descreve César Pacheco, diretor da Unidade de Resposta ao HIV da ONG Acción Solidaria.
Pacheco lembra que a última campanha de combate ao HIV organizada pelo Estado foi em 2008 e “graças à pressão da sociedade civil”. De lá para cá, pouco é falado sobre a prevenção e cuidado. É como se o vírus não existisse. De acordo com o relatório anual da ONU Sida Venezuela, em 2023 foram registrados 6.506 novos casos. Mas esses números podem maiores. No país, quase não há campanhas preventivas e tampouco de diagnóstico precoce. Há portadores do vírus que desconhecem sua realidade.
Sem testagem pré-natal
Ao contrário do que acontece no Brasil, o Ministério da Saúde da Venezuela não promove a testagem de HIV em etapa pré-natal, o que limita o acesso ao tratamento também ao bebê caso a gestante esteja infectada. Até 2022, era de apenas 33% a porcentagem de grávidas com acesso a antirretrovirais. Apenas um quarto das gestantes faz o teste de HIV e de sífilis, de acordo com a ONU Sida.
Além do alto custo de vida, a inflação é outro fator que complica o cuidado ao portador do HIV. Em 2023, a inflação chegou 189,8%, segundo o Banco Central da Venezuela. Já o salário mínimo equivale a US$3,66. Não fosse por conseguir o antirretroviral gratuitamente, seria difícil cuidar da saúde para conseguir uma boa qualidade de vida. Uma caixa com três preservativos custa entre US$ 1 e US$ 4. A cesta básica em outubro de 2023 girava em torno de US$ 493, segundo o Centro de Documentação e Análise Social. Já o exame da contagem dos linfócitos, CD4, que deve ser feito ao menos uma vez ao ano, gira entre US$40 e US$130. Um exame completo de sangue não sai por menos de US$20.
Muitas mães com HIV acabam preferindo amamentar seus filhos por não poderem comprar fórmulas lácteas, que podem custar cerca de US$15 (o equivalente a R$ 75).
Preparo inadequado
A falta de médicos e enfermeiros preparados é outro obstáculo no tratamento. Segundo a Federação Médica Venezuelana, cerca de 42 mil trabalhadores da saúde deixaram o país nos últimos anos por causa crise econômica. Há dez anos Jonas descobriu ser portador do vírus após fazer exames durante um processo de admissão laboral. O jovem recorreu ao serviço de saúde pública e precisou brigar para conseguir atendimento:
— Alguns médicos são ignorantes. Eles fazem nos sentir culpados. Tem médicos que não sabem muito sobre o tema e tampouco como atender corretamente os pacientes. Há pessoas que ficam meses tentando conseguir o tratamento — conta o jovem de 29 anos.
Medo do estigma e da discriminação é um fator que leva muitos infectados a não buscarem atendimento médico, o que freia o controle da epidemia. Embora seja ilegal, há empregadores que nos exames de admissão fazem o teste de HIV sem o consentimento do candidato à vaga, e dispensam a pessoa sem dar explicações se o resultado for positivo — o que dilata ainda mais o início ao tratamento e o controle da carga viral.
De acordo com a infectologista María Viki Zabaleta, três fatores prejudicam o atendimento ao portador do vírus:
— Muitos médicos saíram do país. A Sociedade Venezuelana de Infectologia está dando cursos para ensinar a novos médicos como identificar e tratar casos de HIV; além disso, há falta de material hospitalar e os baixos salários.
Para a socióloga Betty Núñez, “o problema se radica no preconceito e na falta de políticas públicas ou de campanhas informativas associadas à prevenção e à proteção (...). É uma questão cultural que em vez de prevenir o cuidado, termina por silenciar o acesso ao tratamento”.