O rumo do Brexit em xeque
A premiê britânica, Theresa May, viu seu Partido Conservador perder oito cadeiras e a maioria no Parlamento no último dia 8 de junho, e saiu enfraquecida
Carol Oliveira
Publicado em 19 de junho de 2017 às 09h01.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h57.
Passadas as eleições, é hora de reorganizar a casa no Reino Unido. A premiê britânica, Theresa May, viu seu Partido Conservador perder oito cadeiras e a maioria no Parlamento no último dia 8 de junho, e saiu enfraquecida do pleito — que ela havia antecipado de 2020 para este ano justamente tentando aumentar sua legitimidade, num tiro que saiu pela culatra. A agenda que ela defendia passou a ser muito mais questionada do que antes e, agora, diferentes vozes dentro de seu partido tentam assumir os rumos do futuro britânico.
O resultado da eleição colocou frente a frente vertentes que já haviam tido um embate no ano passado, durante as discussões sobre o referendo que decidiu sobre a saída do Reino Unido da União Europeia. Assim como na campanha do Brexit, de um lado há a ala mais moderada do Partido Conservador, que era contra a saída da UE e, agora, é a favor de um rompimento mais suave (o chamado “soft Brexit”); do outro, os mais conservadores, que fizeram campanha para sair do bloco e, nas negociações sobre como se dará a retirada, defendem um rompimento mais duro (o “hard Brexit”).
May apresentou seu novo gabinete na segunda-feira, e a equipe inclui representantes de ambas as correntes. Alguns dos que hoje lideram a disputa de agenda dentro do Partido Conservador também já concorreram à posição de premiê com a própria May em julho passado — como o secretário de Estado e ex-prefeito de Londres, Boris Johnson, e o ministro do Meio-Ambiente, Michael Gove, ambos mais conservadores que May. Naquele momento, o ex-premiê David Cameron fora obrigado a renunciar após não conseguir convencer os eleitores a permanecerem na União Europeia. Enquanto isso, May era então uma relativamente desconhecida ministra do Interior.
Embora May tenha sido anti-Brexit durante a campanha do referendo, estivesse no gabinete de Cameron e fosse grande apoiadora do ex-premiê, para o historiador David Jarvis, especialista em Partido Conservador da Universidade Cambridge, foi justamente a capacidade de se manter neutra que fez com que ela conquistasse o cargo de líder do partido. “May foi muito inteligente durante o referendo porque fez o mínimo de declarações possível. Naquela época, ela já estava se posicionando para uma futura liderança: sentiu que o partido precisaria ser liderado por alguém que não escolheu muito fortemente uma posição”, diz o professor Jarvis.
Agora, ela vai precisar novamente de seu poder de coalizão: para negociar o Brexit e também para chegar a um acordo para voltar a ter maioria no Parlamento — os conservadores estão de olho nas dez cadeiras do DUP, Partido Unionista da Irlanda do Norte, que pode lhes fazer chegar às 326 necessárias. “May vai continuar no cargo por enquanto, porque o Partido Conservador está com medo que um novo líder seja obrigado a convocar outra eleição geral — que o partido provavelmente iria perder”, diz o historiador britânico James Cameron, professor de Relações Internacionais da FGV. “May e o partido estão presos numa relação fatal, e nenhum pode sobreviver sem o outro.”
“Hardcore Brexiters”
Desde que chegou ao cargo, May vem propondo o chamado Brexit “duro”: em pronunciamento em janeiro, ela apresentou pontos como a saída total da zona de livre-comércio europeia, o fim da livre circulação de pessoas e um rígido controle da imigração. O apoio da premiê à permanência na Europa durante a campanha do referendo, portanto, havia ficado para trás. “Brexit significa Brexit”, disse ao assumir.
Essa visão de May sobre a saída agradava à ala mais conservadora do partido: os chamados “hardcore Brexiters”, que defendem um rompimento profundo com a Europa. Fazem parte dessa corrente nomes como os parlamentares Dominic Raab e Iain Duncan Smith e o ex-ministro da Justiça, Michael Gove. A influência dos hardcore Brexiters sobre May é tamanha que ela acaba de nomear Gove como secretário do Meio-Ambiente — cargo no qual ele terá de lidar com a questão dos subsídios nas trocas comerciais agrícolas com a União Europeia. Os ultraconservadores foram forte apoiadores de May durante as eleições, porque ainda a veem como a melhor chance que eles têm de obter um rompimento maior com a UE.
Outro nome na ala mais conservadora do partido é Boris Johnson, ex-prefeito de Londres e secretário de Estado no governo May desde o início do mandato dela. No ano passado, ele foi o principal nome por trás da campanha para deixar a União Europeia, e à época, especulava-se que substituiria David Cameron como primeiro-ministro. Após a derrota na eleição de 8 de junho, Johnson novamente foi a público dizer que não planeja tentar tomar o lugar de May, ainda que fontes indicam que ele está trabalhando para se “preparar” no caso de o partido, mais tarde, decidir substituir a premiê.
O caos no Reino Unido é tão grande que nem mais o “hard Brexit” é uma certeza. O resultado da eleição enfraqueceu não somente o Partido Conservador e a premiê, mas sua própria proposta de Brexit. Um porta-voz afirmou que a visão da líder sobre o tema “não mudou”, mas que, “obviamente vão haver discussões no gabinete”.
Dentro dessas discussões, ganha força no partido uma ala mais moderada, liderada por nomes como David Davis, secretário para as negociações do Brexit, e Phillip Hammond, ministro das Finanças — os chamados “cabeças brancas”. Hammond, inclusive, estava prestes a ser demitido por May antes das eleições e, agora, vem sendo um dos nomes cotados para substituir a premiê caso ela caia. Fontes próximas ao partido disseram que Hammond disse a May que só participaria do novo governo se ela o desse mais voz nas negociações.
O Brexit “suave” desejado por essa ala do partido inclui até mesmo a possibilidade de permanecer dentro da área de livre circulação de mercadorias da União Europeia, ainda que isso signifique que o Reino Unido não possa negociar seus próprios acordos bilaterais e dependa dos outros 27 membros da UE para fazê-lo em conjunto. Por outro lado, mesmo dentro da ala moderada, está claro que se manter na área de livre comércio pode significar uma traição ao resultado do referendo. O secretário do Brexit, David Davis, lembrou que o Partido Conservador — e mesmo o Partido Trabalhista, de oposição —, prometeram aos britânicos “controle sobre suas leis, fronteiras e comércio”.
Outro ponto que pode convencer May a tornar sua proposta de Brexit menos rigorosa é o acordo que vem sendo costurado com o DUP para que a premiê retome sua maioria parlamentar. Ao longo da semana, a premiê vem conversando com a líder dos unionistas, Arlene Foster, mas a confirmação da parceria foi adiada após um incêndio que matou 12 pessoas e deixou outras dezenas de feridos em um prédio residencial em Londres na quarta-feira. O DUP tem uma posição ambígua: embora seja bastante conservador e a favor do Brexit, a Irlanda do Norte precisa de um acordo que permita abrir as fronteiras da Irlanda ao sul — que embora esteja no mesmo território, não pertence ao Reino Unido e segue na União Europeia. E isso só seria possível com um Brexit mais moderado. Portanto, para May, fazer acordo com o DUP significará tentar algum tipo de solução para esse impasse e, até mesmo, para evitar que os norte-irlandeses fiquem isolados.
Embora May afirme que sua visão não mudou e que ela continuará tentando manter seu plano inicial de Brexit, a premiê precisará como nunca da ajuda da ala moderada do partido. O ex-premiê David Cameron disse nesta semana que a derrota nas eleições é inclusive uma oportunidade para que o partido perceba no que errou.
Qual o futuro de May?
Lidar com as diferentes vertentes de seu partido será importante para May não somente na negociação do Brexit, mas em qualquer outro tema que necessite de sua base parlamentar. E algo que as eleições mostraram é que os britânicos não querem apenas falar de Brexit. Uma das principais críticas à campanha de May, inclusive, foi sua incapacidade de falar sobre outros assuntos ou sua ausência nos debates. Ao longo da campanha, a premiê bateu na tecla de que era uma “líder forte” para negociar o Brexit, mas se recusou a comparecer aos debates na TV e esqueceu de detalhar outros pontos do país, como o financiamento de serviços públicos.
Os gastos públicos em serviços como o NHS, sistema gratuito de saúde — similar ao SUS brasileiro — foram tópico presente na campanha. Embora May tenha tentado afastar o Partido Conservador de uma imagem austera e de corte de serviços públicos — uma fama que vem do modelo de gestão da ex-premiê Margaret Thatcher —, o Partido Trabalhista conseguiu apelar mais aos eleitores nesse sentido. Não à toa, a legenda liderada por Jeremy Corbyn conquistou 30 cadeiras a mais do que antes, ainda que tenha afirmado que, assim como os conservadores, vai cumprir a promessa de manter o Brexit e respeitar o referendo do ano passado.
O resultado é que a popularidade de May não anda das melhores: 49% dos eleitores acham que ela deve renunciar, segundo uma pesquisa divulgada nesta semana pelo instituto Survation — o único a acertar os resultados da eleição geral da semana passada. A pesquisa também mostra que, se a eleição fosse hoje, os trabalhistas teriam mais votos que o Partido Conservador (45% a 39%) e Jeremy Corbyn poderia ser o primeiro-ministro.
No fim, com a popularidade em baixa e tantos rachas internos dentro do partido, mesmo o acordo com o DUP pode não ser suficiente para que May tenha uma base pacífica daqui para frente. Aí entra também a necessidade de obter algum apoio até mesmo da oposição de Corbyn. “May pode precisar de votos dos trabalhistas para passar um acordo do Brexit. E, inclusive, algumas pessoas têm defendido uma coalizão multipartidária em defesa de um Brexit suave”, afirma o professor Cameron. Dessa forma, a tendência é que os trabalhistas, agora com números maiores, também obriguem May a adotar uma postura mais moderada — seja no Brexit ou em temas sociais.