O que pensa Giorgia Meloni, premiê eleita da Itália — leia entrevista exclusiva à EXAME
Giorgia Meloni, líder do partido direitista Fratelli d'Italia e vencedora das eleições italianas, concedeu entrevista à EXAME durante a campanha, quando explicou suas propostas para o país; veja os principais trechos
Carlo Cauti
Publicado em 26 de setembro de 2022 às 11h01.
O partido Fratelli d'Italia (irmãos da Itália) venceu as eleições legislativas italianas no domingo e sua líder Giorgia Meloni se tornará a nova-primeira ministra do país, liderando uma coalizão de direita conservadora. A vitória marca a ascensão de Meloni e seu partido, que saltaram de pouco mais de 4% dos votos há quatro anos para quase 30% nesse fim de semana, segundo os resultados de boca de urna.
Há pouco menos de um mês, Meloni, de 45 anos, falou com exclusividade à EXAME sobre seus planos para a Itália caso fosse eleita — na ocasião, o partido da futura premiê já liderava as pesquisas. "O objetivo é reverter o declínio econômico, social e moral que a Itália, infelizmente, está vivenciando há décadas. Esse declínio não é irreversível. Vamos voltar a crescer", disse.
Na primeira entrevista a um veículo brasileiro, Meloni conversou com a EXAME via telefone em Cernobbio, a "Davos italiana", onde encontrou a elite empresarial da Itália durante uma etapa de sua campanha eleitoral. No Brasil, há mais de 300 mil pessoas com cidadania italiana e direito a voto. Veja os principais trechos da entrevista abaixo, publicada originalmente em setembro.
Candidata Meloni, a senhora pode se tornar a próxima primeira-ministra da Itália. Quais serão as prioridades de seu futuro governo?
A prioridade absoluta é apoiar as famílias e as empresas numa fase muito difícil de subida dos preços e do custo da energia. Queremos libertar as muitas energias da nossa nação, fazendo do Estado um aliado e não um inimigo dos cidadãos. Além disso, queremos acabar com a imigração descontrolada que, com a esquerda no governo, atingiu números incríveis de desembarques ilegais em nossos litorais.
A Itália e toda a Europa estão enfrentando uma crise energética muito grave, que vai piorar nos próximos meses. Como a senhora planeja enfrentar essa emergência?
Nesse momento, a prioridade é continuar diversificando a oferta e, ao mesmo tempo, atuar a nível europeu em duas frentes: criar um teto do preço do gás e dissociar o preço da eletricidade do preço do gás. São coisas separadas e devem ter preços distintos. Esta segunda medida também pode ser implementada em nível nacional, caso hajam muitos atrasos em nível europeu. Só assim conseguiremos baixar o custo das contas para famílias e empresas e acabar com a especulação. No médio prazo, porém, a produção nacional de energia deve aumentar. Na Itália, devemos superar o ambientalismo ideológico e criar uma nova matriz energética: desbloquear a extração de gás de nossos mares, investir em fontes geotérmicas e outras energias renováveis, continuar desenvolvendo a pesquisa nuclear de última geração. E a UE deve fazer o mesmo, porque ao perseguir a utopia da "eletrificação a todo o custo”, por exemplo, para os carros, corremos o risco de nos condenar para uma nova e ainda mais perigosa dependência da China.
Apesar dessa crise, os fluxos migratórios da África em direção da Itália não param. Como seu eventual futuro governo agirá para lidar com a emergência migratória?
Os números mostram claramente as falhas dos últimos governos de esquerda no âmbito da imigração. É algo evidente. Quando a esquerda está no poder, falta capacidade e vontade política para conter os fluxos irregulares. Mas mesmo a UE falhou até agora, não ajudou os estados fronteiriços o suficiente para proteger as fronteiras externas, como — por sinal — seria previsto pelos tratados europeus. Queremos imigração regulamentada, como todas as nações civilizadas. No Brasil, por exemplo, se você for estrangeiro e quiser entrar deve ter uma autorização regular e a perspectiva de uma integração real. Por isso propomos uma missão naval europeia no Mediterrâneo central, de acordo com as autoridades africanas, e a criação de hotspots, centros de triagens de migrantes construídos diretamente em território africano, para distinguir refugiados de migrantes econômicos. Os refugiados têm direito a entrar na União Europeia, e eles seriam transferidos diretamente nos 27 países-membros da UE. Os migrantes econômicos seriam repatriados, pois eles não têm direito de ingressar. Isso permitiria atingir com força os traficantes de seres humanos e esmagar esse terrível negócio que é feito em cima da pele dessas pessoas. Éramos uma nação de emigrantes, muitos italianos foram acolhidos na América Latina. E todos, com raras exceções, se integraram nesses novos países, trabalharam gerando riqueza para as nações que os acolheram. Sabemos o valor da hospitalidade, mas exigimos respeito pelas nossas leis.
Que receita a senhora propõe para uma retomada da economia italiana, que está estagnada há anos?
Em primeiro lugar, rejeitamos a ideia de que o declínio é um destino irreversível. Nós somos a alternativa ao declínio. A prioridade agora é reduzir os impostos sobre o trabalho, sustentar o poder de compra das famílias e ajudar as empresas, eliminando todos aqueles bônus inúteis que alimentam o assistencialismo populista, mas não produzem desenvolvimento. Assim, uma tributação mais leve, mas também uma burocracia simplificada, uma Justiça segura e rápida, infraestruturas modernas, segurança e legalidade são as condições fundamentais para uma nova temporada de crescimento. Queremos criar uma nova política industrial que favoreça as empresas que contratam, que geram emprego, e valorizem nossas marcas, uma riqueza inestimável porque o mundo está faminto de produtos "Made in Italy".
Qual é a sua posição na guerra entre a Rússia e a Ucrânia?
O partido que tenho a honra de liderar, Fratelli d'Italia, condenou desde o primeiro minuto a agressão russa contra a Ucrânia. Uma violação inaceitável do direito internacional e da integridade territorial de uma nação soberana. Também apoiamos os esforços do governo italiano, mesmo estando na oposição, no âmbito das respostas à agressão russa, reafirmando a tradicional posição geopolítica pró-europeia e pró-ocidental da Itália. Não só o futuro da Ucrânia depende do desfecho desse conflito, mas estamos diante de uma tentativa de subverter a atual ordem mundial para estabelecer outra liderada pela Rússia e, mais ainda, pela China.
A Europa e o Ocidente têm sido muito preguiçosos em desenvolver relações com a América Latina e o risco é provocar um preocupante distanciamento do nosso horizonte comum de valores. O expansionismo chinês também está se enraizando em seu continente, os regimes e governos de esquerda ligados ao Foro de São Paulo muitas vezes acenam para essas potências, dezenas de milhões de latino-americanos vivem sob ditaduras implacáveis, de Cuba à Nicarágua e à Venezuela. Em vez disso, queremos que a América Latina continue sendo parte integrante do Ocidente. Nações como a Itália, com a centro-direita no governo, poderão contribuir muito nesse sentido. Acredito que seja a mesma esperança de milhões de italianos com dupla cidadania que vivem neste maravilhoso continente.
Muitos descendentes de italianos na América Latina se sentem abandonados pelo país de origem de suas famílias. Como reconectar esse vínculo histórico-cultural e familiar?
Fratelli d'Italia sempre olhou com orgulho para aquela outra Itália que vive fora de nossas fronteiras. A Itália hoje tem cerca de 60 milhões de habitantes, mas há outros 60 milhões de italianos nascidos no exterior, como ítalo-brasileiros, ítalo-argentinos, ítalo-venezuelanos, entre outros, além dos cerca de 5,5 milhões de italianos residentes no exterior, que representam um patrimônio inestimável. Proteger os interesses dessas pessoas e restabelecer um vínculo direto e profundo com eles significa, antes de tudo, valorizar uma ferramenta preciosa para as relações econômicas e comerciais com os países em que eles vivem. Este é um interesse estratégico para a Itália e por isso incluímos a valorização dos italianos no exterior no programa de um governo de centro-direita. Procuraremos fortalecer adequadamente a rede de serviços diplomáticos e consulares italianos. Também queremos apoiar a difusão das escolas italianas, da cultura italiana e da língua italiana. Lutaremos pela valorização de símbolos e monumentos importantes para nossas comunidades no exterior, muitos dos quais estiveram no centro de vergonhosas campanhas de “cancelamento”. Ninguém ama e protege mais essa história e esses valores do que a direita italiana.
Pois, então, vamos falar dos descendentes de italianos que vivem na América do Sul. Muitos deles vivem na Venezuela. Qual é sua posição em relação à ditadura de Nicolás Maduro e como seu eventual futuro governo governo se comportará a esse respeito?
A situação econômica e social na Venezuela é cada dia mais grave. Devido às políticas fracassadas dos regimes chavistas, pioradas pela pandemia de covid-19, está ocorrendo uma verdadeira emergência humanitária. Mais de 6 milhões de pessoas já fugiram para o exterior em busca desesperada de segurança, comida, remédios e outras necessidades básicas. Entre eles também estão centenas de milhares de pessoas de origem italiana. Fratelli d'Italia sempre esteve ao lado da oposição ao regime bolivariano e continuaremos não reconhecendo Maduro como o presidente legítimo da Venezuela e apoiando a transição democrática, por meio de novas eleições legislativas e presidenciais livres e confiáveis. Quando bens supremos como a liberdade estão em jogo, é nosso dever tomar posições claras. Mesmo se há muitos amigos de Maduro e simpatizantes do Foro de São Paulo na esquerda europeia e também em seu aliado italiano, o Partido Democrático.
Além da Venezuela, a Argentina também está em uma nova crise econômica, que pode se transformar em uma convulsão política. Seu governo poderia favorecer o retorno de descendentes de italianos desses dois países para a Itália? De que forma?
Lamento muito ver o povo argentino ter de enfrentar mais uma crise econômica. A Argentina tem todo o potencial para poder oferecer uma vida digna a todos os seus cidadãos e queremos fortalecer os laços entre Roma e Buenos Aires, alavancando a presença de milhões de descendentes de italianos e, em particular, promovendo iniciativas empresariais e industriais conjuntas. Nossa nação está em uma situação de grave declínio demográfico e estou convencida de que é nosso interesse específico, além de um dever de gratidão, acolher prioritariamente os descendentes de emigrantes italianos, se necessário.
No Brasil haverá eleições em outubro. Qual sua opinião sobre o presidente Jair Bolsonaro? E qual sobre o principal desafiante, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Olha, eu sempre tive um profundo respeito pelas dinâmicas democráticas de outros países, pela mesma razão que exijo respeito pelas dinâmicas da Itália. Certamente não posso deixar de notar a persistência da grande mídia em relação ao presidente Bolsonaro, como acontece com o Fratelli d'Italia e com quem ouse desafiar o sistema de poder esquerdista. Espero que uma possível vitória de Lula não faça o Brasil voltar a se aproximar da Venezuela e de Cuba, dois Estados liderados por regimes antidemocráticos. De qualquer forma, se eu tiver a honra de liderar o governo italiano, trabalharei com quem for eleito em Brasília, convencida de que o Brasil é um grande aliado da Itália e que é preciso continuar fortalecendo os laços econômicos e culturais também, à luz do atual contexto geopolítico que vê a Europa e a América Latina chamadas a cooperar ainda mais estreitamente.
A senhora poderia ser a primeira mulher a ser nomeada chefe do governo italiano. Como está se sentindo?
Seria uma honra para mim ser a primeira a quebrar esse tabu. Mas sou uma pessoa muito rigorosa, antes de tudo comigo mesma. Não participo dessas eleições como se fossem um concurso de beleza. Sei bem que se os italianos me escolhessem para governar, meu governo enfrentaria circunstâncias muito complicadas. Seria uma enorme responsabilidade. Mas mais uma coisa eu quero dizer sobre as mulheres: você vê, eu sou mãe de uma criança e tenho o privilégio de poder fazer política porque eu posso pagar. Na Itália há muitas mulheres que abrem mão do dom da maternidade porque não podem pagar ou não podem perder espaço no mercado de trabalho. Assumi um compromisso com elas: colocá-las em condições de não ter de escolher e poder ser mães livremente. Faz parte das políticas de família e natalidade que tentaremos implementar se chegarmos ao governo.
Ao mesmo tempo, a esquerda italiana a acusa de ser a "herdeira do fascismo" e alude aos "perigos à democracia". Como a senhora responde?
São acusações ridículas, sintoma do deserto cultural e programático da esquerda italiana que tem enormes responsabilidades no passado recente, soluções fracassadas no presente e poucas ideias para o futuro. É por isso que tentam envenenar a campanha eleitoral, me retratando como um monstro e tentando nos arrastar para um debate estéril sobre o passado, enquanto tentamos dizer aos italianos o que queremos fazer para resolver seus problemas. Fratelli d'Italia é o partido dos conservadores italianos, um governo de direita moderno e ocidental que já resolveu suas pendências com a História há muito tempo. Todos sabem que não somos uma ameaça à democracia, mas certamente somos um perigo para o sistema de poder da esquerda italiana, que está no governo há anos sem vencer as eleições. Aliás, ninguém nunca os chama de "pós-comunistas", apesar do fato de que historicamente derivam do maior partido pró-soviético do Ocidente.
A senhora vai levar a Itália a sair da Zona do Euro ou da União Europeia?
Essa é uma das muitas fake news sobre a relação que nosso governo teria com a Europa. Muitas dessas notícias falsas são espalhadas pela esquerda que, pensando em me prejudicar, na verdade coloca a Itália em maus lençóis, retratando nossa sólida democracia ocidental como uma espécie de república das bananas e oferecendo argumentos inexistentes para aqueles que têm interesse em manter Itália à margem da cena internacional. A verdade é obviamente muito diferente. Acredito que sou objetiva ao dizer o que há de errado com esta União Europeia. A pandemia e a guerra nos mostraram que a UE não estava pronta. Durante anos demais, Bruxelas aumentou suas competências em muitos aspetos da nossa vida cotidiana, esquecendo-se de ter uma política externa e de defesa comum, garantir nossa autonomia energética, encurtar as cadeias produtivas e trazer as produções estratégicas de volta para dentro de casa. Por isso, gostaria de uma Europa que fizesse menos e melhor, com menos centralismo e mais subsidiariedade, menos burocracia e mais política.