O fim de uma era pacifista no Japão?
Uma das prioridades do governo até 2020 é mudar a Constituição para reorganizar as Forças Armadas, que hoje atuam apenas como um serviço de autodefesa
Da Redação
Publicado em 28 de outubro de 2017 às 09h58.
Última atualização em 28 de outubro de 2017 às 09h58.
O primeiro-ministro do Japão , Shinzo Abe, iniciou esta semana um novo mandato à frente do país. Após antecipar as eleições que só aconteceriam no ano que vem, se valendo de um momento de alta popularidade, Abe garantiu por mais quatro anos sua maioria no Parlamento, no último domingo. O principal argumento para a urgência em refrescar seu mandato foi a necessidade de lidar com a crise nacional promovida pelas frequentes ameaças nucleares da Coreia do Norte.
A coalizão de apoio a Shinzo Abe, que está no poder desde 2012, venceu com larga vantagem, e conquistou mais de dois terço das 465 cadeiras parlamentares disponíveis. Assim que soube do resultado, já no domingo à noite, o primeiro-ministro avisou que sua tarefa imediata é lidar com a Coreia do Norte. “Será preciso usar de uma diplomacia difícil. Com o mandato que me foi concedido pelas pessoas, gostaria de exercer meu comando na diplomacia”, disse Abe a jornalistas.
O processo para tentar melhorar as estratégias para lidar com a Coreia do Norte começou há alguns meses – em maio, o primeiro-ministro já havia estabelecido que 2020 seria o prazo final para a mudança da Constituição do país. O ponto é que o texto que rege o Japão foi redigido logo depois da Segunda Guerra Mundial, em 1947, e prevê que o país não deve dotar suas Forças Armadas com beligerância além da necessária para a autodefesa. Desde aquela época, é responsabilidade dos Estados Unidos colocar seu poder militar à disposição dos japoneses caso seja necessário.
A Constituição de natureza pacifista completou, neste ano, 70 anos em vigor. E, num vídeo que marcou o aniversário do texto, Abe afirmou: “Eu anseio fortemente por fazer de 2020 o ano em que um Japão renascido vai trilhar um novo começo”. Agora, esse desejo está muito perto de ser alcançado. Uma pesquisa realizada logo após as eleições pelo jornal The Asahi Shimbun mostrou que 82% dos parlamentares entrevistados – ou 77% dos eleitos, já que 436 responderam às perguntas – são a favor de uma reforma constitucional.
A população, porém, não está tão convencida em relação às mudanças no tal artigo 9 da Constituição, onde está escrito que o país renuncia à guerra. Uma pesquisa realizada pela agência de notícias Kyodo News em abril deste ano mostrou que 49% eram contrários à mudança, e 47% se posicionaram a favor. Quando a reforma no texto era vinculada ao governo, a desaprovação foi ainda maior: 51% dos entrevistados disseram ser contra alterações constitucionais enquanto Abe estiver no poder. Além disso, 75% reconheceram que o artigo 9 foi fundamental para evitar que o país se envolvesse em novos conflitos no pós-guerra.
Os traumas deixados pela guerra, que deixou mais de 300.000 mortos com a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, por muito tempo justificaram a abstenção do Japão em assuntos militares. Mas o momento é outro. Para o especialista em política internacional japonesa Robert Dujarric, diretor do Instituto de Estudos Asiáticos Contemporâneos (ICAS) da Temple University, em Tóquio, a mudança é necessária. “É uma região perigosa. Si vis pacem, para bellum [provérbio latim que significa ‘se quer paz, prepare-se para a guerra’]”, afirma Dujarric.
O especialista salienta que a mudança não seria brusca. O país já é dotado de forças navais e de um Exército que, apesar de serem denominados de Self Defense Forces desde os anos 1950, são atuantes e articulados. Além disso, a população precisaria estar de acordo com qualquer mudança na Constituição. “O Parlamento teria que aprovar as emendas, que teriam que ser então ratificadas via referendo”, diz Dujarric.
Outro ponto sensível dessa discussão é o fato de que, com a formação de um exército, o país conquistaria um outro patamar de autonomia. É no que acredita o cientista político Alexandre Uehara, que foi analista político-econômico da Japan External Trade Organization, órgão do governo japonês, e é professor das Faculdades Integradas Rio Branco, em São Paulo. “A situação hoje no Japão é de um estado não normal, porque o país tem o direito de resolver plenamente seus interesses”, afirma Uehara.
Shinzo Abe também não é o primeiro a questionar o pacifismo constitucional. Essas discussões começaram a se intensificar a partir da década de 1990, quando os norte-coreanos começaram a trabalhar em seu próprio sistema de mísseis, ainda no governo de Kim Jong-il, o que agravou a sensação de desconforto e insegurança no Japão.
O atual momento de relação de certa instabilidade com os Estados Unidos ajudou a adiantar o processo. O cientista político Alexandre Uehara lembrou que, assim que assumiu, o presidente americano Donald Trump decidiu retirar o país do Acordo Transpacífico (TPP), acordo econômico que reunia 40% da economia do mundo. “O Japão tinha sido um dos últimos países a entrar no acordo, e muito pela pressão americana. O abandono da parceria foi um mau sinal. Deu o sinal de que não dá para confiar cegamente a defesa do país ao poder norte-americano, porque o nível de compromisso diplomático pode mudar a depender de quem estiver no poder”, diz Uehara.
O especialista também citou que a nação japonesa, que é uma das maiores potências tecnológicas do mundo, teve seu potencial de aplicação dessa tecnologia da defesa limitado, uma vez que transformar esse conhecimento tecnológico em produtos finais poderia contrariar os interesses americanos – que detêm grandes bases militares no arquipélago. Essa crítica está presente no livro O Japão que pode dizer não, do político Shintaro Ishihara, publicado ainda no final da década de 1980. Aprender a se defender é também uma forma de buscar independência.