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O anti-Papa e o anti-Trump

Carlo Cauti, de Roma  “O encontro vai dar certo”. Essa é a única declaração feita por fontes do Vaticano, comentando a chegada, nesta terça-feira, do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua primeira visita oficial ao coração do catolicismo. Não está claro se se trata de uma oração, de uma esperança ou de uma […]

TRUMP E SUA MULHER, MELANIA, CHEGAM A ROMA: encontro de opostos com Papa Francisco  / Remo Casilli/ Reuters

TRUMP E SUA MULHER, MELANIA, CHEGAM A ROMA: encontro de opostos com Papa Francisco / Remo Casilli/ Reuters

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Da Redação

Publicado em 23 de maio de 2017 às 19h42.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h12.

Carlo Cauti, de Roma 

“O encontro vai dar certo”. Essa é a única declaração feita por fontes do Vaticano, comentando a chegada, nesta terça-feira, do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua primeira visita oficial ao coração do catolicismo. Não está claro se se trata de uma oração, de uma esperança ou de uma previsão concreta. Mas segundo muitos assessores da Santa Sé, nesta quarta-feira poderá ocorrer um pequeno milagre: Francisco, o anti-Trump, e Donald Trump, o anti-Papa, entregarão ao mundo uma imagem de reconciliação.

Um sinal de misericórdia, e também de realismo político, após um ano de gelo entre Washington e o Vaticano, desencadeado depois que o Pontífice definiu como “não cristão” o presidente americano em abril 2016 por seu rejeito aos imigrantes e sua intenção de fechar as fronteiras. O clima piorou em janeiro de 2017, quando em uma entrevista ao jornal espanhol El País, Francisco teria evocado Adolf Hitler para fazer uma comparação com o voto populista, em uma alusão muito explícita ao presidente americano.

Considerando o caráter das duas personalidades, o encontro provavelmente mostrará a distância entre ele em matéria de imigração, relações com o mundo islâmico, assistência aos pobres e estratégias no Oriente Médio.

O Papa aceitou receber Trump às 8h30 da manhã, porque uma hora depois há a audiência geral na Praça São Pedro com a multidão de fieis que todas as quartas-feiras lotam o local. Portanto, há um espaço de cerca de 45 minutos para uma conversa entre Trump e Francisco. Se for mais curto do que isso, saberemos que os dois preferiram a fria formalidade, já que esse foi o tempo concedido ao antecessor Barack Obama. Qualquer coisa perto de cinco minutos seria um desastre.

O fato de que o Papa receberá Trump em uma quarta-feira é visto por muitos como um sinal de hostilidade nem muito disfarçado. O encontro poderia ter sido marcado logo depois da audiência geral, para eventualmente ter mais tempo disponível se o diálogo fosse pelo caminho certo. O que, evidentemente, o Pontífice não espera que ocorra. Além disso, Francisco impôs uma condição à delegação americana: pediu que as questões de segurança, inevitáveis no caso de uma visita de um presidente dos Estados Unidos, não perturbem o fluxo dos fiéis em São Pedro para a audiência geral.

O Vaticano propôs que Trump chegasse de helicóptero aterrissando no pequeno heliponto dentro dos muros vaticanos. A resposta foi que, para conter toda a delegação americana, normalmente são necessários quatro enormes helicópteros. Por isso, a solução foi descartada. No final, decidiu-se organizar uma procissão de carros blindados que entrarão no Vaticano pela Porta del Perugino, uma entrada lateral que corre ao longo da Casa Santa Marta, a austera residência papal. Será a primeira vez na história que um presidente americano entra no Vaticano pela porta dos fundos. É um verdadeiro pesadelo diplomático para a segurança do presidente, já que o comboio deverá atravessar as estreitas estradas de Roma, o que aumenta o risco de ataques.

Muitos dos funcionários americanos são da época da presidência de George W. Bush, e conhecem bem os problemas desse tipo de visitas. Eles querem evitar os atritos registrados durante a visita do Papa em Washington em setembro 2015, quando na chegada à Casa Branca os membros do Serviço Secreto exigiram revistar todos os membros da delegação vaticana, cardeais incluídos, com uma unica exceção: o Papa.

Um sinal de boa vontade veio da primeira-dama americana. Imediatamente após a confirmação da visita no Vaticano, a esposa de Trump, Melania, escreveu uma carta particular para Francisco, salientando como ela estaria honrada de encontrar o Papa e relembrando sua fé católica (Melania nasceu na Eslovênia). Uma iniciativa que dificilmente foi levada adiante sem que o marido e os altos funcionários da Casa Branca fossem informados.

A audiência foi solicitada pelo presidente dos Estados Unidos, que está de passagem pela Itália para se reunir na cúpula do G7, o grupo de países mais desenvolvidos do mundo. “Nós recebemos, não convidamos”, é a típica frase dos funcionários do protocolo diplomático do Vaticano. Tentar melhorar as relações com a Santa Sé convém muito nesse momento ao presidente dos Estados Unidos e ao Partido Republicano, que conquistaram a Casa Branca e o Congresso graças ao voto decisivo dos católicos dos EUA.

Voltar para casa após um colóquio com Francisco com uma imagem positiva, seria um pequeno avanço para Trump. Ou, pelo menos, uma pausa na via-crúcis, que Trump e seu círculo estão enfrentando em Washington, entre acusações de intrigas com os russos e tensões com a chefia do FBI. Segundo muitos analistas, a audiência no Vaticano seria até mais importante para Trump do que o G7.

A política na mesa 

Mas também há convergências, sobretudo aqueles pontos que na época de Bento 16 eram chamados no Vaticano de “valores não negociáveis”: aborto, eutanásia, uniões homossexuais. O Vaticano apreciou a nomeação de Neil Gorsuch, um juiz conservador e anti-abortista para a Corte Suprema. A decisão deu fôlego para a minoria de clérigos católicos que ainda mostram preferir Trump a uma laica como Hillary Clinton. “Talvez, Trump possa pelo menos se redimir”, brincava há poucos dias um monsenhor em Roma, recolhendo reações perplexas especialmente entre os jesuítas.

Os eclesiásticos “trumpistas”, na verdade, coincidem frequentemente com críticos inflexíveis do papa argentino. O primeiro opositor de Francisco seria o cardeal norte-americano Raymond Burke, contato no Vaticano de um dos assessores mais poderosos e controversos do presidente Trump, Steve Bannon.

Um homem de Bannon é o responsável por organizar a visita. Thomas Williams, 54 anos, ex-padre norte-americano da Congregação dos Legionários de Cristo, é o jornalista do site conservador Breitbart em Roma. Foi o fervente católico Bannon, ex-diretor executivo do Breitbart, que escolheu pessoalmente Williams como correspondente em Roma. Os dois se falam todos os dias, e Williams teria atuado de forma paralela ao Departamento de Estado dos EUA, indo além dos tradicionais canais diplomáticos oficiais e deixando muita gente irritada em Washington.

Em 2014, quando foi contratado por Bannon, Williams tinha passado por anos tumultuados. Ele defendeu o líder de sua congregação, Marcial Maciel Degollado, de acusações de pedofilia que em seguida se revelaram verdadeiras. Dois anos antes, foi descoberto que Williams tinha um caso com a filha do então embaixador dos EUA no Vaticano, Mary Ann Glendon. Os dois tiveram um filho em segredo e tinham até se casado, mesmo ele sendo uma padre católico. Anteriormente, em 2003, trabalhou como consultor teológico de Mel Gibson para o filme A Paixão de Cristo. Foi frequentando esses ambientes católicos conservadores de Hollywood que acabou conhecendo Bannon.

O trabalho de Williams em Roma também obteve resultados dentro das hierarquias vaticanas. Em um convenio intitulado “O atlante de Papa Francisco” ocorrido no último dia 20 em Roma na sede da “La Civiltà Cattolica”, a revista dos jesuítas, ordem religiosa da qual Francisco faz parte, o diretor da revista, Padre Antonio Spadaro afirmou que o Papa adota uma “diplomacia da misericórdia”, que significaria “jamais considerar alguém completamente perdido, nas relações entre indivíduos, povos e nações”, e que se traduz em “liberdade de movimento”. E “o encontro com Trump faz parte desta visão, não ideológica, mas realista e consciente da crise global”, afirmou Spadaro, salientando como o Papa recusa a “ética de Hollywood que divide o mundo entre bons e maus” e rejeita “declarar a priori quem tem razão e quem não”, mas “que exerce um “soft power” que tem raízes espirituais profundas”. Para Lucio Caracciolo, diretor da revista italiana LIMES, o papa “mostra a vontade de avançar em um mundo onde os esquemas caíram”.

Na última sexta-feira, veio a confirmação de que o novo embaixador dos EUA junto à Santa Sé será Callista Gingrich. Produtora de televisão, católica de origem suíça-polonesa, ela é a terceira esposa de Newt Gingrich, ex-presidente do Congresso dos EUA, influente membro da cúpula do partido republicano. Alguém dentro do Vaticano chegou a questionar o fato de ela ser casada com um homem divorciado. Mas os tempos mudaram, mesmo na Roma papal. E seu marido, que ela conseguiu converter ao catolicismo em 2009, é sócio de um clube de golfe de propriedade de Trump, o que garante à Santa Sé um acesso direto à Casa Branca. O papa Francisco, afinal de contas, também é um chefe de estado.

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