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Kai Lehmann, da USP: o quão longe pode ir a extrema-direita na Europa?

Para professor especialista em União Europeia, movimentos de extrema-direita mostram força nas eleições, mas não agirão de forma unida

KAI LEHMANN, DA USP: polêmica com vice-chanceler da Hungria mancha imagem de combate à corrupção da extrema-direita  / Reprodução/YouTube/TV Gazeta

KAI LEHMANN, DA USP: polêmica com vice-chanceler da Hungria mancha imagem de combate à corrupção da extrema-direita / Reprodução/YouTube/TV Gazeta

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Carolina Ingizza

Publicado em 24 de maio de 2019 às 18h01.

Última atualização em 27 de maio de 2019 às 10h40.

A União Europeia iniciou no último dia 23 e encerra no domingo, 26, suas eleições para o Parlamento europeu, que vai eleger 751 representantes, distribuídos pelos 28 países do bloco com base em sua população. Nestas eleições, um grupo de políticos nacionalistas de ultra-direita se uniu sob a liderança de Matteo Salvini, primeiro-ministro italiano, e deve levar 180 assentos no Parlamento. Do outro lado, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Emmanuel Macron, são os principais defensores dos partidos pró-Europa e de centro. Em meio a tudo isso, o Reino Unido vive seu próprio drama pessoal, com a renúncia da premiê Theresa May, do Partido Conservador, e a falha em concretizar o Brexit, saída da União Europeia.

Para o cientista político Kai Enno Lehmann, que é alemão e especialista em União Europeia no Instituto de Relações Internacionais da USP, os grupos ultra-nacionalistas vêm levando os partidos de centro para a direita, mas estão mais fragmentados do que parecem. E nem tudo são flores para a extrema-direita, que teve a imagem afetada diante do escândalo com o vice-chanceler austríaco, Heinz-Christian Strache, sendo gravado oferecendo contratos públicos em troca de propina. “Não combina com a bandeira antissistema e anticorrupção desses grupos”, diz Lehmann. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

As pesquisas mostram que grupos de extrema-direita, como o Liga Norte na Itália e a Frente Nacional na França, podem conseguir alguma representação expressiva no Parlamento Europeu. O quão significativo deve ser esse movimento?

Se de fato houver um aumento da direita populista no Parlamento Europeu, eu duvido que esse grupo vá agir de forma unida dentro do Parlamento. Sobretudo porque não são grupos europeus, são grupos nacionais, e os contextos domésticos e as demandas são diferentes para cada um. A Hungria de Viktor Orbán [primeiro-ministro húngaro, de direita] é anti-imigração, mas ao contrário da Frente Nacional na França, por exemplo, não se opõe a continuar como membro da União Europeia, porque a economia húngara depende muito das relações europeias. A tentativa é, antes das eleições, mostrar uma frente unida, mostrar presença, dizer que esses grupos têm uma agenda com apoio de parte significativa da população, mesmo que isso não se cumpra na prática.

Que influência esses partidos podem ter uma vez que estejam no Parlamento?

Certamente, isso vai impactar quem vai assumir a presidência da Comissão Europeia [o Poder Executivo] e vai ter um impacto nas negociações sobre quem vai assumir o Conselho Europeu [Poder Legislativo do bloco, ao lado do Parlamento]. De qualquer forma, a maior bancada, que vai definir o presidente da Comissão, não deve ser a extrema-direita, mas possivelmente a centro-direita, na minha opinião. Mas o que tem acontecido é que a UE tem ido em uma direção a acolher as pautas desses governos e partidos, empregando, por exemplo, tom mais duro em relação à imigração ilegal. Não está sugerindo uma outra onda de políticas de integração europeia. Vão administrar o que temos, aperfeiçoar o mercado único, controlar nossas fronteiras contra refugiados e pronto. Não há um grande projeto político para avançar a imigração europeia. É uma consequência direta do surgimento desses partidos populistas.

Na política interna dos países europeus, os movimentos de extrema-direita vêm ganhando força, pelo menos, desde 2016, embora ainda não estejam no poder nos principais países, como Alemanha e França. Esses movimentos tiveram algum impacto nos governos mesmo sem estar no poder?

A presença desses partidos no cenário nacional tem um impacto forte mesmo em governos que são de partidos “tradicionais”. Governos de centro tem ido mais para a direita na Holanda, na Finlândia, mais recentemente na Alemanha. Angela Merkel [premiê da Alemanha] não fala mais de uma política imigratória de portas abertas; no Reino Unido, o Partido Conservador está caminhando a passos largos para a extrema-direita. Nigel Farage [do Partido do Brexit], apesar de não estar no parlamento britânico, tem mais impacto no Reino Unido que outros políticos no poder ao discursar pela saída do país da União Europeia. No Leste Europeu, partidos de direita são bastante fortes, embora não se consideram de extrema direita.

Por que o vice-premiê da Itália, Matteo Salvini, está liderando o bloco da extrema-direita nas eleições europeias? Ele tem algo de diferente de outros líderes como a francesa Marine Le Pen?

Ele gosta de aparecer, de uma forma que outros não querem; ele tem um talento para isso, tem uma presença quando fala. E também porque ele é, de fato, líder do governo de um dos principais países da Europa. E a Itália é um dos fundadores da UE, é uma das principais economias europeias. É o maior país onde a extrema direita está no poder. Países como Polônia e Hungria, onde a extrema-direita também está no poder, não têm o mesmo peso. 

O escândalo envolvendo o vice-chanceler da Áustria, gravado oferecendo contratos públicos em troca de propina, vai atrapalhar os partidos de extrema-direita? 

Não é possível saber ainda. Algumas análises dizem que haverá algum impacto somente na própria Áustria e na vizinha Alemanha. Mas, certamente, a extrema-direita tem um problema, porque uma de suas bandeiras é que eles são um remédio contra o sistema corrupto que está em existência. E então temos um líder, que até dois dias fez parte de um governo de extrema-direita, se metendo em práticas plenamente ilegais e corruptas. Não combina com a bandeira antissistema e anticorrupção.

As eleições espanholas neste ano, quando o partido de centro-esquerda PSOE conseguiu barrar o crescimento do Vox, foram vistas como uma grande vitória no movimento contra a extrema-direita. Como isso foi possível?

Me parece que, na Europa, quem se dá bem nas eleições são grupos que defendem uma bandeira clara. Foi o que fez o PSOE na Espanha, que disse “não vamos jogar o jogo antigo, a gente vai defender causas progressistas, os progressistas vão votar para isso”. Se isso vai ser suficiente para outras eleições, vamos ver. O sistema espanhol é mais complexo pelos partidos regionais, mas é a mesma coisa na Alemanha, onde o Partido Verde, por exemplo, tem uma bandeira: somos um partido progressista, vamos defender causas liberais, imigração, bem-estar social, aumento de direitos trabalhistas. Isso vende. O que não vende mais é dizer que somos um pouco disso e um pouco daquilo. Para que existe o PP [partido tradicional de centro-direita que perdeu as eleições para o PSOE]? Para que existe o social-democrata na Alemanha? Ambos foram partidos que não venderam bandeiras claras. Por que eu votaria nesses partidos? O que eles defendem? Por mais que eu possa criticar a Liga Norte na Itália, o Orbán na Hungria, eu sei o que eles defendem. A extrema-direita tem sido mais eficaz na Europa como um todo ao conseguir vender aquilo que eles defendem para uma população que não se interessa muito para política.

A Alemanha é outro exemplo em que o governo da chanceler Angela Merkel, de centro-direita, conseguiu se manter no poder, apesar de a Alternativa para Alemanha (AfD) ter conseguido pela primeira vez chegar ao Parlamento em 2017. A AfD deve continuar como minoria?

O partido cristão-democrata, de Merkel, e os sociais-democratas, de centro-esquerda, vão sofrer. Mas a Alemanha é um caso interessante. Além da insatisfação que culminou com a ascensão da extrema-direita com a AfD, em paralelo, também vem havendo um contra-movimento capitaneado pelo Partido Verde, de esquerda. Nas pesquisas eleitorais para o Parlamento europeu, o Verde tem ocupado o segundo lugar, atrás dos cristão democratas. há um protesto nos dois sentidos. o protesto da esquerda tem recebido mais apoio, pelos menos nas pesquisas eleitores. O Partido Verde tem bandeiras em defesa da imigração e não somente de refugiados, mas da livre circulação de pessoas na UE, e poucos partidos defendem isso abertamente. No Reino Unido, os partidos Liberal e Verde também estão assim. Então, surge em alguns países essa defesa por parte da geração mais jovem, esse “contra-movimento”, de quem fazia parte dos partidos tradicionais de centro-esquerda, mas se veem abandonados por partidos que não defendem abertamente bandeiras progressistas.

Apesar dos problemas gerados pelo Brexit, o Reino Unido viveu os últimos anos tendo conseguido, internamente, manter seu sistema bipartidário e sem grandes surpresas no campo da extrema-direita. Por quê?

Sobretudo pelo sistema eleitoral. Em eleições para o Parlamento britânico, cada cadeira cobre uma área geográfica do país. É uma vantagem para partidos que têm eleitores concentrados, conservador no sul, trabalhista no norte e em Londres. Por exemplo, o Partido do Brexit, de Nigel Farage e que é mais à direita, tem cerca de 20% do eleitorado do país, mas não conseguem ganhar nenhuma área nas eleições internas. Nas europeias, como há representação proporcional, eles têm mais chances.

Por outro lado, o Partido do Brexit, de Nigel Farage, desponta como opção de extrema-direita ao então “estável” sistema britânico. O quanto esses posicionamentos mais extremos têm força no governo?

Os movimentos mais à direita vêm tendo alguma força há anos. Para começar, o Reino Unido não teria realizado o plebiscito para sair se não tivesse tido o Partido UKIP, partido nacionalista de direita que ganhou as eleições europeias em 2014. Isso fez com que o então premiê, David Cameron, prometesse que faria um plebiscito para decidir a permanência ou não do do Reino Unido na UE. Isso foi feito porque Cameron tinha medo de perder eleitores para esses partidos mais extremistas. Em segundo lugar, existe uma parcela significativa do Partido Conservador [de Cameron e da atual premiê Theresa May] que quer sair da UE. Para se manter no poder, manter a liderança de hoje, o líder do partido tem que prometer realizar o Brexit. Hoje, poucos deputados têm coragem de falar abertamente contra a saída do Reino Unido na UE. Isso leva a uma ameaça de desfiliação, o Partido não vai colocar essa pessoa como candidato nas próximas eleições. O Partido Conservador tem ido fortemente para a direita para atender essa demanda dos brexiters.

A aproximação de Le Pen e Salvini com Putin atrapalha a união continental da direita?

A Rússia tem um potencial econômico, e eu tenho a sensação — mas essa é uma visão pessoal — que líderes populistas como Le Pen e Salvini tem algum tipo de admiração por Putin como pessoa e pelo sistema que ele construiu. Ele consegue se manter no poder e molda o país à imagem dele, e talvez alguns líderes gostariam de replicar esse modelo.

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