"Nenhum país da estatura do Brasil tem reputação tão ruim", diz Ricupero
"O ministro publicou um artigo no qual dizia que o real inimigo era o 'comunavírus", diz embaixador. "É uma das teorias mais alucinatórias que já ouvi"
Murilo Bomfim
Publicado em 29 de abril de 2020 às 12h23.
Última atualização em 10 de junho de 2020 às 17h38.
O coronavírus não reconhece fronteiras, e seu impacto deve trazer mudanças na agenda global por um bom tempo. A decisão da Argentina de se retirar das negociações do Mercosul, anunciada no final de semana, teria sido só o começo.
"Enquanto durar a pandemia, nao é realista afirmar que se possa dar continuidade a negociações comerciais, tomar iniciativas novas em termos de relações internacionais", diz o embaixador Rubens Ricupero, queparticipou do exame.talks , nesta quarta-feira, 29. "A prioridade, agora, é reativar a economia e reempregar a massa desempregada."
Para ele, duas características da pandemia tornam óbvia a suspensão temporária de negociações internacionais: a universalidade e a falta de sincronia da crise, já que diversos países enfrentam diferentes fases da onda de infecções pelo novo coronavírus.
Em conversa com o jornalista João Pedro Caleiro, Ricupero relembrou o comportamento da economia global após a Segunda Guerra Mundial. "Ao fim da guerra, ninguém voltou à agenda dos anos 1930. O grande problema de então era o desemprego, o que acabou desaparecendo, pois, com o aquecimento da economia, todos passaram a trabalhar o se envolver com a guerra", disse. "É preciso ter em mente que, de uma hora para a outra, os problemas mudam de natureza."
Apesar das semelhanças, Ricupero ponderou que existem diferenças importantes entre as situações de pandemia e de guerra. Para ele, o conflito bélico destrói as infraestruturas de transporte e produção, além de ter o poder de alterar sistemas políticos — a exemplo do desaparecimento do impérios como o austro-húngaro e o otomano. "O que se nota hoje é o fenômeno oposto: a imensa maioria dos países, com a exceção do Brasil e alguns outros, viram o aumento da popularidade de seus governantes", apontou o embaixador. "Mesmo o primeiro-ministro da Itália, que teve uma reação equivocada no início, mas, com a sabedoria de reconhecer o erro, passou a ter bom desempenho."
Má reputação brasileira
Ricupero classificou como deprimente o fato de que o Brasil está entre os países que tiveram uma das piores reações possíveis à pandemia. "Nenhum país da estatura do Brasil está com reputação tão ruim", lamentou. Isso inclui o ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e o presidente Jair Bolsonaro mostrando descaso em relação às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
"O ministro publicou um artigo no qual dizia que o real inimigo era o 'comunavírus', e que o comunismo utiliza da pandemia em sua obra de destruição", disse Ricupero. "É uma das teorias mais alucinatórias que já ouvi. Creio que nenhuma pessoa de mínima responsabiliade no mundo diria isso."
O comportamento do Brasil perante a crise pode trazer consequência graves na visão do embaixador. Ele acredita que ninguém faria esforços para atender um país que adotou postura tão irracional e agressiva em relação à OMS. "Não acho que sejamos discriminados, mas quando a primeira vacina for desenvolvida, ninguém vai pensar no Brasil como um dos países a receber as primeiras doses. Ficaremos no fim da fila, a não ser que a catástrofe humanitária atinja uma proporção tão grande a ponto de outros países serem tomados pela compaixão."
Relações com a China
Ricupero destacou o fato de que as relações do Brasil com a China vêm sofrendo desgaste desde antes da campanha que levou Bolsonaro à Presidência, e que não há perspectiva de melhora no futuro. "Quando o atual presidente ainda era aspirante a candidato, teve a má ideia de visitar Taiwan com três de seus filhos. Nada ofende tanto a China quanto a visita de uma personalidade pública a uma região que ela considera parte de seu próprio país."
Segundo ele, o estremecimento na relação não tem grandes impactos no presente, visto que o mercado brasileiro é interessante para o país asiático pelas vendas e por ser uma importante fonte de soja. "Se amanhã houver um dilema em que a China tenha que escolher entre o Brasil ou os EUA, com quem têm acordo, os chineses não vão hesitar nem um segundo", analisou.
Veja a conversa completa:
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30 de abril, quinta-feira, 12h
Diego Barreto, VP de Estratégia do iFood
Tecnologia e delivery em tempos de isolamento
com Gabriela Ruic e João Pedro Caleiro, jornalistas da EXAME
30 de abril, quinta-feira, 14h
Lygia Pereira, pesquisadora, e Jorge Kalil, médico e diretor do Laboratório de Imunologia do Incor
com Lucas Agrela, jornalista da EXAME