A garota de 16 anos que virou símbolo da resistência palestina
Conhecida por vídeos em que aparece confrontando soldados israelenses, a adolescente palestina Ahed Tamimi está presa desde dezembro
Carolina Riveira
Publicado em 5 de janeiro de 2018 às 12h32.
Última atualização em 5 de janeiro de 2018 às 20h46.
Era por volta de três da madrugada de 19 de dezembro quando soldados israelenses invadiram a casa dos Tamimi, uma família palestina que vive na pequena Nabi Saleh, uma vila de 500 pessoas na Cisjordânia.
O objetivo era prender um dos quatro filhos dos Tamimi, a jovem Ahed, de 16 anos, que naquela semana havia confrontado, aos chutes e gritos, dois soldados israelenses, em um cena que rapidamente viralizou na internet.
Ahed está presa desde então, e nesta segunda-feira, foi indiciada com 12 acusações, que incluem atacar soldados e atrapalhar suas obrigações, além de ser acusada de ter atirado pedras em ocasiões passadas.
Responsável por postar o vídeo na internet, sua mãe, Nariman, também está presa, assim como uma prima.
Esse não foi o primeiro confronto entre a adolescente e as forças de Israel. Ahed é uma espécie de celebridade no mundo árabe desde 2012, quando suas imagens confrontando soldados israelenses começaram a se popularizar.
Todas as sextas, Ahed, a família e os vizinhos fazem protestos contra a ocupação israelense na Cisjordânia, que, ao lado da Faixa de Gaza, compõe os territórios palestinos.
Embora a região tenha um governo autônomo reconhecido pelas Nações Unidas, Israel ocupa parte do território palestino por meio de assentamentos e forças militares, com maior ou menor intensidade de tempos em tempos.
A polêmica em torno da prisão de Ahed é só mais um capítulo das tensões milenares entre israelenses e palestinos, que se acentuaram no fim do ano passado, quando o presidente americano, Donald Trump, decidiu reconhecer Jerusalém como capital israelense e mudar para lá a embaixada americana.
A cidade é sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, e palestinos também a reclamam como sua capital, motivo pelo qual a capital israelense diplomaticamente aceita não é Jerusalém, mas Tel Aviv.
Os assentamentos israelenses, uma das principais pautas dos protestos na vila de Ahed, também são condenados pela ONU.
Foi nesse contexto que Ahed cresceu. A família Tamimi é conhecida ativista na vila de Nabi Saleh: tanto o pai, Bassem, como a mãe, Nariman, já foram presos diversas vezes.
Bassem é descrito como ativista de direitos humanos pela União Europeia e como prisioneiro de consciência pela Anistia Internacional.
Ahed foi pelo mesmo caminho, e aos 11 anos, foi fotografada tentando impedir a prisão da mãe; mais tarde, viralizou na internet novamente por confrontar soldados que queriam prender seu irmão mais novo.
As imagens lhe renderam uma menção honrosa do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e um prêmio do presidente turco Tayyip Erdogan.
Ela também já foi chamada para palestras e chegou, inclusive, a ter um visto para os Estados Unidos negado em 2016, quando foi convidada a discursar em um evento no país.
Com seu longo cabelo loiro, olhos azuis e expressão confiante, Ahed dá entrevistas em programas árabes e chama atenção não só por ser uma jovem enfrentando militares armados, mas também por fugir dos estereótipos esperados dos palestinos.
“Eles estão chocados porque ela é loira e isso acabou com toda a propaganda que mostra os palestinos como terroristas”, afirmou o pai da garota ao canal de TV Euronews, que reitera que a filha faz protestos pacíficos. “Não tinha nada na mão dela”, diz.
“Muito do que o mundo sabe sobre ela chega por meio das redes sociais e da mídia eletrônica”, escreveu o médico e articulista palestino Hatim Kanaaneh, autor do blog e livro “Um doutor na Galileia” e que trabalhou como voluntário na região por 35 anos. “Essa é a exata imagem de solenidade e do apelo da sociedade civil palestina: moderna e corajosa.”
A participação de jovens como Ahed nos protestos é comum. No dia do confronto que rendeu sua prisão, um primo de 14 anos da menina foi baleado no rosto e entrou em coma induzido no hospital.
Outra prima, Nabi Saleh, de 11 anos, se intitula como “a jornalista mais jovem do mundo” e grava vídeos na internet falando sobre o cotidiano de ocupação na Palestina.
Segundo a ONG Defense for Children International, entre 500 e 700 jovens com menos de 18 anos são encarcerados pelo sistema prisional israelense todos os anos nas áreas ocupadas.
A ONG calcula que soldados israelenses mataram 32 crianças palestinas na Cisjordânia em 2016.
Em entrevista à rede de televisão árabe Al Jazeera, o representante palestino da organização, Ayed Abu Eqtaish, diz que as crianças e adolescentes na prisão vêm sendo usadas como “ferramentas” por Israel.
“Os israelenses estão tomando crianças palestinas como alvo e as expondo muito cedo a diferentes tipos de tortura”, diz.
O governo israelense afirma que quem usa as crianças como ferramentas são seus próprios pais. Uma conhecida frase, atribuída à ex-premiê Golda Meir (1898-1978), uma das fundadoras do Estado de Israel, afirma que “a paz virá quando os árabes amarem suas crianças mais do que nos odeiam”.
Postagens na internet também lembram que membros da família de Ahed já foram acusados de terrorismo; o principal caso é contra uma de suas tias, Ahlam Tamimi, que orquestrou em 2001 um atentado contra uma pizzaria, matando 15 pessoas em Jerusalém.
Apesar dos embates frequentes, é a primeira vez que Ahed é efetivamente presa. Seu pai afirmou estar preocupado, mas diz se orgulhar da filha.
“Nós encorajamos nossa filha e nossos filhos a participar da resistência”, diz. “Se a Ahed se tornar um ícone isso me deixará feliz porque queremos que todos, que esta geração, segure a bandeira e seja forte o bastante para lutar por seus direitos, por liberdade, justiça e paz até que libertem a Palestina da ocupação.”
A antropóloga e socióloga Heloisa Pait, especializada em Oriente Médio e questões de gênero na Unesp de Marília, aponta que a situação não deve ser romantizada, pois o contexto político da região exige cuidado.
“No caso dela, enxergo um pouco como uma espécie de mártir. É uma família inteira que tem ativismo e até casos de terrorismo. Ela está fazendo o que se espera dela. Mas se quisesse fazer um protesto desses contra a Autoridade Palestina, ela conseguiria?”, questiona a professora.
Em blogs pró-Israel, Ahed ganhou o apelido de “Shirley Temper”, por estar sempre brigando nos vídeos em que aparece. O termo “Pallywood”, um trocadilho entre Palestina e Hollywood, também é frequentemente usado para fazer referência ao que os defensores do governo israelense chamam de manipulação da opinião pública pelos palestinos.
O governo de Singapura barrou a exibição do documentário “Radiance of Resistance” (brilho da resistência, em inglês), que conta o conflito palestino sob o olhar de Ahed e de outra jovem ativista, e que seria exibido nesta quinta-feira no Festival de Cinema Palestino de Singapura.
Em nota em seu site, a Autoridade de Desenvolvimento de Mídia de Informações e Comunicações do país diz que “a narrativa enviesada do filme é inflamatória e tem o potencial de causar desarmonia entre as diferentes raças e religiões em Singapura”.
Por ora, a jovem e os parentes aguardam julgamento, enquanto circula na internet a hashtag #FreeAhed. Um adulto acusado de insultar um soldado israelense pode pegar até 10 anos de prisão, mas não está claro como o caso da adolescente será julgado.
Ahed não foi a primeira e nem será a última jovem palestina envolvida no conflito. E graças a uma ajudinha de Trump, 2018 será um ano especialmente quente para a região.