A força-tarefa que luta para salvar o jornalismo local no Reino Unido
Em raro esforço para restabelecer a cobertura de governos locais, jornais britânicos agora podem receber uma parcela da taxa que mantém a rede BBC
Gabriela Ruic
Publicado em 1 de janeiro de 2019 às 06h00.
Última atualização em 1 de janeiro de 2019 às 06h00.
Londres – Quando Lucy Ashton pediu demissão do "The Sheffield Star" em 2009 para ter filhos e trabalhar como relações públicas, ela já tinha visto repórter após repórter deixar o jornal à medida que a circulação e os anúncios diminuíam. Ela pensou que jamais veria novas vagas sendo criadas novamente.
Agora ela está de volta, como parte de uma iniciativa cujo objetivo é simples: ajudar novas organizações a cobrir governos locais. Uma das primeiras histórias que escreveu após retornar mostrou o valor da iniciativa. Em uma reunião do Conselho Municipal de Sheffield, integrantes mulheres discutiam como tinham sido alvo de assédio on-line. Alguns dos casos ultrapassaram o âmbito virtual – uma das vítimas descreveu como sua casa tinha sido invadida pelo assediador. "Isso não estava programado. Se não tivesse uma repórter na reunião, não teríamos conseguido", relatou Ashton.
Em um raro esforço para restabelecer a cobertura de governos locais, jornais britânicos novos e de pequeno alcance podem receber uma parcela da taxa de licença da BBC, cobrança anual paga por todos aqueles que possuem um aparelho de televisão e que mantém a BBC, já que o orçamento das redações encolheu. O valor, oito milhões de libras esterlinas (cerca de 39 milhões de reais), é usado por jornais e sites de notícias locais para pagar o salário de repórteres extras, como Ashton.
Qualquer publicação na Grã-Bretanha pode se inscrever para as vagas de repórter e, até agora, 90 por cento das 144 vagas foram preenchidas. Os repórteres, que devem ser jornalistas experientes, recebem treinamento da BBC e, no mínimo, 22.000 libras esterlinas (quase 108 mil reais) de salário cada um, montante equivalente ao que se paga a outras funções de repórter nas agências de notícias regionais britânicas. Os repórteres são contratados pelos jornais por um período inicial de aproximadamente dois anos.
Matt Hancock, membro do Parlamento e ex-ministro da agência de governo responsável por mídia e cultura, diz esperar que o programa restabeleça algum vigor na maneira como é feita a cobertura de administrações locais. Segundo ele, cada vez menos jornalistas estavam contestando declarações de políticos; além disso, repórteres que costumavam acompanhar os passos das autoridades públicas estavam agora em sua maioria trabalhando para eles como relações públicas. "Você passa a se perguntar se aquela é realmente a maneira de ter uma democracia viva", questionou Hancock.
O Local News Partnership (Parceria de Notícias Locais) teve início este ano e é um exemplo de como o modelo de negócios para cobrir notícias locais está crescendo de uma maneira que seria inimaginável há pouco tempo, inclusive por meio de financiamento de grupos sem fins lucrativos e de rendimento de fontes governamentais. Os gigantes da tecnologia também estão colocando dinheiro: o Google anunciou este ano que gastaria 300 milhões de dólares (mais de um bilhão de reais) para apoiar o jornalismo confiável e independente; o Facebook deu seis milhões de dólares (cerca de 23 milhões de reais) para um projeto de notícias comunitárias no Reino Unido .
A parceria com a BBC já resultou em algumas boas histórias, entre elas:
– Uma operação organizada pela polícia de Yorkshire para revelar casos de abusos infantis descobriu que hotéis locais não faziam qualquer tipo de pergunta a homens que se registravam no hotel acompanhados de mulheres menores de idade.
– Uma administração local em Merseyside teve de esclarecer um projeto de recapeamento de ruas que pavimentou o chão ao redor de um carro estacionado em vez de tentar removê-lo.
– Residentes de Cotswolds (região predominantemente rural da Inglaterra classificada como área de excepcional beleza natural) descobriram que um vizinho, Jake Dyson, herdeiro da empresa de aspiradores de pó Dyson, tinha recebido autorização para construir um heliponto em sua casa, uma construção do século 16.
Histórias como essas estão ajudando os leitores a se lembrar de lugares nem sempre com espaço na mídia, defendeu Jeremy Clifford, editor-chefe do Johnston Press, uma rede de jornais que inclui o "The Sheffield Star". "É um investimento muito importante na nossa força vital, no nosso estilo de vida", complementou.
Em contrapartida ao financiamento, os jornais não podem usar as novas vagas como pretexto para cortar a equipe das redações e devem atribuir a esses repórteres a cobertura de notícias envolvendo governos locais. A BBC e dezenas de organizações midiáticas estão autorizadas a republicar esses artigos, criando um tipo de agência de notícias locais. Para a BBC, o acordo é também uma maneira de contra-argumentar as críticas vindas do Parlamento, que defende que a iniciativa pode acabar com empresas comerciais. Alguns sugeriram abolir a taxa de licença da TV.
Não há benchmarking específico para determinar se o projeto tem sido um sucesso ou não, mas organizadores da BBC e da News Media Association (Associação Nacional de Jornais) disseram que iriam mensurar como as histórias estavam sendo compartilhadas, com que frequência eram selecionadas por outros canais de notícias e se o número de presentes nas reuniões era afetado pela participação de um repórter.
Políticos locais começaram a se "acostumar" com a ideia de ter repórteres em suas reuniões novamente, contou Daniel Ionescu, editor do "The Lincolnite", site de notícias a serviço de Lincolnshire, que contratou dois repórteres por meio da parceria. Segundo um deles, Calvin Robinson, algumas autoridades se mostram surpresas ao ver jornalistas nas reuniões. Já outras fazem um show, contou Daniel Jaines, o outro repórter contratado pela Parceria de Notícias Locais. "Se aparece um, tem mais gritaria", revelou.
Mesmo assim, a pressão financeira sobre publicações locais continua a crescer no Reino Unido, onde 136 jornais encerraram as atividades entre 2012 e o começo de 2018. Em novembro, o Johnston Press, cuja rede de jornais inclui o "The Scotsman", de Edinburgo, pediu acordo judicial, uma forma de declarar falência. Com uma dívida de 220 milhões de libras (mais de um bilhão de reais), a empresa anunciou que os credores iriam adquirir o controle acionário da organização para amortizar a dívida.
Na opinião de Roy Greenslade, ex-editor e professor visitante honorário de jornalismo na City, Universidade de Londres, a parceria com a BBC nada mais é do que tapar o sol com a peneira: "Essas empresas vão fechar gradualmente porque o modelo de negócio que seguem está arruinado, completamente arruinado."
Ionescu disse que viu o movimento do seu site cair por causa do Facebook e do aumento dos investimentos em propaganda em plataformas como Google e Facebook, em vez de em publicações on-line locais. Ele não sabe se existe muito mais a ser feito para evitar o poder crescente dos gigantes da tecnologia.
"Não sei mais o que eles poderiam fazer para preencher o vazio deixado pela falta de anunciante ou de receita. As grandes organizações midiáticas criam tudo, eles só ficam com os restos."