Open Banking: "Brasileiro poderá montar o banco que quiser", diz BC
Para João André Pereira, chefe de regulação do Banco Central, estrutura em desenvolvimento trará competição e produtos mais "customizáveis"
Bianca Alvarenga
Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 15h55.
Última atualização em 17 de dezembro de 2020 às 16h31.
A pandemia do coronavírus acelerou uma série de mudanças nos hábitos de consumo dos brasileiros. A onda da digitalização ganhou mais força quando as pessoas restringiram as ocasiões de contato presencial. Com mais gente cumprindo a quarentena, o consumo online registrou em meses o crescimento esperado para os próximos cinco anos. As mudanças obviamente chegaram também aos pagamentos e transferências financeiras. Essa, porém, era uma agenda que já estava em avanço antes mesmo de a covid-19 chegar ao Brasil.
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Em 2020 o Banco Central criou o Pix, ferramenta que permite pagamentos e transferências instantâneas 24 horas por dia e 7 dias por semana. Além disso, o regulador do mercado financeiro deu andamento à implementação do Open Banking no Brasil, sistema que promete ser ainda mais revolucionário que o Pix. O Open Banking permitirá a transferência de informações entre instituições financeiras, de modo que todas as transações aconteçam em um sistema unificado.
Em entrevista à EXAME Invest, João André Pereira, chefe do departamento de regulação do Banco Central, falou sobre as mudanças práticas que os brasileiros devem perceber já no ano que vem.
Leia abaixo a entrevista:
O que os brasileiros podem esperar de mudanças no setor bancário em 2021?
O Banco Central tem dois projetos prioritários muito transformadores: o Pix, que já está valendo, e o Open Banking, que está em desenvolvimento. A diferença é que o Pix é um produto. O cliente do banco aperta um botão e faz um Pix. Já o Open Banking é um fundamento, e por isso tem um poder de transformação maior.
Nós costumamos fazer um paralelo com a internet. Quando ela foi criada, na década de 90, ninguém sabia bem o que era. As mudanças vieram depois, com os aplicativos, ferramentas e tudo que foi construído em cima da rede de conexão. O mesmo vale para o Open Banking. Com base na estrutura que está sendo regulamentada, o mercado vai começar a montar diversos "bloquinhos". Isso só será possível porque teremos grandes bancos, fintechs, instituições de pagamentos e várias outras empresas do sistema financeiro dentro de um mesmo ambiente padronizado. As pessoas vão começar a perceber o surgimento de novos aplicativos, e até os próprios serviços dos bancos tradicionais vão mudar. Teremos experiências diferentes.
Como assim?
O brasileiro vai poder montar o banco que quiser, só escolhendo os serviços que ofereçam o melhor custo e comodidade. Hoje, as pessoas pegam crédito pessoal na instituição A, cartão de crédito na instituição B, o financiamento imobiliário na instituição C, e precisam abrir uma conta diferente e manter um relacionamento com cada uma dessas instituições. No futuro, tudo estará em um grande aplicativo composto por vários "bloquinhos" (os produtos e serviços) que poderão ser montados de formas diferentes.
Cada vez que esse consumidor entender que uma empresa tem algo interessante para oferecer, ele vai poder, em poucos cliques, permitir o compartilhamento dos próprios dados forma segura, e assim integrar aquele produto ou serviço aos seus próprios "bloquinhos". Com isso ele vai poder montar o próprio banco, como eu mencionei.
Esperamos que no futuro tenhamos soluções ainda mais sofisticadas. Por exemplo: um aplicativo capaz de comparar meu comportamento de compra com o trajeto que faço todos os dias. A inteligência artificial desse aplicativo vai me dizer se eu poderia gastar melhor indo ao supermercado em um dia diferente, ou até indo a uma feirinha a duas quadras da minha casa. Assim, ele me ajudará a economizar para comprar minha passagem para as férias do final do ano. Já existem aplicativos assim sendo desenvolvidos no mundo todo, e o Open Banking vai permitir que isso aconteça no Brasil.
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E como vai ser esse compartilhamento de informações?
Hoje, você só tem acesso a um serviço se o agente ofertante conhece seu perfil. Muitas vezes o banco, por exemplo, não oferece crédito ao cliente porque não tem acesso ao histórico financeiro dele. Faltam informações para entender o risco, saber se o cliente é bom ou mau pagador e até para entender o propósito daquele crédito. E aí pode levar um ou dois anos para estabelecer um relacionamento com o banco que cumpre aquela necessidade.
Estamos em um mundo em que não faz mais sentido esperar esse tempo todo. O objetivo do Open Banking é cortar o caminho. Em um clique, todo o histórico financeiro daquele indivíduo vai poder ser compartilhado com qualquer instituição. Na prática, isso significa que a informação vai virar commodity. As instituições vão ganhar os clientes com base na experiência e no custo de seus produtos e serviços.
Haverá mais competição entre as instituições?
Certamente veremos concorrência se ampliando. Nossa expectativa é que as instituições briguem para oferecer a melhor experiência e entregar o melhor produto, em uma lógica que vai gerar também um preço melhor. Isso significa que o banco grande vai perder? Não necessariamente. Os maiores bancos já têm uma base sólida de clientes, capital e tecnologia. O passo agora é entender quais serviços agregar dentro da estrutura que já está formada, para ir além dos produtos básicos.
Por outro lado, as instituições menores vão ter condições de competir em pé de igualdade. Elas podem não oferecer uma experiência completa, como os grandes bancos fazem, mas elas têm conhecimentos específicos que geram grande valor ao cliente. A questão chave será a complementariedade.
Como garantir que as operações sejam seguras?
Estamos falando de dinheiro das pessoas, então a segurança é fundamental. O sistema tem que ser blindado, e é por isso ele é regulado pelo Banco Central. Nessa transformação, a nossa preocupação é preservar a segurança, então trouxemos um escopo de participantes de instituições reguladas para montar uma estrutura complexa e para criar padrões de proteção. Ao mesmo tempo, o BC tem que ter controle e entender o fluxo financeiro e de informações que serão passadas de uma instituição para a outra. É importante dizer que todas as mudanças acontecerão com a participação das mais de 2.000 instituições reguladas pelo BC.
O BC decidiu adiar a primeira fase do Open Banking de novembro de 2020 para fevereiro de 2021. Quais os impactos disso?
Na verdade, foi um adiamento marginal nas duas primeiras fases. O adiamento ocorreu para dar ao mercado mais tempo para desenvolver a estrutura que dará base para o Open Banking. A complexidade de desenvolver esse sistema é gigantesca, e precisa de muita cooperação.
Essa cooperação tem acontecido?
Para ser sincero, eu pensei que seria uma grande guerra quando reuníssemos instituições de diferentes tamanhos e segmentos para construir o Open Banking, mas eu percebi que o entendimento nos principais aspectos é muito alinhado. Os grandes bancos sempre tiveram restrição a essa abertura, mas acabaram aprendendo com a experiência internacional e entenderam que a mudança é inevitável. Eles estão, agora, tentando descobrir como fazer do limão uma limonada.
Poderia falar mais sobre o calendário de instituição do Open Banking?
A primeira fase, que chega em fevereiro, é só o pontapé inicial. Ela consiste basicamente em compartilhamento de informações -- eu costumo dizer que vamos criar uma espécie de "Buscapé do mercado financeiro". Todas as instituições financeiras que entrarem nessa primeira fase, e estimamos que 80% do mercado já vai embarcar de cara, precisarão informar detalhadamente os custos de todos os produtos e serviços que oferecem.
Hoje os bancos informam, por exemplo, a taxa de juro média de cada linha de crédito, mas as médias nem sempre dão uma informação tão boa. Veremos a distribuição das tarifas dentro das instituições -- ou seja, qual o custo de determinado produto ou serviço para diferentes perfis de clientes. São informações ricas, que já dão uma pista sobre onde encontrar produtos mais baratos e mais adequados ao seu perfil. E essas informações serão padronizadas e deverão ser atualizadas continuamente.
Na segunda fase, que começa em julho, vamos permitir que informações do comportamento financeiro, como os extratos de contas correntes, sejam compartilhados. O cliente poderá permitir que seu histórico financeiro na instituição A seja compartilhado com outras empresas. Ao mesmo tempo, essa instituição A, que já tem relacionamento com o ele, vai perceber o que está acontecendo e vai tentar reter o cliente -- isso é o que esperamos que aconteça.
Na fase três, prevista para agosto, o Pix vai dar as mãos ao Open Banking. Uma pequena fintech vai poder, por exemplo, movimentar sua conta corrente de um grande banco por meio de uma transferência ou pagamento feito pelo Pix. Criamos os chamados iniciadores de pagamentos, que são responsáveis por fazer a conexão entre essas duas pontas, e vamos poder acionar e montar transações por diferentes origens. Tudo isso vai alavancar ainda mais o uso do Pix.
Na quarta e última fase, prevista para o final de 2021, o Open Banking vai se abrir para produtos de outros segmentos, como investimentos. É nessa fase em que o Open Banking se transformará em Open Finance. O cliente vai poder, por exemplo, usar o saldo de um investimento que ele tem em uma corretora como garantia de operação de crédito em um banco. Imagina o poder de fazer essas trocas sem mudar a custódia das aplicações. Se a informação é padronizada e está no mesmo ambiente, é possível casar múltiplas coisas.