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Uma herança chamada África: IFC20 chega na África Central

"A África, para muitos, é mais um local a ser explorado, um lugar para mais um trabalho a ser desenvolvido; para os negros, não", escreve Celso Athayde

Celso Athayde, fundador da CUFA (centro): "Ter consciência racial ainda é um desafio entre os pretos no Brasil" (CUFA/Divulgação)
Celso Athayde

CEO da Favela Holding

Publicado em 20 de maio de 2024 às 11h14.

Estou muito feliz e quero dividir com vocês esse texto viagem. Apertem os cintos e vem comigo. Vou contar um pouco sobre essa nossa passagem, minha e do meu filhote, Marcus Vinícius.

Bangui é a capital da República Centro-Africana, que vou chamar de África Central. Me contaram em todos os lugares que os contrastes são históricos e profundos, sejam culturais ou econômicos. Imagino que não seja muito diferente de outros locais da região. A diferença é quando você vem ver!

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A cidade fica às margens do Rio Ubangi. Aliás, a CUFA fez uma campanha para ajudar na última enchente, há um mês, que foi devastadora. A CUFA aqui fez um trabalho bem intenso, similar ao que está acontecendo hoje no Rio Grande do Sul, guardadas as devidas proporções. Inclusive, tenho acompanhado o trabalho incrível no Brasil liderado pelo Júnior, nosso líder gaúcho, apoiado por todas as lideranças do país.

Bangui é a maior cidade do país. No entanto, vi o quanto é difícil viver aqui, pois se a capital tem problemas tão significativos de infraestrutura e serviços básicos, imagina o interior. O mais triste é ter que conviver com a falta de água potável. Não há como viver assim! Claro que muitos países têm esse problema, mas neste momento estou falando apenas daqui.

O saneamento inadequado e a escassez de eletricidade são questões desanimadoras e diárias que afrontam os tratados universais. E, como se não bastasse, o país está em guerra civil e sob intervenção das Nações Unidas. Tipo aquelas missões no Haiti. Você pode ver nas ruas os carros de algumas nações policiando a cidade. Os da Rússia eu vi com mais frequência. Teve um momento que vi meu filho calado, refletindo.

— O que foi? — perguntei.

— Nada. Apenas pensando que hoje eu poderia estar aqui.

É que ele ingressou para oficial do exército e desistiu exatamente porque queria ser dono do seu próprio destino e ali ele seria obrigado a ir para onde o mandassem.

A pobreza extrema é intensificada na minha mente, ainda mais por estar vindo diretamente de Paris, uma cidade rica e imponente que passou sua vida invadindo países como esses, matando e dominando pessoas como essas, explorando e predando território como esse para construir seu conforto, promovendo um histórico e sangrento rastro de destruição cujas marcas de subdesenvolvimento são essas que menciono levemente aqui.

Isso explica as línguas faladas pelos pretos em todo o mundo. Sim, não falamos necessariamente nossas línguas, reproduzimos as línguas dos nossos predadores, como Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda, só para citar alguns. Mas esse é um papo mais sério e fica para outra ocasião. Hoje vamos tratar das nossas emoções por estarmos invadindo a terra dos meus avós e da minha mãe. A mãe de todos nós. A mãe África!

Vamos a ela! A África, para muitos, é mais um local a ser explorado, um lugar para mais um trabalho a ser desenvolvido; para os negros, não. Sejam eles de movimentos negros de qualquer parte do mundo ou sejam eles pretos sem muita consciência de sua realidade étnica, não importa. É como a cidade sagrada, Jerusalém, para os devotos de Cristo. Talvez o exemplo não seja bom, mas vou deixar assim mesmo porque é o que me veio à mente.

Cheguei no aeroporto sempre na expectativa de como serão as coisas. Não poderia ser melhor. O bonde da CUFA estava lá do lado de fora nos esperando, cantando, sorrindo, e fomos recebidos com flores e muito carinho. Pronto, o mundo podia acabar ali; para mim já estava bem. Mas não, pegamos os carros e partimos para os nossos aposentos, não sem passar e parar para cumprimentar as pessoas que eles queriam que nós conhecêssemos. Eu sentia uma energia tamanha, um amor profundo. Amor por aquela massa igual a mim, pessoas tão iguais a mim em grande número não é comum.

Entrar em um avião com 100% de negros, os pilotos, dono da companhia, é natural que seja assim, mas explicar isso aos meus olhos, que não estão habituados, vai demorar um tempo. Começa ali, para mim e para meu filho, uma experiência profundamente comovente e transformadora. Ele prestava atenção em tudo, buscava aprovação com os olhos em algumas ações que julgava arriscadas ou inconvenientes e não recebia nenhum sinal de volta, pois eu também não tinha certeza de nada. Era o êxtase, era o momento de ligar o "foda-se" e deixar a negada nos levar.

Tudo era tenso por conta dos soldados nas ruas e do histórico de guerras, mas a essa altura a guerra também já era nossa; podia vir quem quisesse que ia ter porrada. Exageros à parte, nas caminhadas pelas ruas eu via minha mãe em cada rosto, em cada olhar. Aquelas mulheres de balde na cabeça indo buscar água ou vendendo algo não eram diferentes da minha vó Maria, cega das duas vistas, que me contou muitas histórias sobre os horrores da escravidão que seus avós relataram. Aqui não há mais a escravidão clássica, a que conhecemos formalmente. Mas suas marcas estarão aqui para sempre.

Minha mãe ia amar estar aqui, embora ela nunca tenha falado sobre o que estou vivendo, talvez porque éramos tão pobres que nem dava tempo de pensar em algo que não fosse o pão daquele mesmo dia. Ter consciência racial ainda é um desafio entre os pretos no Brasil, mas ninguém vai conseguir não se emocionar tanto com tanta luz, tanto compartilhamento de dor, tristeza, orgulho e honra por ter voltado, ainda que por alguns dias.

Em alguns momentos eu me envergonhava, pois me sentia como o preto que tinha fugido da guerra, abandonado os familiares para viver na América, no ar condicionado e chuveiro quente, mas depois a ficha caía e eu lembrava que ninguém fugiu, fomos todos levados, ou quase todos.

— Pai, pai. Estão chamando ali!

— Tô indo. — Era meu filho, me chamando e me acordando dos meus devaneios.

Partimos para sermos apresentados a um grupo de jovens de capoeira, uma das atividades da CUFA no país. Eram uns 200, mais ou menos, todos retintos, como todos ali. Todos felizes por me terem ao lado deles. Afinal, como fundador da CUFA, os nossos membros devem falar muito de mim para eles, devem inclusive dar mais mérito do que mereço como forma de valorizar seus próprios passes.

Celso Athayde (à dir.) em visita à República Centro-Africana para Conferência Internacional das Favelas

As mães ali na roda cantavam:

— Paranáuê, paranauê paraná.

Eles cantavam em português. Era incrível o trabalho que o mestre Pelezinho de Minas havia começado e deixado o legado para o Vick seguir com a bandeira da CUFA. Eu passei a entender a importância da capoeira como valorização e divulgação da cultura brasileira.

As mães não paravam e se orgulhavam quando as músicas falavam da Bahia e do Brasil. Era a maior conexão da minha vida. Era real, no meio do mato, no centro de uma grande favela com suor, poeira e amor. A cada palma minha mãe se manifestava em mim, meu irmão, meu pai. Todos os que já foram, eu senti como se eles estivessem ali, incorporados naquelas pessoas. Claro que era minha loucura se manifestando, mas por via das dúvidas eu passei a abraçar todos que me olhavam.

Essa experiência criou um laço imediato e inquebrável com as pessoas ao meu redor, preenchendo meu coração com o maior de todos os sentimentos. Em alguns momentos eu me perguntei se fazia sentido voltar para o Brasil.

— Pai, vambora. O povo tá chamando para ir para a casa da dona onde iremos dormir. — Era o mala do meu filho interrompendo minha onda novamente.

— Pai, chora não.

Então ele me abraçou e choramos juntos. Exatamente como estou chorando agora, a diferença é que ele está dormindo na aeronave ao meu lado, a caminho da República Democrática do Congo. Saímos do local, entramos no carro dos amigos da CUFA e partimos. Em momento algum falamos sobre esse momento, acho que porque estamos impactados até agora.

O carro partiu e de lá fomos ver o espaço onde seria a Conferência Internacional das Favelas na cidade. Uma agenda ligada ao G20 social que acontece no Brasil e queremos que as favelas de 41 países estejam na agenda com suas opiniões.

Na visita ouvimos muitas histórias das pessoas, da cidade, do país. Histórias fantásticas e até algumas que não tinham muito sentido, como o exemplo das que minha mãe contava, como mula sem cabeça e outras loucuras que ela jurava de pés juntos, e minha vó, que era mortinha, que era verdade. Minha vó durou anos ainda depois desses contos que sempre deu crédito.

O sentimento era de pertencimento. Ouvir aquelas pessoas sobre como seria a conferência no dia seguinte não tinha a menor importância. Inclusive, foda-se se não rolasse. Nada do dia seguinte era importante. Aquele momento, sim; ouvi-los, sim. Eu via um pedaço de mim a cada voz, ainda que em um lugar distante e pessoas tão distantes.

Sei que estou sendo redundante, mas a verdade é que a cada olhar, cada expressão, cada traço me lembrava do amor, da força e da resiliência que sempre busquei.

Aquilo me fazia sentir envolvido por uma teia de relações e histórias que transcendem o tempo e o espaço.

Era eu, você que está lendo e se emocionando, era a nossa história refletida em cada sorriso de alegria e em cada expressão de dor que via. As lutas, as vitórias, os desafios e as esperanças eram semelhantes às minhas próprias experiências na CUFA e na vida. As lutas do movimento negro que o Ivanir dos Santos me envolveu, que a Ana Karla Recife, MV Bill, Silvio Almeida , Preto Zezé , Flávia Oliveira e tanta gente que li e convivi se faziam presentes. Esse espelho de emoções e vivências trouxe uma compreensão profunda e uma empatia genuína por aqueles ao meu redor. Foi como se todas as barreiras caíssem, revelando uma irmandade essencial e indissolúvel.

Esse novo e adaptado amor por minha comunidade me inspirou de um outro jeito a contribuir de volta, a continuar contribuindo com iniciativas que promovam a justiça social e a igualdade. Sem desejar o monopólio do bem. Parecia um novo chamado para agir, para renovar, para estar presente e para fazer parte da construção de um futuro melhor para todos nós. Pretos e brancos. Pude vir aqui para sentir esse amor eterno e senti-lo é como ser tocado para uma imensa união em direção à solidariedade.

Me orgulho de sentir tudo isso, de chorar tudo isso, pois esses fatos me amarram pra sempre a esse continente dos livros, tão distantes da vida cotidiana. Ver pessoas iguais a mim, com dialeto distinto com quem pude me identificar profundamente, reafirma minha identidade e meu valor.

Esse texto não será capaz de escrever tudo que passei, nem vivi. Não será capaz de agradecer de forma decente a cada pessoa da CUFA ou não que abracei. Esse texto nunca será capaz de agradecer quem me acolheu.

Mas em nome do Vick, presidente da CUFA África Central e vice-presidente da CUFA no continente africano, eu agradeço imensamente tudo que vivi aí. E a emoção está tão grande que falarei sobre a conferência amanhã.

Irmão, suas lutas só me mostraram que ninguém está sozinho, lutamos pela mesma liberdade. Esse momento me mostrou também que a maior herança que um pai pode deixar para um filho é o encontro com sua própria história.

E em nome desse encontro, Vinícius, te deixo como herança as viagens que fizemos, as reflexões que tivemos, os perrengues que passamos. Mesmo que eu me torne velho e pobre, te deixarei os rios de Bangui, o colar que recebi do Smile (não se escreve assim, mas a pronúncia é essa). Pode parecer-te pouco. Mas se quiser um pouco mais, te deixarei os pássaros africanos, os mistérios das tribos e os guisos das tias, para que quando eu faltar você jamais se sinta com as mãos vazias.

Acompanhe tudo sobre:CUFA - Central Única das FavelasFavelas

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