ESG

Angela Davis: “O desafio é manter a esperança quando não vemos sinais”

A professora e ativista americana está no Brasil para uma palestra sobre educação. Mas falou muito mais, de aborto a Marielle Franco, em happy hour com a Exame e outros veículos

Angela Davis no Festival LED - Luz na Educação, no Rio de Janeiro: "Conhecimento é o oposto da escravidão" (Globo/Lucas Teixeira/Reprodução)

Angela Davis no Festival LED - Luz na Educação, no Rio de Janeiro: "Conhecimento é o oposto da escravidão" (Globo/Lucas Teixeira/Reprodução)

Marina Filippe
Marina Filippe

Repórter de ESG

Publicado em 21 de junho de 2024 às 15h38.

Última atualização em 21 de junho de 2024 às 18h46.

Do Rio de Janeiro*

Angela Davis, filósofa professora americana, é como uma estrela de rock do ativismo pelos direitos humanos e do movimento negro. Sua popularidade atravessa gerações e geografias e faz com que ela receba homenagens, como a música Sweet Black Angel, dos Rolling Stones, uma das poucas bandas a rivalizar com a fama dos Beatles nos anos 60 e 70. Uma versão desta canção, interpretada pelo grupo brasileiro Batuqueiros do Silêncio, que busca levar a experiência musical para pessoas surdas, é o que tocava quando Davis subiu ao palco do Festival Led – Luz na Educação, promovido pela Globo.

Davis abriu o evento que recebe 40.000 pessoas no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, entre sexta-feira, 21, e sábado, 22. Ao longo de uma hora ela respondeu a questões da jornalista Aline Midlej, apresentadora de telejornais da rede, para uma plateia de 500 pessoas – além de 400 outras que assistiam a transmissão na sala ao lado e centenas que ficaram do lado de fora – e gritavam na tentativa de conseguir um espaço nas salas. Os ouvintes eram, em sua maioria, pessoas negras, de todas as idades, que aplaudiam a cada fala sobre liberdade, educação, igualdade e poder do povo.

“Conhecimento é o oposto da escravidão. Eu cresci em uma família de educadores, com mãe e pai professores em uma das cidades mais segregadas do sul dos Estados Unidos. Isso significa que eu costumava ser muito raivosa com o fato de os negros não poderem entrar em espaços como as bibliotecas. Ao mesmo tempo, tinha na minha mãe o exemplo de que a educação fortalece a capacidade crítica de entender o que precisa de mudança”, disse Davis.

Para ela, nos Estados Unidos e no Brasil, a Teoria Crítica é rechaçada para tirar das pessoas a noção de que conhecimento é poder. “Grandes líderes não querem que as massas alcancem o conhecimento porque sabem a capacidade de movimentação que isso gera. Até porque, eles podem ser os líderes, mas nós [pessoas negras] somos a maioria”. Desenvolvida nos anos 1920, por pensadores da chamada Escola de Frankfurt, na Alemanha, como Theodor Adorno, Walter Benjamin e Jürgen Habermas, essa abordagem filosófica e sociológica busca analisar e criticar a sociedade e a cultura para revelar e desafiar estruturas de poder e dominação.

Davis citou como é preciso enxergar a educação em espaços nos quais ela parece não ocorrer, como nas prisões. “Penso que as escolas podem aprender sobre como pessoas presas podem ser educadas e perceber na educação uma chave para a mudança. A verdade é que muitas pessoas nas prisões nunca aprenderam a ler e escrever de verdade, algo que é bastante transformador na sociedade”.

Em outubro de 1970, Davis foi presa nos Estados Unidos, acusada de envolvimento no sequestro do juiz Harold Haley, que terminou com a morte de Haley e um dos sequestradores, Jonathan Jackson. O crime teve como pano de fundo a prisão de George Jackson, irmão de Jonathan, um homem negro que passou mais de uma década na prisão por roubar 70 dólares em um posto de gasolina. A injustiça do caso se tornou uma bandeira do grupo Panteras Negras – o sequestro tinha como objetivo libertar George e outros ativistas. Davis tinha ligações com o grupo, porém, não havia nenhum indício de sua participação no crime. George, por sua vez, ingressou no sistema carcerário aos 20 anos, onde teve acesso a ideias filosóficas e revolucionárias. Ele passou a escrever textos sobre as injustiças sofridas pelos negros e ganhou fama. Após o incidente com seu irmão, George foi morto por guardas prisionais, numa suposta tentativa de fuga.

A injusta prisão de Davis mobilizou uma campanha internacional pela sua liberdade. O episódio é considerado um marco na história dos movimentos civis e uma grande vitória do ativismo. Em 1972, ela foi absolvida de todas as acusações pelo tribunal do júri.

A ativista ficou atônita ao saber, no palco, que o livro "O Menino Marrom", obra de Ziraldo publicada em 1986, que conta a história de dois meninos – um negro e um branco – foi suspenso de escolas municipais da região de Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais. “Eu não consigo acreditar que os livros ainda são considerados maus no Brasil. Enquanto tantos se esforçam para avançar em um futuro sem racismo, exploração de classe, homofobia e medo das mudanças climáticas, outros usam os livros para voltar a história em períodos inadmissíveis. Proibir a leitura é uma forma tão violenta de fascismo quando de fato queimar livros”. Ainda em relação aos poderes, a professora criticou a guerra em Gaza e a violência policial como um todo.

No palco, Davis não deixou de agradecer aos professores e se afirmar uma eterna aprendiz. “Aos 80 anos, continuo fazendo o que faço porque essa é a minha vida. Ensinar me traz o aprendizado contínuo. A educação, sendo ela formal nas escolas ou com outras formas de conhecimento, é a forma de buscar a inclusão de grupos que são tão excluídos como negros e indígenas, e um senso de justiça. Para que todo o sistema capitalista seja transformado é preciso um senso holístico sobre a educação”.

Um happy hour com Angela Davis no Jardim Botânico

Na noite de quinta-feira, 20, às vésperas da participação no LED, Davis participou de um happy hour com dez jornalistas – a Exame incluída – organizado no famoso escritório da Globo nas proximidades do Jardim Botânico, na capital fluminense. A ativista, que escolheu não fazer uma coletiva de imprensa, parecia à vontade ao conversar informalmente sobre seus interesses, de viagens à Bahia a políticas de punição de mulheres que pratiquem o aborto.

No início da conversa, ela buscou entender o andamento do caso Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 2018. “Eu vi que há novidades sobre a apuração do caso. Os assassinos estão presos? Eles estão no poder?”, perguntou preocupada. A ativista lembrou que na sua passagem anterior pelo Rio, em 2019, comprou um porta-retrato de Marielle que hoje enfeita sua estante. “Eu gostaria de voltar ao local onde comprei o quadro, mas não me lembro bem onde era”.

Uma de suas missões é realizar os sonhos de Marielle. “Temos que tentar realizar seus sonhos porque qualquer tipo de justiça aos assassinos não vai trazê-la de volta. Assim como se pensarmos no assassinato de George Floyd, em 2020 no Estados Unidos, ninguém poderia prever tamanha demonstração de indignação com a violência contra os negros. Aquilo foi incrível, mas a questão agora é não nos esquecermos do passado e continuar lutando por uma agenda de futuro que, na minha visão, é anticapitalista.”

Contudo, Davis vê avanços desde a sua última vez no Brasil, quando palestrou no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. “Falei sobre a falta de conhecimento de grande parte dos brasileiros pelas ativistas negras do país, como Lélia Gonzalez. Vejo muito mais engajamento nos livros de feministas negras brasileiras agora, inclusive sobre como pessoas de outras partes do mundo podem participar dessas discussões. Eu gostaria, por exemplo, que Sueli Carneiro ganhasse um Prêmio Nobel”. Sueli Carneiro é uma filósofa, escritora e ativista brasileira fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra.

Como uma pessoa que há décadas está na luta dos movimentos sociais, é natural que Angela seja percebida como resiliente. Quando uma das participantes questionou como não desistir em momentos em que há a tentativa da retirada de direitos, Davis afirmou que é preciso ser vigilante e não se contentar apenas com uma vitória.

“Não podemos assumir que algo conquistado será assim para sempre. É preciso defender o que conseguimos ao mesmo tempo em que outras pautas surgem”, disse. “Eu costumava a amar a ideia francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, o que me motivou a estudar muito a literatura francesa e até a morar no país. Mas estou desapontada com o caminho político da França. Eu realmente espero que as pessoas acordem e não permitam que a extrema-direita tome o controle”.

No Brasil, Davis usou como exemplo a questão do aborto, tendo conhecimento do Projeto de Lei 1904, que visa alterar o Código Penal para equiparar o aborto ao homicídio quando realizado após a 22ª semana de gestação. “Claro que devemos lutar por direitos reprodutivos e o fim da criminalização das decisões das mulheres, assim como da esterilização de mulheres de forma abusiva”, afirmou.

Neste caso, ela também contextualizou as disparidades de classe e raça. “Todas as mulheres deveriam poder escolher o que fazer, mas quem costuma ter essa opção são mulheres brancas de classe média e alta. Afinal, são essas as mulheres com acesso a médicos e sistemas de saúde”.

A professora relacionou as desigualdades com a justiça climática, uma vez que pessoas de periferia – e no Brasil majoritariamente negra – são as que mais sofrem com as mudanças do clima. “Justiça é algo invisível, mas é preocupante como em um curto período de tempo temos materializado como as pessoas são afetadas de formas diferentes pelos impactos das mudanças climáticas”.

Ativismo em tempos de redes sociais

Diferentemente dos movimentos dos anos 70 e 80, cujo palco principal eram as ruas, a professora reconhece agora o poder das redes sociais, mas instiga a eficiência. “É importante reconhecer o papel das diferentes formas de mobilização na construção de movimentos sociais. Hoje, não estamos apenas nas ruas, também nos reconhecemos no grande número de pessoas que se manifesta online.  Contudo, esquecemos como fazer a verdadeira organização que nos manterá unidos”.

Ela entende que as grandes manifestações nas ruas não precisam ser diárias. “Se você faz grandes manifestações, você não organiza o movimento dia a pós dia. O que estamos falando é sobre educar as pessoas para que elas descubram como exercer o ativismo a partir de uma consciência coletiva. É nos períodos aparentemente quietos que acontece a maior parte do trabalho de revolução. Não acredito que manifestações, como as que sucederam a morte de George Floyd, teriam acontecido sem um trabalho de décadas de organização. O desafio é manter a esperança quando não vemos os sinais”.

*A jornalista viajou a convite da Globo.

Acompanhe tudo sobre:MulheresDiversidadeEducaçãoDireitos Humanos

Mais de ESG

Em negócio de US$ 1,4 bi, BP comprará participação da Bunge na BP Bunge Bioenergia

Como 13 jovens ativistas do Havaí venceram acordo climático histórico

Ranking aponta o Brasil como o terceiro maior mercado mundial de energia solar

Olimpíada de Paris: plano de Macron de nadar no Sena pode ir por água abaixo por causa da poluição

Mais na Exame