Economia

Estado se tornou um covarde, diz Mariana Mazzucato

"Não achamos mais que seja sexy ou permitido ao governo ter uma visão", diz uma das maiores especialistas em inovação do mundo; veja a entrevista

EXAME.com (EXAME.com)

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João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 12 de maio de 2015 às 13h36.

São Paulo – A internet criou setores inteiros na economia que nem existiam antes. O iPhone é hoje o carro-chefe da empresa mais valiosa do mundo. O gás de xisto e as energias renováveis estão mudando a forma com a qual o mundo se move. 

O que eles tem em comum? Todos nasceram de financiamentos estatais ao longo de toda a cadeia. 

É essa a tese provocativa de Mariana Mazzucato, filha de pais italianos criada em Nova Jersey e considerada um dos "três nomes mais importantes em inovação" do mundo pela revista New Republic.

Aos 46 anos, Mazzucato tem hoje a cadeira RM Phillips da Universidade de Sussex em Brighton, no Reino Unido. Sua TED Talk já foi assistida mais de 600 mil vezes (veja no final da página). Seu livro, "O Estado empreendedor – desmascarando o mito do setor público vs. setor privado", está disponível no Brasil pela Companhia das Letras. 

Uma verdadeira metralhadora verbal, ela conversou por telefone com EXAME.com antes de vir ao Brasil para participar do 6º Congresso Brasileiro de Inovação da Indústria, organizado pela CNI. Veja os principais trechos:

EXAME.com – Sua tese é que o Estado não só pode, mas já tem tido um grande papel na inovação. Quais são os exemplos disso?

Mariana Mazzucato – Quando falamos de intervenção estatal, fingimos que é uma “correção” ao invés de uma “criação” de mercado. A noção de um papel estatal em todos os estágios – da pesquisa básica, a pesquisa aplicada, ao financiamento das companhias – é o que chamo de um grande papel. O Estado não faz as coisas sozinho, mas dispara essa fase de alto risco, incerteza e capital intensivo.

Exemplos: a técnica de fraturamento hidráulico e do gás de xisto foi 100% financiada pelo governo e o setor privado só entrou depois. Isso também é verdade para energia solar, nuclear e eólica e setores high-tech como biotecnologia, nanotecnologia e a internet, todos caracterizados por investimentos massivos do Estado em toda a cadeia.

EXAME.com – Como é que se enraizou essa narrativa de que a inovação parte de alguns revolucionários pensando fora da caixa?

Mazzucato  A parte racional é que há muito dinheiro para ser ganho fingindo que você é o maior tomador de risco. Quando a associação dos capitalistas de risco (venture capitalists) se formou nos anos 70 e começou a fazer lobby, conseguiu cortar pela metade o imposto sobre ganho de capital. Eles querem posar como os maiores tomadores de risco não só porque parecem heróis, mas porque seus lucros sobem.

Já as companhias farmacêuticas podem cobrar preços tão altos em nome de recuperar gastos altos mas incertos. Mas na verdade, elas não estão na área de maior risco, feita pelo National Institute of Health, que gasta US$ 32 bilhões por ano em coisas transformadoras, ao invés de pequenas variações de drogas existentes, onde focam as empresas.

A parte irracional é que mesmo quando o Estado faz coisas incríveis, ele não sabe falar disso, então é capturado. Perde legitimidade com o público, que logo os culpa quando algo falha. Keynes disse: essas pessoas práticas e politicas, que acham que estão fazendo o trabalho, na verdade são escravos dos economistas.

EXAME.com – Então é mesmo quando o Estado faz algo, precisa fingir que não está para ser aceito pelo público?

Mazzucato – Por um lado, sim, mas não o público, e sim os economistas. A teoria econômica justificou apenas um papel limitado do Estado, então ele não tem o vocabulário para falar de si mesmo de outra forma. E a ironia é que o publico só ouve o Estado falando de si mesmo de forma covarde, então correm para culpar ele quando há erros. 

O que você diz é mais verdade se você disser não “o público”, mas “o Congresso”. Mantendo um perfil discreto, descentralizado, sem uma coisa de cima pra baixo, os diferentes tipos de agência conseguem ficar fora do radar e não virar alvo quando entra um governo conservador. O que impressiona nos EUA é que mesmo sob Reagan, esse tipo de financiamento não foi cortado, e agora é a primeira vez que os conservadores estão ameaçando fazer isso.

EXAME.com – Você aconselha governos ao redor do mundo em relação a políticas públicas. Você já se encontrou com brasileiros? Quais conselhos você deu?

Mazzucato – Vou encontrar com a Dilma e nos últimos 5 anos tive muito contato com gente do BNDES como Luciano Coutinho e João Ferraz. Tentei focar em duas coisas: para ser um estado empreendedor, é importante pensar em termos portfólio – manter um olhar amplo. Dentro da tecnologia verde, por exemplo, não fazer um só tipo de energia. 

Outra coisa que eu falo é de ser orientado por missões: ao invés de financiar uma área estreita, o interessante é pensar em problemas para todos os setores reagirem. Como quando os EUA foram para a lua, o que juntou 17 setores diferentes e os catalisou para diversas tecnologias, muitas que culminaram no iPhone.

É muito diferente do que chamávamos de "política industrial" tradicionalmente. Apenas introduzir créditos de imposto não funciona e geralmente resulta apenas em transferência de renda e não investimento. O que você deveria fazer é empurrar as fronteiras do mercado, não trabalhar dentro delas. 

EXAME.com – Então o papel do governo é desafiar o setor privado a ir mais longe?

Mazzucato – Sim, mas também o setor público, que fica confortável em trabalhar dentro das fronteiras. Consumidores podem ser direcionados; companhias devem ser empurradas. Você pode ter incentivos e juros baixos, mas elas só investem quando veem oportunidades tecnológicas e mercadológicas, e isso exige investimentos públicos massivos diretos.

E o Estado também precisa estar disposto a manter uma participação nas empresas. Não há porque supor que os impostos financiem só a parte ruim. Para cada internet temos 20 Concordes, para cada Tesla temos 20 Solyndras [fabricante de painéis solares que recebeu financiamento do governo mas acabou falindo].

Se os pagadores de impostos estão bancando toda essa incerteza, da qual muito vai falhar, deveríamos pensar disso em várias formas. Poderia ser determinando preços, ou fazendo empréstimos vinculados a renda obtida – se você pegar um empréstimo e não der certo, você não paga, se ganhar muito dinheiro, paga muito juro.

EXAME.com – Mas como você cria os incentivos certos para impedir que estas agências e o setor público não sejam simplesmente capturados por empresas privadas ou usados para objetivos políticos de curto prazo?

Mazzucato – Meu primeiro ponto é: a captura é um problema independente destas questões e os governos são capturados em todos os lugares, mesmo quando são pequenos, mesmo quando não fazem o que estou dizendo. No Reino Unido, a coalizão desde 2010 sempre fala de governo pequeno, mas é super capturada!

Olhando para os investimentos bem-sucedidos, podemos tirar algumas lições. A primeira é que as agências públicas envolvidas não devem ter líderes indicados politicamente, devem ser independentes do processo politico. Se após toda eleição você muda a agência, você cria instabilidade e isso é uma receita para o desastre.

E para atrair pessoas de alto nível, mais interessados em evidência do que favores, é bom ser orientado por missões. Se elas estão preocupadas em lutar contra o aquecimento global ou mandar um homem para Marte, é mais fácil atrair esses experts. Foi o que permitiu ao Departamento de Energia ter sido liderado por um físico vencedor do Nobel, Steven Chu.

E se você é visto como co-criador do sistema, fica mais fácil ter acordos sérios. O governo ia quebrar o monopólio da AT&T, mas exigiu que ela reinvestisse seus lucros em grandes inovações com ele. Criou-se o Bell Labs, que se tornou um dos maiores laboratórios de pesquisa e desenvolvimento privados da história. Isso foi muito interessante e não acontece mais.

Hoje, os governos são covardes e dizem que eles são o problema e devem apenar cortar o déficit. Então Facebook e Google ficam menos confiantes em fazer esse tipo de acordo e o que você vê é a quantidade de dinheiro não-investido, assim como companhias focadas em comprar suas próprias ações para aumentar o preço. O problema não é fazer acordos, é que estamos fazendo o tipo de acordo errado.

EXAME.com – Há um debate atual sobre o perigo de que a tecnologia mate mais empregos do que cria, e que a inovação pode não ser necessariamente boa para o crescimento. O que você acha disso?

Mazzucato Não existe nada inevitável na tecnologia que a faça substituir o trabalho. Sempre existiu essa preocupação: David Ricardo e Karl Marx já se perguntavam isso no século XIX. Em todos os grandes períodos da historia, o que você vê é que no curto prazo há um efeito de troca, mas quando você tem também um reinvestimento dos lucros obtidos, isso cria mais empregos e habilidades, porque o capital humano é endógeno ao sistema. 

Parte do problema é a massiva financialização da indústria, que levou a uma falta de investimento em capital humano no longo prazo. Gerentes de alto nível nos seus 50 anos estão perdendo seus empregos; experiência é vista como descartável. A estrutura de trabalho mudou para um modelo flexível que não foi regulado, apenas incensado como solução para tudo.

E o resultado é que ficamos pra trás nas habilidades necessárias para se adaptar aos novos meios. As outras ondas de mecanização massiva substituiu pessoas, sim, mas também criou novas oportunidades. Hoje não temos um setor publico sendo corajoso e não temos um setor privado reinvestindo seus lucros: claro que você acaba com inovação estagnada e desemprego.

EXAME.com – Você fala na interação entre setor financeiro e inovação, mas e a relação entre cultura e inovação: ela é real?

Mazzucato – Não acho, e não conheço pesquisas que mostram isso. É legal fingir que inovação tem a ver com o DNA do país: “ah, os americanos adoram risco, mas nós somos europeus da renascença”. O que? Metade dos EUA é completamente letárgico. E os lugares de sucesso, como o Vale do Silício, foram especificamente lugares de parcerias entre publico e privado. Há países que não tinham qualquer inovação e que se tornaram um dos mais inovadores de todos em pouco tempo, como a Finlândia.

É fácil dizer que em um país em desenvolvimento, o Estado precisa atuar para tirar o atraso e depois pode se retirar. Mas até os lugares mais desenvolvidos do mundo ainda precisam de um investimento maciço dele! A forma mais avançada de capitalismo requer esse papel.

É outra crítica que tenho aos keynesianos modernos: até Stiglitz e Krugman, que respeito muito, não tem uma teoria do estado durante o boom. A onda da internet aconteceu no boom. Mesmo no boom você precisa de uma estratégia verde para ter uma revolução verde.

EXAME.com – Mas quais são as grandes missões da atualidade onde o Estado pode se engajar?

Mazzucato – Aquecimento global. Não só energia solar e eólica, mas transformar como vários setores funcionam, e colocar todos na direção verde, o que a Alemanha está tentando fazer. Fiz um trabalho com Carlota Perez argumentando que a suburbanização foi uma politica do governo que direcionou a produção em massa. A revolução verde pode ser uma direção para a tecnologia da informação. 

Há muita conversa sobre o cérebro também. Mas as coisas só são interessantes quando tem um propósito. A tecnologia de informação pode ser usada para fazer as pessoas comprarem melhor ou para transformar o sistema de saúde. Essas escolhas precisam ser feitas, e historicamente sempre foram feitas por governos. E dentro dessas escolhas, permite-se ao setor privado ser um pouco louco e explorar. 

O que falta hoje não são ideias – todo mundo fala de inteligência artificial, mas ninguém fala na missão por trás disso, ou dentro de qual problema será aplicado. Não achamos mais que seja sexy ou permitido ao governo ter um sonho, uma visão ou uma missão. Dizem que governos devem abaixar a cabeça, servir aos negócios e pensar só em comercialização e valorização – e isso é deprimente. 

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