Economia

"Não me constrange falar a verdade", diz Kelman

O diretor-geral da Aneel, Jerson Kelman, desagradou parte do governo e da Petrobras, ao dizer o óbvio: há incertezas quanto ao abastecimento de gás

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h42.

Em novembro passado, tornou-se pública uma troca de correspondências entre o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) , Jerson Kelman, e o ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, na qual ficava claro que o órgão regulador e o governo não se entendiam sobre a forma de resolver o problema da oferta de gás para geração de energia elétrica. A agência queria deixar de contar no seu planejamento com a energia de várias térmicas que não tinham gás disponível. O governo considerava que a Aneel não poderia tomar essa decisão sem a aprovação do ministério de Minas e Energia. A briga acabou se estendendo para a Petrobras, que produz o gás e tem várias térmicas incluídas na relação da Aneel.

A decisão da Aneel desagradou o governo pois comprovava que, sem essa energia "em estoque", o risco de racionamento nos próximos anos aumenta - caso haja uma estiagem parecida com a de 2001, que force o governo a gerar energia por meio das térmicas a gás. Outra razão é que ela puxa para cima o preço da energia no mercado de curto prazo. Em dezembro, um levantamento feito pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) provou que a Aneel estava correta e as térmicas não poderiam gerar 3,6 mil megawatts de energia por falta de gás.

Em janeiro, com os ânimos serenados e as divergências resolvidas, governo e Aneel chegaram a um entendimento. Com o nome sempre citado para ocupar um cargo de primeiro escalão no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - para o ministério do Meio Ambiente - Kelman desconversa: "não sei de onde vêm esses rumores". Tranqüilo e com natural bom humor, Kelman falou a Exame. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

EXAME - Qual a razão da divergência entre a Aneel e o Ministério de Minas e Energia e a Petrobras sobre a redução da previsão de oferta de energia em razão da falta de gás para algumas usinas térmicas?

Jerson Kelman - Esse tema da indisponibilidade de gás já havia sido detectado no Nordeste, em janeiro de 2003. Na época, as térmicas da região foram chamadas [para gerar energia] e não tinha gás. Foi feito um teste e se revelou qual era a capacidade real de gás para região. Teve uma resolução da Aneel, a de número 40, que determinava que as térmicas estavam limitadas a certa capacidade, já criando um precedente.

EXAME - Houve falta de planejamento?

Kelman - A culpa foi não ter sido feito um acordo comercial compatível com a natureza das demandas. O razoável seria ter feito anúncio do gás para veículos, lembrando que ele poderia ser interrompido. Aí converte [o motor para gás natural] quem quiser. Isso dificultaria enormemente [a expansão da demanda], mas seria o mais correto. O mesmo com a indústria. Ela foi estimulada a converter de óleo combustível para gás natural, mas o correto seria dizer para ela não desmontar a estrutura de óleo combustível, pois nossa contrato será flexível. Aí teríamos feito tudo certo. Não tem sentido você ficar desperdiçando o gás para terméletrica, queimando-o, por falta de uso. A situação do Nordeste deixou claro que tinha um problema.

EXAME - E o que aconteceu no ano passado?

Kelman - Em setembro algumas térmicas foram chamadas para gerar energia, mas não tinha gás e elas não produziram. Na ocasião, os reservatórios [de usinas hidrelétricas] esvaziaram. Aí se disse que elas não tinham gás e agudizou a tensão. Não há dúvida que esse recurso não existe e deve sair do planejamento. Faltava lastro para o cheque especial. O que a Aneel fez foi dizer que o "rei está nu".

EXAME - Como assim?

Kelman - Fizemos uma resolução em outubro que dizia para o ONS [Operador Nacional do Sistema Elétrico] contar com os recursos de energia observados e não com aqueles que o agente declarou existir. Isso teria um efeito muito forte no custo e na avaliação do risco. Isso não agrada circunstancialmente o governo. Setores do governo e da Petrobras disseram que aquilo não era razoável, pois alguns fatores circunstanciais ocorreram, como os problemas de chuva que afetaram o gasoduto Brasil-Bolívia. O meu desconforto é que, tendo menos gás para termoeletricidade, não queremos ver isso. É preciso reconhecer que existem menos recursos de energia elétrica para o futuro, o que significa que o custo atual cresce e aumenta o risco de racionamento. Foi o que fizemos. Outra questão é a da alçada do ministério, que é dono do gás. A definição para onde vai o gás, se é para veicular, para a indústria ou para as térmicas é do governo. O governo queria que a Petrobras desse gás para as térmicas. A Aneel diz que a briga é entre eles. Nosso negócio é realismo. Se o gás não estiver lastreado com contratos firmes, eu prefiro enfrentar a má notícia.

EXAME - A agência acabou batendo de frente com o governo e a maior empresa do país.

Kelman - A decisão da Aneel foi uma postura independente. A agência tem dito que temos tido uma postura de agência independente e que nossas decisões são tomadas de forma independente. Nós temos feito com responsabilidade. Não se trata de ficar atiçando, espetando o governo, nem trazer intraqüilidade para a população, nem fazer terrorismo, que vai ter racionamento e ninguém vem investir no Brasil. Mas agir com independência, para prever dificuldades e acertar as coisas.

EXAME - A agência sofreu pressões para voltar atrás da decisão?

Kelman - Não pertenço a nenhum partido político. Neste governo, seja a ministra [da Casa Civil] Dilma [Rousseff] ou ministro [de Minas e Energia, Silas] Rondeau nunca tentaram me influenciar. Me escolheram e aos diretores pelo aspecto de competência técnica e, acho, idoneidade moral. Por ter uma postura isenta, de olhar o interesse do país a longo prazo, ainda que isso, eventualmente se choque com interesse circunstancial do governo. Essa é a característica de um agência.

EXAME - Como foi que a Aneel provou que, de fato, havia uma falta de gás disponível?

Kelman - Foi feito então o teste [pelo ONS em dezembro] e piorou a situação [ao comprovar que o déficit de energia disponível pela falta de gás chega a 3.624 megawatts médios, bem superior aos 2.898 MW médios apontados pela Aneel no final de novembro]. Ficou claro que não era uma situação circunstancial. Agora a situação em que estamos é que o governo acha que não é realista pensar na situação de abastecimento do futuro tendo apenas a situação de setembro. Concordo, mas fiz uma brincadeira com o ministro e o Ildo [Sauer, diretor de gás da Petrobras] dizendo que aceito as perspectivas de crescimento da oferta, desde que elas sejam lastreadas num acordo de Tucão.

EXAME - O que é o acordo de Tucão?

Kelman - Contei para eles a seguinte história. Quando eu era diretor da Serla [Superintendência Estadual de Rios e Lagoas], do Rio de Janeiro, fazia obras na Baixada Fluminense contra a enchente, perto de um lugar chamado Favela do Tucão. Tínhamos que realocar 10 famílias e fui negociar à noite com as donas de casa da região. Elas fizeram várias reivindicações, queriam tudo, quase como se quisessem morar na [avenida] Vieira Souto [em Ipanema, endereço nobre da Zona Sul carioca]. Eu disse não para todos os pedidos e no final a única coisa que propus foi uma casa legal, pequena, ali perto. Era melhor que a casa que elas tinham. Elas se reuniram e para minha surpresa aceitaram, desde que o contrato fosse assinado por mim, como pessoa física, e não como representante do governo. É o sinal da falência do Estado, que não tem nenhuma credibilidade. Entendi porquê. Era quase como um comprometimento pessoal meu com as obras. Se eu não cumprisse aquilo, estava morto. Chamei isso de acordo do Tucão e assinei e minha prioridade foi entregar aquelas casas, que foram de fato entregues.

EXAME - E como vai ser esse acordo com o governo agora?

Kelman - O que vai ser não sei, mas o espírito é esse. O que dizemos é que vamos acreditar nas promessas, desde que elas sejam ancoradas em compromissos comerciais. A perspectiva é de que haverá mesmo o crescimento da oferta de gás nos próximos anos.

EXAME - O senhor conseguiu se manter no governo do PT, comandando duas agências reguladoras, depois de ter trabalhado durante o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. A que se deve isso?

Kelman - Meu perfil é de um sujeito que é técnico e não se constrange em falar a verdade para o governante. Na época do Fernando Henrique também ocorreu algo [que teria potencial de desagradar o governo]. Quando fizemos o relatório [Kelman, um amplo estudo sobre as razões que levaram ao racionamento de energia de 2001] , mostramos algumas fragilidades da administração da época. Entreguei pessoalmente ao presidente e disse que o governo não saía bem nessa foto. Mostra que o governo teve uma série de deficiências. Ficou tão evidente que não era uma peça de briga política, mas uma peça de aperfeiçoamento da máquina pública, que o presidente não ficou aborrecido. Agora é igual. Isso mostra que há espaço para servidores públicos - não sou só eu - que se dedicam ao aperfeiçoamento da máquina pública, apontando também para imperfeições. Hoje meu relacionamento com o governo é muito bom.

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