Carne no supermercado: consumo do item caiu desde início do isolamento (Alexandre Severo/Exame)
João Pedro Caleiro
Publicado em 24 de junho de 2020 às 11h06.
Última atualização em 24 de junho de 2020 às 11h17.
Morando nos arredores de Cuiabá, Carlos Ferreira está cercado por gado em algumas das pastagens mais ricas do Brasil. No entanto, ele não pode mais pagar por um bife.
Carlos comia carne regularmente. Mas, quando a cidade decretou o fechamento do comércio, ele perdeu o emprego em uma floricultura e como motorista do Uber. Agora, ele e sua esposa desempregada precisam contar com a ajuda do governo e de parentes.
“Antes de eu perder o emprego, podíamos comer bife quase todos os dias”, disse ele, que é graduado em educação física. “Agora temos o suficiente para frango, ovos e, às vezes, peixe barato”.
Com terras agrícolas cobrindo uma área aproximadamente do tamanho do Texas, o Brasil desempenha um papel cada vez mais importante na alimentação do mundo.
Mas, depois que o país se tornou o epicentro de casos de coronavírus e mais de um milhão de empregos formais foram perdidos, mais brasileiros como Carlos estão lutando para colocar comida na mesa. O impacto no comportamento do consumo pode durar anos.
A ironia é que o agronegócio está crescendo no país.
O Brasil já é o maior exportador de soja, carne bovina, frango, açúcar, café e suco de laranja. Uma combinação de safras recordes, forte demanda global e queda na moeda local significa que 2020 será o melhor ano até agora para o setor.
O governo espera que a receita agrícola cresça 8,5%, para recorde de R$ 704 bilhões. O que tem contribuído para impulsionar a demanda é uma lacuna de oferta de proteína deixada depois que a peste suína africana dizimou o rebanho de suínos da China.
Mas a indústria é dominada por grandes empresas que possuem forte foco nas exportações. Ações da JBS, Minerva e Marfrig se recuperaram nos últimos meses, juntamente com o Ibovespa.
“O agronegócio de exportação está indo muito bem, mas a parte focada para o mercado interno está sofrendo bastante”, disse Paulo Sousa, que comanda as operações da Cargill no Brasil, na semana passada. “É notado o contingenciamento de gastos pelo consumidor. Em alguns casos, estão reduzindo drasticamente o consumo”.
O acesso a alimentos em países em desenvolvimento como o Brasil era desigual muito antes do Covid-19. Mas a pandemia está aprofundando o abismo e exacerbando a insegurança alimentar para pessoas de baixa renda no país, incluindo 38 milhões de trabalhadores informais com pouco acesso a crédito ou ajuda estatal.
Para piorar, os alimentos estão ficando mais caros graças à forte demanda por exportação e a uma onda inicial de compras por pânico de escassez quando o surto começou, informou o Departamento de Agricultura dos EUA em um relatório sobre o Brasil na semana passada. Alimentos foram a única categoria que registrou inflação nos primeiros quatro meses do ano, segundo o IBGE.
O consumo de cortes de carne mais caros, laticínios e alguns produtos à base de culturas, como açúcar em bebidas, caiu no Brasil desde que as medidas de isolamento começaram em meados de março. O impacto no consumo de carne bovina só aumentará, de acordo com Thiago de Carvalho, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo, ou Cepea.
Depois de passar dos cortes de primeira para os de segunda, muitos brasileiros provavelmente substituirão parte ou todo o seu consumo de carne bovina por proteínas mais baratas, como a de frango. A demanda, atualmente suportada pela ajuda emergencial governo, deve cair quando o auxílio terminar nos próximos meses, disse ele.
“As classes mais baixas, D e E, que não têm mais opção de migração, podem sair do mercado de carne, limitando o consumo de proteínas a ovos ou processados de valor agregado menor, como salsichas”, disse ele.
O consumo de carne bovina no Brasil - o terceiro maior do mundo- deve cair 10% este ano, com a crise econômica diminuindo o poder de compra e o isolamento restringindo o segmento de food service, disse Cesar de Castro Alves, consultor agrícola do Itaú BBA.
A demanda por frango e carne suína não aumentará o suficiente para compensar a queda na carne bovina, o que significa que o consumo dos três tipos de proteína deve cair 2% em 2020, disse ele.
Além disso, o histórico de crises econômicas no país mostra que as mudanças no consumo podem perdurar. Os brasileiros estão comendo menos açúcar e carne bovina do que em 2014, um ano antes da pior recessão do país, disse Felipe Novaes, economista da Tendencias Consultoria.
E a dor causada pela crise deste ano pode estar apenas começando.
“Recebemos no início de junho a última ajuda mensal do governo”, disse Carlos. “Não sabemos se essa ajuda continuará. Até agora, não temos renda para julho.”