Contêineres no porto de Santos (Germano Lüders/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 27 de maio de 2012 às 09h27.
O aperto na fiscalização de produtos importados nos portos não está prejudicando apenas o dia a dia de empresas que trazem de outros países insumos indispensáveis a seus negócios. Milhares de brasileiros têm vivido verdadeiros dramas pessoais para receber mercadorias compradas no exterior.
A reportagem de VEJA ouviu relatos de homens e mulheres que costumavam adquirir produtos através de sites de comércio eletrônico, sediados sobretudo nos Estados Unidos e na China, para uso pessoal ou revenda. Em alguns casos, a demora causada pela operação 'Maré Vermelha' da Receita Federal pode chegar a até quatro meses.
Ainda que o Palácio do Planalto não admita que a operação – que aumenta o número de cargas fiscalizadas no chamado 'canal vermelho' da Alfândega, que faz vistoria documental e física – configure uma medida protecionista, há sinais que apontam nesta direção. No início de abril, o próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, ressaltou em cerimônia de lançamento do plano de incentivos econômicos “Brasil Maior 2” que medidas de defesa comercial seriam intensificadas para proteger a indústria doméstica. Em sua apresentação a empresários e jornalistas, a "Maré Vermelha", que começou em março, aparece com destaque com uma das ações mais importantes a compor essa estratégia. "É a maior operação já executada contra fraudes no comércio exterior”, destacou.
O problema principal da operação não é o aumento da fiscalização em si. O governo, aliás, está correto em fechar o cerco aos fraudadores. A crítica que se faz é direcionada ao despreparo da própria Receita para executar a ação. Como resultado, consumidores enfrentam atrasos de até quatro meses na entrega de suas encomendas. As empresas, por sua vez, sentem os efeitos na diminuição do seu ritmo de produção e muitas até estão fechando as portas – principalmente as menores que não conseguem arcar com o aumento de custos causado pela operação ou não trabalham com estoques.
Despachantes relatam dificuldade para prestar seus serviços e os próprios auditores fiscais reclamam que estão sobrecarregados de trabalho. Em Santos, no litoral paulista, onde está localizado o maior porto brasileiro, há navios que não conseguem atracar na data marcada nos terminais portuários devido à demora na liberação de cargas que chegaram antes.
No fim, quem perde é o consumidor, quer seja pelo aumento dos preços – fruto dos custos maiores que são repassados pelas empresas, que precisam desembolsar mais em armazenagem e manejo de mercadorias –, quer pela própria demora na entrega dos pedidos.
'Má' fama internacional – A fama dos atrasos já ganhou projeção mundial. Segundo usuários do site de leilões online eBay, o Brasil, a Rússia e a Itália são os piores países para o comércio eletrônico. Alguns vendedores internacionais evitam enviar remessas a esses locais, pois os produtos somem ou demoram excessivamente – como é o caso brasileiro – para chegar em seu destino.
O caso do mineiro Carlos Eduardo de Paula, 26 anos, de Ituiutaba, exemplifica a dor de cabeça e os prejuízos que a 'Maré Vermelha' traz aos brasileiros. Ele depende dos produtos que compra no exterior para revender no site Mercado Livre. O microempresário reclama que não sabe o destino que suas encomendas têm tomado.
Em sua lista já constam 15 pedidos de “valores expressivos”, que somam 90 dias de espera, e que ainda sequer foram conferidos pelos auditores, como pôde verificar através do sistema de rastreamento online. “Simplesmente elas não chegam e ninguém dá nenhuma satisfação. É um total desrespeito”, reclama. Os prejuízos somam 5 mil reais e não há perspectiva de ressarcimento. “Importo há seis anos e nunca vi uma situação tão crítica assim”, diz.
Abaixo-assinado – Para mostrar ao governo o descontentamento com a ação, 6.962 pessoas que costumam fazer compras internacionais assinaram um abaixo-assinado contra a ineficiência da Receita Federal e dos Correios. O criador da petição é o estudante de pós-graduação em direito administrativo, Rayan Barizza, 28 anos (veja abaixo). Indignado com os atrasos de seus pedidos, ele diz que não agüentou ficar de braços cruzados e decidiu tomar uma atitude.
“Se a Receita aumentasse o número de auditores proporcionalmente ao crescimento da fiscalização, tudo bem. Mas juntando o excesso de trabalho [dos auditores] com a morosidade do funcionalismo público, quem arca com o prejuízo é a população”, diz Gerson Viscardi, sócio da consultoria Broker Solutions e despachante no Porto de Santos.
Risco de greve – Os atrasos podem se agravar ainda mais se o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco) não chegar a um acordo com o governo federal sobre o reajuste de salário que pede. Uma mobilização está marcada para 30 de maio. Nesta quarta-feira, a categoria promete fazer uma nova "operação-padrão" – a exemplo da última ocorrida em 9 de maio, quando não houve liberação de mercadorias nos portos, aeroportos e fronteiras do país. Se o Planalto não oferecer uma proposta concreta, será votada na mesma data a indicação de greve por tempo indeterminado, a começar na segunda quinzena de junho.
A auditora fiscal e também vice-presidente da filial de Santos do Sindifisco, Maria Cristina Eusébio, afirmou ao site de VEJA que a defasagem de salário tem levado muitos auditores a prestar concursos públicos e abandonar a profissão em busca de uma remuneração melhor. Com isso, a auditoria da Receita já tem déficit de profissionais. Ayrton de Castro Bastos, secretário-geral do Sindifisco, conta que 450 pessoas foram chamadas a trabalhar em 2009, data do último concurso público. Desde então, mais de 500 já se desligaram, quer seja por aposentadoria, quer por pedido de demissão. “No Porto de Manaus são apenas três auditores para liberar toda a mercadoria”, afirma. Bastos acrescenta que, grosso, o trabalho que cada funcionário tem de fazer diariamente triplicou após a Maré Vermelha.
Reforço – No início da operação, em 19 de março, alguns funcionários da Receita de outras localidades do país foram convidados a ajudar nos trabalhos do Porto de Santos, que responde por cerca de 40% do volume movimentado nos portos brasileiros. Contudo, eles só ficaram um mês na Baixada Santista. Os funcionários do porto dizem que alguns se assustaram com o volume de trabalho e a pressão. Outros simplesmente alegaram que não podiam deixar mais seus respectivos chefes na mão.
"Como eles vieram voluntariamente, tinham o direito de voltar depois de um mês, que era o período do acordo, se quisessem”, explicou Maria Antonieta Rodrigues, também auditora em Santos no setor de análise de documentação. De fato, os novatos tinha muita dificuldade. Por não terem treinamento na área de fiscalização ou não estarem acostumados com o tipo de mercadoria manejado em Santos, eles demoravam o dobro do tempo de um auditor experiente para liberar os produtos. Resultado: filas de processos, despachantes irritados, auditores estressados e maiores custos aos importadores. Em meados de abril, dos três voluntários que foram ajudar no litoral paulista apenas dois continuaram.
Concurso público – Um alento para os auditores veio nesta sexta-feira, quando foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a autorização do Ministério do Planejamento para que a Receita prepare um concurso público para auditor fiscal (200 vagas) e também para analista tributário (750 vagas). Mesmo que os novos cheguem para reforçar, eles terão ainda de ser treinados e demorarão um tempo para se adaptarem à rotina portuária. Sem prazo para terminar, a mal-planejada operação Maré Vermelha deve continuar a prejudicar a população brasileira.
Abaixo-assinado pede providências ao governo
Há pouco mais de 40 dias, o estudante de pós-graduação em direito administrativo Rayan Barizza, de 28 anos, criou uma petição pública na internet para mobilizar os descontentes com os atrasos nas encomendas de produtos importados. Morador de Ribeirão Preto, Barizza já conta com quase 7 mil pessoas que o apoiam na reclamação. Como muitos brasileiros, ele também opta por comprar eletrônicos e roupas no exterior porque, muitas vezes, saem pela metade do preço ou com um bom desconto. Ele importa produtos principalmente dos Estados Unidos e da China para uso pessoal, mas já começa a pensa duas vezes antes de fazer as aquisições.
"Antes, as mercadorias demoravam em torno de trinta dias para chegar. Agora não sei nem se vou receber o que comprei”, lamenta. Ele tem oito encomendas que passaram sobremaneira o tempo habitual de entrega. Seus pedidos mais antigos foram um console e um jogo para Xbox, no valor de 220 reais, encomendados em 31 de janeiro, ou seja, há quase quatro meses. Seu abaixo-assinado foi encaminhado ao Ministério Público, que, inclusive, lhe enviou uma resposta. “Os termos da comunicação foram transmitidos aos setores competentes para a adoção das medidas cabíveis”, diz o texto. Até agora, nada.
Blogueira e leitoras juntas no mesmo drama
Quem também não sabe o destino de suas compras é a carioca Karen Bachini, de 25 anos, que vive em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Pelo menos uma vez por mês, a designer e maquiadora adquire importados pela internet. “Muitas coisas que eu gosto de consumir não estão disponíveis no Brasil. Então eu acabo comprando fora mesmo”, conta. Em um único mês, ela, que gasta entre 50 e 300 dólares por compra, chegou a encomendar 20 pacotes.
Blogueira há quatro anos, Karen investe em produtos de maquiagem e cosméticos para indicar às leitoras do blog ‘e aí, beleza?’, que é acompanhado por 100 mil internautas nas redes sociais. É por meio dele que Karina obtém 90% de sua receita mensal. A operação Maré Vermelha, é claro, não foi uma boa surpresa para ela. “Eu me senti prejudicada porque muitos pacotes têm demorado horrores para chegar. Eles ficam muito tempo retidos na alfândega”, reclama. Segundo ela, algumas encomendas atrasaram quatro meses.
Karen afirma também que acha injusto pagar frete e taxas absurdas por mercadorias que demora para receber. Ela também acompanha o dilema de suas leitoras com produtos que acabam extraviados e perdidos. “Infelizmente, eles não têm onde armazenar tantas encomendas e alguns pedidos somem”, lamenta.
Indignação com os atrasos e os impostos
Além da demora, muitos também ficam indignados com a tributação que incide sobre os importados. “Tive produtos que não custavam nem 30 dólares que eram taxados em quase 200 reais”, afirma o analista de sistemas Murillo Faccio, que vive em Jaboticabal, no interior de São Paulo. Ele começou comprando para consumo próprio em 2010, mas, como nunca havia tido problema com suas encomendas, passou a revender. Acessórios automotivos, cosméticos e eletrônicos tornaram-se seu foco. Hoje, além de trabalhar em uma desenvolvedora de máquinas, Faccio vende produtos através do sistema ‘drop shipping’ – em que itens vindos de outros países vêm direto do fornecedor para o comprador sem formar estoque.
O analista conta que alguns produtos que encomendou já ultrapassam três meses de atraso. A demora, logicamente, prejudica seu negócio. Desde o início da operação da Receita Federal, ele já perdeu um celular e um perfume. “No Brasil, entram milhões de reais em drogas através de contrabando e eles tentam reprimir consumidores que gastam 100 reais por mês”, reclama.
Segundo Felippe Breda, advogado especialista em direito tributário e aduaneiro do escritório Emerenciano, Baggio e Associados, são muito os casos de tributação extra nas alfândegas. As mercadorias mais visadas pelos auditores são eletrônicos, componentes, equipamentos musicais, livros e brinquedos. Há casos em que a pessoa até consegue uma boa barganha ao comprar em outro país, mas perde toda a vantagem quando é obrigada a pagar a tributação adicional.
Breda explica que o Fisco tem liberdade para sobretaxar qualquer mercadoria ao comparar o valor de face do produto com sua tabela padrão. “A diferença é que as pessoas sempre acabam pagando, mesmo reclamando. Já as empresas recorrem, muitas vezes, à Justiça por julgarem que a diferença é muito grande, o que impacta seus custos”, diz Breda. Um processo deste pode levar até cinco anos para ser resolvido no Judiciário e a mercadoria só é liberada se a totalidade da cobrança for paga. Se a empresa ou pessoa ganhar a ação, o reembolso só é feito posteriormente.
Mesmo com o atraso, preço ainda faz a importação valer a pena
Estudante de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Adriano Ortolá Marques, de 19 anos, compra cinco itens por mês, em média, no e-commerce mundial. Consumidor assíduo dos importados, ele demonstra irritação com a sucessão de atrasos. Relata ainda que pagou por um controle de videogame há mais de 90 dias e ainda não recebeu a mercadoria. “Eu só não pedi reembolso ao vendedor porque ele não tem culpa de termos uma Receita Federal lenta, um correio caótico e um governo burocrático até os dentes”, critica.
Mesmo com a demora, Marques diz que continua valendo a pena comprar no exterior por conta do preço. O controle que pediu sairia por 200 reais em uma loja brasileira. O mesmo produto em sites internacionais pode ser arrematado por 60 reais. “É um absurdo! Nossos controles são banhados a ouro? É lamentável”, desabafa. Ele, que começou trazendo de fora mercadorias para uso pessoal, tem hoje o costume de comprar presentes importados também para amigos e familiares.