DISTRITO FINANCEIRO, EM LONDRES: a riqueza cresce, mas o cidadão comum de classe média não vê seus benefícios — ao contrário, sofre com o encarecimento dos serviços médicos e educacionais / Henry Nicholls/ Reuters (Henry Nicholls/Reuters)
Da Redação
Publicado em 3 de março de 2018 às 06h49.
Última atualização em 3 de março de 2018 às 10h11.
The Growth Delusion: Wealth, Poverty, and the Well-Being of Nations (“A desilusão do crescimento: riqueza, pobreza e o bem-estar das nações”, numa tradução livre)
David Pilling
293 páginas
Editora Tim Duggan Books
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Mesmo dez anos depois, a crise financeira de 2008 ainda repercute intensamente não apenas na economia mundial, mas também nas reflexões e ideias sobre os destinos da sociedade. Entre as discussões, emerge o pensamento de alguns personagens nas áreas da ciência, da economia e até da antropologia, desiludidos com as propostas liberais que prevalecem desde o final da Guerra Fria.
Há certo consenso entre esses personagens de que não se pode, de fato, sacrificar o pensamento liberal, mas que, dada as evidências, é preciso encontrar alternativas reformistas que levem em consideração questões como sustentabilidade, divisão da riqueza, reformulação das instituições financeiras, e que tenham um olhar crítico sobre a necessidade de crescimento econômico constante e sobre outras características do capitalismo moderno. Sem ameaçar o laissez-faire liberal responsável por uma sociedade fluída e em constante transformação.
Um desses pensadores é o jornalista David Pilling, que tem feito de sua profissão um expediente eficiente para observar um amplo espectro das dinâmicas econômicas do Ocidente. Como editor do jornal Financial Times, operando nas áreas de negócios, economia e política, especializou-se na trajetória de uma grande diversidade de países, como Chile, Argentina, Japão, China e , no momento, nos principais centros políticos africanos.
Foi com esse conhecimento e o espírito de propor reformas para o liberalismo, sobretudo após os eventos de 2008, é que Pilling escreveu o livro The Growth Delusion: Wealth, Poverty, and the Well-Being of Nations (“A desilusão do crescimento: riqueza, pobreza e o bem-estar das nações”, numa tradução livre), recém-lançado em língua inglesa.
O alvo principal de Pilling é o indicador do Produto Interno Bruto, sobre o qual exorta uma ampla crítica, que vai do conceito à prática. Não é novidade o questionamento sobre a eficácia com que o PIB reflete a economia do país. Mas Pilling ataca a credibilidade e a aceitação do índice e, principalmente, a influência que ele exerce na economia mundial, condicionando uma série de decisões que interferem na qualidade de vida, nas perspectivas futuras e no dia a dia dos cidadãos.
Não foi essa a intenção do prêmio Nobel de Economia Simon Kuznets, russo de origem, mas naturalizado americano, inventor do PIB. Ele ofereceu ao Congresso dos Estados Unidos uma equação que refletisse a somatória da produção econômica do país que, em plena década de 1930, emergia da Grande Depressão. Sem que ele esperasse por isso, o índice foi adotado praticamente pelo mundo inteiro a partir da conferência de Bretton Woods, em julho de 1944, na qual foram estabelecidas as regras das relações comerciais e financeiras entre os países mais industrializados do mundo.
Mas a proposta de Kuznets sofreu alterações substanciais. “Kuznets procurava uma medida que refletisse o bem-estar de um país, na qual influenciariam negativamente as atividades ilegais, as indústrias socialmente prejudiciais e a maioria dos gastos do governo. Em muitas dessas questões, ele perdeu. Longe de ser o progenitor do PIB, Kuznets foi o seu maior oponente”, escreve Pilling. Kuznets era idealista: queria excluir da grandeza econômica produtos como armamentos e também serviços, como publicidade, além das atividades ilegais, como prostituição, jogos de azar e extorsão. “Hoje, quanto maior for o banco, quanto mais persuasiva for a propaganda , quanto pior for o crime, melhor será o desempenho da economia”, escreve Pilling.
Graças ao domínio de uma linguagem clara e coloquial, sem termos técnicos, o livro passa uma mensagem para aqueles que, diante do crescimento da economia, querem saber o motivo pelo qual não usufruem de uma vida mais confortável e próspera. De fato, o PIB mundial apresenta um crescimento substancial nos últimos dez anos que não se reflete na qualidade de vida da maioria, especificamente da classe média. O maior exemplo vem dos Estados Unidos, o epicentro da crise financeira. De 2000 a 2015, o tamanho da economia americana aumentou 80% — de 10,3 trilhões de dólares para 18 trilhões. Mas esse crescimento, segundo Pilling, aumentou a desigualdade: “As 16.000 famílias mais ricas dos Estados Unidos, que representam 0,01 % da população americana, quintuplicaram sua participação na riqueza do país desde 1980”, afirma ele.
E desenvolve um raciocínio em que atribui à frustração dos cidadãos, por não terem melhorado a sua qualidade de vida nos últimos tempos, a onda de ódio que vem se manifestando de maneira crescente em todo o mundo, responsável pela eleição de Donald Trump, pela saída do Reino Unido da União Europeia, pela ascensão na Europa dos partidos não convencionais, tanto da esquerda quanto da direita, e pela convulsão política, provocada pela revolta popular, em países como Índia, Brasil, Filipinas e Turquia. Em outras palavras, é notório o crescimento econômico mundial, mas o cidadão comum de classe média não vê seus benefícios — ao contrário, sofre com o encarecimento dos serviços médicos e educacionais e já não tem as mesmas condições financeiras que antes lhe permitiam consumir produtos de lazer, como viagens, restaurantes e atividades culturais.
“Pandemia do ódio”
Não é só Pilling que pensa assim. Na verdade, o ensaísta indiano Pankaj Mishra, contemplado com o prêmio literário Windham–Campbell , usou argumentos semelhantes para justificar o que chama de “pandemia do ódio” no livro recém-lançado Age of Anger: A History of the Present (“A era do ódio: uma história do presente”, numa tradução livre). Ambos autores concordam que há um sentimento de desilusão com o desenvolvimento econômico, que vem produzindo um efeito reverso representado pelo desemprego e queda dos rendimentos da classe média. O que se vê é uma reação dos setores mais conservadores e radicais, numa onda de ódio.
Outro tipo de reação a essa desilusão, também abordado por ambos e mais alguns autores, é o fenômeno das mortes por desespero (ou “deaths of despair”), um termo criado pelos economistas Angus Deaton e Anne Case para descrever as mortes relacionadas a abuso de drogas e álcool e suicídios, que vêm aumentando principalmente na faixa etária entre 45 e 54 anos nos Estados Unidos. Desde 1999, o índice de suicídios aumenta meio por cento a cada ano, “atingindo uma escala similar à epidemia de Aids na década de 1980”, diz Pilling. As pesquisas indicam que um dos fatores para a ocorrência desse fenômeno é uma certa nostalgia com que essa faixa etária menciona os “anos dourados” da década de 1970, quando o crescimento econômico impulsionou a classe média e produziu todos os benefícios de conforto e consumo da época, além de aspectos existenciais como identidade individual, relacionamento com o grupo social, segurança no trabalho e até mesmo a valorização da vida.
O crescimento econômico, diz Pilling, é como um tubarão: precisa se movimentar sempre para frente. Mas essa necessidade de aumentar sempre o PIB tem limites e cria contradições insuperáveis. O autor apresenta vários exemplos destas contradições, como as que ocorrem na medicina. Para aumentar a contribuição do sistema de saúde ao Produto Interno Bruto é preciso aumentar o custo — dos salários dos médicos e enfermeiros, das medicações, dos hospitais, dos equipamentos, de tudo. “Em outras palavras, é preciso tornar o sistema de saúde mais caro e menos eficiente.”
Outra distorção que o PIB cria é com relação aos serviços domésticos, por exemplo. Cuidar de uma criança ou de um idoso, lavar roupa, fazer manutenção da casa ou cozinhar, nada disso tem valor para o crescimento econômico quando a atividade é realizada sem remuneração, por uma pessoa da família, por exemplo. É uma injustiça que inspirou a jornalista suíça Katrine Marçal a escrever o livro Who Cooked Adam Smith’s Dinner? (“Quem fez o jantar para Adam Smith?”, numa tradução livre), uma bem-humorada e incisiva narrativa contra a discriminação econômica dos serviços domésticos, que, convenhamos, já não são mais exclusivos das mulheres. A importância dessa questão é grande o suficiente para operar transformações econômicas fundamentais. Basta lembrar o plano radical implantado pelo primeiro ministro japonês, Shinzo Abe, em 2012, batizado de Womenomics. Até então, o trabalho das mulheres no Japão simplesmente não era contabilizado no PIB — havia o tradicional estereótipo de que cabia às mulheres apenas a perspectiva de fazer um bom casamento e toda a produtividade feminina não era contabilizada. A política de Abe tirou o Japão da estagnação e deu novos números ao país — o que, na verdade, não mudou nada, apenas contribuiu para provar as deficiências comprometedoras do PIB.
Mas o problema, segundo Pilling, não é apenas o índice, e sim a obsessão intransigente pelo crescimento. Uma opinião compartilhada já por muitos pensadores, incluindo o economista britânico Tim Jackson, popular por suas palestras e por seu livro Prosperidade Sem Crescimento, publicado no Brasil pelo selo Planeta Sustentável, da Editora Abril, em 2016. Referindo-se à necessidade de crescimento, que impulsiona o consumo desmedido, Jackson tem uma frase de efeito que se transformou numa espécie de cânone desta perspectiva reformista do pensamento liberal: “Somos constantemente estimulados a gastar um dinheiro que não temos, em coisas que não precisamos, para causar uma boa impressão que não dura, em pessoas que não nos interessam”.
É preciso entender de maneira ponderada as críticas de Pilling e de autores com reflexões semelhantes. A intenção não é simplesmente negar o PIB e o crescimento econômico a favor de uma solução naturalista de retomar noções civilizatórias primitivas. Longe disso. Todos eles, incluindo Pilling, sabem, por exemplo, que não há como os países mais pobres realizarem avanços fundamentais em suas sociedades sem aumento da riqueza que proporcione a inclusão da população em todos os sentidos — cultural, educacional e médica. E sabem, também, que melhorar as condições de vida dos mais pobres é condição essencial para a prosperidade dos ricos. O problema deles é reformar os paradigmas que impõe a obsessão por um crescimento que é medido, de maneira autoritária e pouco inteligente, por um número distorcido e injusto, que é o PIB. Continua sendo um dos indicadores necessários, mas não o soberano. E esta compreensão deve ter um efeito libertador para governos, empresas e até mesmo para o dia a dia do cidadão comum.