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Tintim, um Herói Pueril na era Digital

Em “As Aventuras de Tintim”, Spielberg recorre à tecnologia para dar feições realistas ao jovem repórter

Tintim, seu cachorro, Milu, e o Capitão Haddock em cena do longa de Spielberg. Reina no mundo do repórter o princípio do prazer (Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 24 de janeiro de 2012 às 15h42.

São Paulo - Em 1983, meses antes de morrer, o belga Georges Remi, conhecido como Hergé e criador das aventuras do cultuado repórter Tintim, declarou: “Se alguém consegue transpor adequadamente essas histórias para o cinema , é o norte-americano Steven Spielberg”. Na época, o diretor rodava seu segundo Indiana Jones, uma espécie de sucedâneo adulto do jovem personagem de Hergé. Quase 30 anos depois, Tintim está na tela grande – e pelas mãos de Spielberg. Mas não exatamente do jeito previsto por seu idealizador. Com um vasto arsenal tecnológico à disposição, o cineasta se sentiu à vontade para imprimir uma boa dose de realismo ao herói.

Basta descrever uma cena, no começo do longa de animação, em que o próprio Hergé surge como um caricaturista de rua, esboçando o repórter para o diretor. Ouve-se uma exclamação, provavelmente do próprio cineasta: “Nada mal!” Trata-se de um rito de passagem. Spielberg assume o leme do galeão Unicórnio. Fica entendido: águas vão rolar.

A versão cinematográfica, intitulada As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne, que estreia neste mês no Brasil e baseia-se em três histórias – O Caranguejo das Tenazes de Ouro (1941), O Tesouro de Rackham (1945) e O Segredo do Licorne (1943) propriamente dito –, aparece banhada em técnicas que a HQ não permite e que o cinema até há pouco ignorava. Dois exemplos: o 3-D e a motion capture animation, recurso que transforma, no computador, os atores em criaturas animadas (no caso do protagonista, quem lhe empresta o corpo é o inglês Jamie Bell). Ou seja, Spielberg mobiliza os últimos recursos da tecnologia para conferir a Tintim tridimensionalidade não apenas gráfica mas também pessoal. O repórter deixa de ser apenas uma “persona” com cacoetes reconhecíveis e se torna uma pessoa prismática – a identidade refletida nas expressões faciais muito mais realistas.

Mesmo assim, por baixo do verniz do avatar moderno, prevalecem os critérios mais importantes de enredo, personagens e diálogos. E notamos que aquilo que temos à nossa frente (por vezes, ao nosso lado ou acima, graças ao 3-D) é uma odisseia antiquada, de paragens exóticas, ação esbaforida e um herói que brada coisas como “Com mil demônios!” – sem um laivo de ironia pós-moderna.


Infância Chata

As 23 aventuras completas de Tintim, que vão de O País dos Sovietes (1930) a Os Pícaros (1976), venderam ao todo 300 milhões de exemplares no mundo, até o lançamento do longa. O personagem, que começou em folhetins, nos anos 50 ganhou uma revista própria e, logo depois, capa dura para as histórias exclusivas. Hergé, para o bem e para o mal, foi um produto da tacanha burguesia católica de Bruxelas. O seu principal biógrafo, Harry Thompson, chama assim o segundo capítulo do livro Hergé and His Creation (Hergé e Sua Criação): Hergé e a Infância Inacreditavelmente Chata. Uma vulgata psicanalítica diria que ele inventou sua obra para se vingar daquela zica. Foi escoteiro e criou Totor, um proto-Tintim, para o jornal Le Boy Scout Belge. Há em Tintim o espírito alerta para aventuras e o anseio da “boa ação”. Mas, diferentemente do gregarismo dos escoteiros, o repórter age sozinho ou, no máximo, com seu anjo da guarda bebum, que é o Capitão Haddock (o cachorro Milu é irracional, embora por vezes fale).

Os desafetos de Hergé derivam de razões políticas. Em 1925, o artista trabalhou para um jornal conservador, o Vingtiéme Siècle, cujo diretor queria que Tintim revelasse aos belgas os perigos do bolchevismo. O personagem viajou para o Congo, onde os negros foram retratados em atitudes entre a boçalidade e a indolência. Hergé redesenhou a trama em 1946. Na obra original, porém, Tintim chega a entrar numa escola e saudar os alunos nativos: “Crianças, hoje vou-lhes falar sobre a pátria de vocês, a Bélgica!”

Mas é bom lembrar que, da primeira à última aventura, reina no mundo de Tintim o princípio do prazer. E esse prazer, quer no Tintim de Hergé quer no de Spielberg, é o da pré-sexualidade. O personagem mede 1,45 m e, como Peter Pan, não ganha um pé de galinha em 40 anos. Sexo? Passa a vida com homens solteiros e sem namorada. Ele é do tempo em que a infância podia ser pueril e um pré-adolescente não precisava ser priápico. (Para depois, quando a hora chegar, conseguir ser realmente maduro.) Veste-se sempre do mesmo jeito, com aquela calça de golfista – nele, o anacronismo não parece obsoleto. Tudo o que Tintim quer é brincar. O mundo como parque de diversões, com alguns sustos para amplificar o prazer. Enfim, a infância recuperada, uma criança que se embrenha em selvas e abismos, e não num monitor de TV, computador ou iPad.

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Basta descrever uma cena, no começo do longa de animação, em que o próprio Hergé surge como um caricaturista de rua, esboçando o repórter para o diretor. Ouve-se uma exclamação, provavelmente do próprio cineasta: “Nada mal!” Trata-se de um rito de passagem. Spielberg assume o leme do galeão Unicórnio. Fica entendido: águas vão rolar.

A versão cinematográfica, intitulada As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne, que estreia neste mês no Brasil e baseia-se em três histórias – O Caranguejo das Tenazes de Ouro (1941), O Tesouro de Rackham (1945) e O Segredo do Licorne (1943) propriamente dito –, aparece banhada em técnicas que a HQ não permite e que o cinema até há pouco ignorava. Dois exemplos: o 3-D e a motion capture animation, recurso que transforma, no computador, os atores em criaturas animadas (no caso do protagonista, quem lhe empresta o corpo é o inglês Jamie Bell). Ou seja, Spielberg mobiliza os últimos recursos da tecnologia para conferir a Tintim tridimensionalidade não apenas gráfica mas também pessoal. O repórter deixa de ser apenas uma “persona” com cacoetes reconhecíveis e se torna uma pessoa prismática – a identidade refletida nas expressões faciais muito mais realistas.

Mesmo assim, por baixo do verniz do avatar moderno, prevalecem os critérios mais importantes de enredo, personagens e diálogos. E notamos que aquilo que temos à nossa frente (por vezes, ao nosso lado ou acima, graças ao 3-D) é uma odisseia antiquada, de paragens exóticas, ação esbaforida e um herói que brada coisas como “Com mil demônios!” – sem um laivo de ironia pós-moderna.


Infância Chata

As 23 aventuras completas de Tintim, que vão de O País dos Sovietes (1930) a Os Pícaros (1976), venderam ao todo 300 milhões de exemplares no mundo, até o lançamento do longa. O personagem, que começou em folhetins, nos anos 50 ganhou uma revista própria e, logo depois, capa dura para as histórias exclusivas. Hergé, para o bem e para o mal, foi um produto da tacanha burguesia católica de Bruxelas. O seu principal biógrafo, Harry Thompson, chama assim o segundo capítulo do livro Hergé and His Creation (Hergé e Sua Criação): Hergé e a Infância Inacreditavelmente Chata. Uma vulgata psicanalítica diria que ele inventou sua obra para se vingar daquela zica. Foi escoteiro e criou Totor, um proto-Tintim, para o jornal Le Boy Scout Belge. Há em Tintim o espírito alerta para aventuras e o anseio da “boa ação”. Mas, diferentemente do gregarismo dos escoteiros, o repórter age sozinho ou, no máximo, com seu anjo da guarda bebum, que é o Capitão Haddock (o cachorro Milu é irracional, embora por vezes fale).

Os desafetos de Hergé derivam de razões políticas. Em 1925, o artista trabalhou para um jornal conservador, o Vingtiéme Siècle, cujo diretor queria que Tintim revelasse aos belgas os perigos do bolchevismo. O personagem viajou para o Congo, onde os negros foram retratados em atitudes entre a boçalidade e a indolência. Hergé redesenhou a trama em 1946. Na obra original, porém, Tintim chega a entrar numa escola e saudar os alunos nativos: “Crianças, hoje vou-lhes falar sobre a pátria de vocês, a Bélgica!”

Mas é bom lembrar que, da primeira à última aventura, reina no mundo de Tintim o princípio do prazer. E esse prazer, quer no Tintim de Hergé quer no de Spielberg, é o da pré-sexualidade. O personagem mede 1,45 m e, como Peter Pan, não ganha um pé de galinha em 40 anos. Sexo? Passa a vida com homens solteiros e sem namorada. Ele é do tempo em que a infância podia ser pueril e um pré-adolescente não precisava ser priápico. (Para depois, quando a hora chegar, conseguir ser realmente maduro.) Veste-se sempre do mesmo jeito, com aquela calça de golfista – nele, o anacronismo não parece obsoleto. Tudo o que Tintim quer é brincar. O mundo como parque de diversões, com alguns sustos para amplificar o prazer. Enfim, a infância recuperada, uma criança que se embrenha em selvas e abismos, e não num monitor de TV, computador ou iPad.

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