Pará se torna centro cultural da Ópera no Brasil
A tradição do canto lírico no Pará remonta ao século 18. Deu nisso: o estado é hoje berço de alguns dos mais festejados tenores e sopranos da atualidade
Da Redação
Publicado em 6 de janeiro de 2012 às 15h17.
São Paulo - Tinha tudo para dar errado. Ou ser de forma diferente. Com o clima abafado típico da Região Amazônica, Belém do Pará não poderia, pelo menos na teoria, produzir vozes límpidas e agudas de tão boa qualidade. “Pela umidade, pelo calor, deveriam ser vozes mais robustas, mais graves. O calor mexe com as cordas vocais. E, no entanto, olha a quantidade de grandes tenores e sopranos que temos. De cada dez cantoras, oito são sopranos”, espanta-se o pianista Paulo José Campos de Melo, diretor da Fundação Carlos Gomes, que abriga o conservatório de mesmo nome.
Campos de Melo refere-se, principalmente, às novas estrelas do canto lírico: a soprano Adriane Queiroz, 38 anos, que faz parte do elenco da Staatsoper, a mais importante entre as três casas de ópera de Berlim, e o tenor Atalla Ayan, 25 anos, que hoje mora em Nova York e foi comparado a Plácido Domingo quando jovem pelo crítico Allan Kozinn, do jornal The New York Times. São os nomes mais sonantes e que instigam uma questão óbvia: por que Belém tem uma tradição operística tão enraizada? “A origem vem da época áurea da borracha”, opina o diretor. É esse período de riqueza que possibilitaria, entre outras coisas, a inauguração, em fevereiro de 1878, do Theatro da Paz, um dos mais grandiosos do país. Projetado à semelhança do Teatro alla Scalla, de Milão, ele é reconhecido pela acústica impecável. “O teatro foi construído especialmente para receber o canto lírico”, diz Campos de Melo.
É uma explicação. Há outras. A jornalista e pesquisadora Rose Silveira, autora do livro Histórias Invisíveis do Teatro da Paz, afirma que, além do gênero lírico, o dramático e o cômico passaram a dividir a preferência do público de Belém no século 18. “A mudança ocorreu paulatinamente quando a cidade tornou-se capital do Estado do Grão-Pará e Maranhão e experimentou um primeiro projeto de modernização, promovido pela Coroa Portuguesa a partir de 1750. Era o momento de afirmação política e econômica da metrópole, que gradualmente se tornou uma praça artística atraente para companhias brasileiras e estrangeiras”, explica Rose.
Esses grupos apresentavam-se na Casa da Ópera, chamada também de Teatro Cômico, construída pelo arquiteto bolonhês Antônio José Landi ao lado do jardim do Palácio do Governo. Funcionou de 1780 a 1812. Os espetáculos voltaram a acontecer na década de 1830, abrigados no Teatro Providência, um casarão particular adaptado para essa função, na Praça das Mercês.
Lá eram encenados dramas, comédias, farsas, cenas líricas e jocosas, em sintonia com o que ocorria na corte. Durou pouco. Em 1835, as atividades foram paralisadas por causa da lutas da Cabanagem e voltaram ao normal cinco anos mais tarde. Mas o Providência era muito acanhado. “Era um pardieiro”, diz o historiador Vicente Salles. O teatro sofreu um incêndio nos anos 1870, foi reformado e funcionou até o final da década. Nessa mesma época, outros teatros já estavam em atividade em Belém: Santo Antônio, Chalet, Provisório e o Pavilhão de Recreios.
“O ciclo da borracha é importante, mas achar que a partir daí fez-se a luz não é verdade”, reforça Gilberto Chaves, coordenador do Festival de Ópera e ex-diretor do Theatro da Paz. Na opinião dele, já havia uma tradição de cultura italiana e francesa em Belém. “O Theatro da Paz não saiu pela opulência da sociedade da época e sim por uma necessidade de desenvolvimento social”, acredita. Chaves lembra que essa casa é anterior ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que só foi inaugurado em 1910. O de São Paulo, em 1911. “E o de Manaus, 13 anos depois do Theatro da Paz.”
Ou seja, Belém tinha o que Rio e São Paulo não tinham. Com isso, as companhias vinham diretamente da Europa para a capital paraense. “Esses cantores passavam de três a quatro meses aqui. Alguns até ficavam”, conta Chaves. Um dos que se fixaram na cidade foi Luigi Sarti. Oriundo de uma família italiana de músicos celebrados, acabou se tornando professor do Conservatório Carlos Gomes e spalla da orquestra do conservatório. O regente e compositor Enrico Bernardi é outro exemplo. Veio da Itália para apresentações no Theatro da Paz e não voltou mais para lá.
Tamanha efervescência estimulou o surgimento de novos talentos. No século 19, quatro grandes músicos brasileiros, todos formados na Europa, destacavam-se: Henrique Gurjão; José da Gama Malcher, autor de Bug Jargal, a primeira ópera a ter um personagem negro; Menelau Campos, que chegou a ser diretor do Conservatório Carlos Gomes; e o regente de óperas Paulinho Chaves. E no início do século 20, dois cantores marcaram a história do Theatro da Paz: Helena e Ulysses Nobre, conhecidos como Irmãos Nobre. Aos 14 anos, a soprano Helena era tida como uma grande promessa.
O barítono Ulysses seguia os passos da irmã, até que os dois foram diagnosticados com hanseníase. Mesmo depois de curados, graças a um tratamento feito no Rio de Janeiro, foram proibidos de sair de casa pelo secretário de saúde do Pará. Mas isso não os calou. Em 1931, a Rádio PRC-5 realizou a primeira transmissão de ópera ao vivo via ondas do rádio da casa dos Irmãos Nobre para o Theatro da Paz.
Presença rápida de Carlos Gomes
Quando ia a Belém, Carlos Gomes (1836-1896) era tratado como celebridade. Causou comoção ao morrer, poucos meses depois de se mudar para a cidade para assumir a escola de música que leva seu nome. O conservatório Carlos Gomes é um dos mais importantes polos de formação erudita de Belém. Adriane Queiroz e Atalla Ayan estudaram nele.
A possibilidade de outros talentos surgirem é grande. A soprano Thaina Souza e o tenor Thiago Costa, ambos na casa dos 20 anos, são duas promessas. “Os cantores líricos paraenses são reconhecidos no mundo inteiro”, garante o professor Eduardo Nascimento, ele também um ex-aluno do Carlos Gomes.
Em Belém se diz que o canto está presente no inconsciente coletivo. Atualmente o Festival de Ópera é um dos catalisadores dessa efervescência. É quando músicos convergem para o mesmo ponto. “Todos têm a possibilidade de trabalhar com nomes já consagrados. Alguém que faz parte do coro vê o desempenho de um solista de perto. Imagine o impacto disso. É como um foguete”, compara Gilberto Chaves.
São Paulo - Tinha tudo para dar errado. Ou ser de forma diferente. Com o clima abafado típico da Região Amazônica, Belém do Pará não poderia, pelo menos na teoria, produzir vozes límpidas e agudas de tão boa qualidade. “Pela umidade, pelo calor, deveriam ser vozes mais robustas, mais graves. O calor mexe com as cordas vocais. E, no entanto, olha a quantidade de grandes tenores e sopranos que temos. De cada dez cantoras, oito são sopranos”, espanta-se o pianista Paulo José Campos de Melo, diretor da Fundação Carlos Gomes, que abriga o conservatório de mesmo nome.
Campos de Melo refere-se, principalmente, às novas estrelas do canto lírico: a soprano Adriane Queiroz, 38 anos, que faz parte do elenco da Staatsoper, a mais importante entre as três casas de ópera de Berlim, e o tenor Atalla Ayan, 25 anos, que hoje mora em Nova York e foi comparado a Plácido Domingo quando jovem pelo crítico Allan Kozinn, do jornal The New York Times. São os nomes mais sonantes e que instigam uma questão óbvia: por que Belém tem uma tradição operística tão enraizada? “A origem vem da época áurea da borracha”, opina o diretor. É esse período de riqueza que possibilitaria, entre outras coisas, a inauguração, em fevereiro de 1878, do Theatro da Paz, um dos mais grandiosos do país. Projetado à semelhança do Teatro alla Scalla, de Milão, ele é reconhecido pela acústica impecável. “O teatro foi construído especialmente para receber o canto lírico”, diz Campos de Melo.
É uma explicação. Há outras. A jornalista e pesquisadora Rose Silveira, autora do livro Histórias Invisíveis do Teatro da Paz, afirma que, além do gênero lírico, o dramático e o cômico passaram a dividir a preferência do público de Belém no século 18. “A mudança ocorreu paulatinamente quando a cidade tornou-se capital do Estado do Grão-Pará e Maranhão e experimentou um primeiro projeto de modernização, promovido pela Coroa Portuguesa a partir de 1750. Era o momento de afirmação política e econômica da metrópole, que gradualmente se tornou uma praça artística atraente para companhias brasileiras e estrangeiras”, explica Rose.
Esses grupos apresentavam-se na Casa da Ópera, chamada também de Teatro Cômico, construída pelo arquiteto bolonhês Antônio José Landi ao lado do jardim do Palácio do Governo. Funcionou de 1780 a 1812. Os espetáculos voltaram a acontecer na década de 1830, abrigados no Teatro Providência, um casarão particular adaptado para essa função, na Praça das Mercês.
Lá eram encenados dramas, comédias, farsas, cenas líricas e jocosas, em sintonia com o que ocorria na corte. Durou pouco. Em 1835, as atividades foram paralisadas por causa da lutas da Cabanagem e voltaram ao normal cinco anos mais tarde. Mas o Providência era muito acanhado. “Era um pardieiro”, diz o historiador Vicente Salles. O teatro sofreu um incêndio nos anos 1870, foi reformado e funcionou até o final da década. Nessa mesma época, outros teatros já estavam em atividade em Belém: Santo Antônio, Chalet, Provisório e o Pavilhão de Recreios.
“O ciclo da borracha é importante, mas achar que a partir daí fez-se a luz não é verdade”, reforça Gilberto Chaves, coordenador do Festival de Ópera e ex-diretor do Theatro da Paz. Na opinião dele, já havia uma tradição de cultura italiana e francesa em Belém. “O Theatro da Paz não saiu pela opulência da sociedade da época e sim por uma necessidade de desenvolvimento social”, acredita. Chaves lembra que essa casa é anterior ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que só foi inaugurado em 1910. O de São Paulo, em 1911. “E o de Manaus, 13 anos depois do Theatro da Paz.”
Ou seja, Belém tinha o que Rio e São Paulo não tinham. Com isso, as companhias vinham diretamente da Europa para a capital paraense. “Esses cantores passavam de três a quatro meses aqui. Alguns até ficavam”, conta Chaves. Um dos que se fixaram na cidade foi Luigi Sarti. Oriundo de uma família italiana de músicos celebrados, acabou se tornando professor do Conservatório Carlos Gomes e spalla da orquestra do conservatório. O regente e compositor Enrico Bernardi é outro exemplo. Veio da Itália para apresentações no Theatro da Paz e não voltou mais para lá.
Tamanha efervescência estimulou o surgimento de novos talentos. No século 19, quatro grandes músicos brasileiros, todos formados na Europa, destacavam-se: Henrique Gurjão; José da Gama Malcher, autor de Bug Jargal, a primeira ópera a ter um personagem negro; Menelau Campos, que chegou a ser diretor do Conservatório Carlos Gomes; e o regente de óperas Paulinho Chaves. E no início do século 20, dois cantores marcaram a história do Theatro da Paz: Helena e Ulysses Nobre, conhecidos como Irmãos Nobre. Aos 14 anos, a soprano Helena era tida como uma grande promessa.
O barítono Ulysses seguia os passos da irmã, até que os dois foram diagnosticados com hanseníase. Mesmo depois de curados, graças a um tratamento feito no Rio de Janeiro, foram proibidos de sair de casa pelo secretário de saúde do Pará. Mas isso não os calou. Em 1931, a Rádio PRC-5 realizou a primeira transmissão de ópera ao vivo via ondas do rádio da casa dos Irmãos Nobre para o Theatro da Paz.
Presença rápida de Carlos Gomes
Quando ia a Belém, Carlos Gomes (1836-1896) era tratado como celebridade. Causou comoção ao morrer, poucos meses depois de se mudar para a cidade para assumir a escola de música que leva seu nome. O conservatório Carlos Gomes é um dos mais importantes polos de formação erudita de Belém. Adriane Queiroz e Atalla Ayan estudaram nele.
A possibilidade de outros talentos surgirem é grande. A soprano Thaina Souza e o tenor Thiago Costa, ambos na casa dos 20 anos, são duas promessas. “Os cantores líricos paraenses são reconhecidos no mundo inteiro”, garante o professor Eduardo Nascimento, ele também um ex-aluno do Carlos Gomes.
Em Belém se diz que o canto está presente no inconsciente coletivo. Atualmente o Festival de Ópera é um dos catalisadores dessa efervescência. É quando músicos convergem para o mesmo ponto. “Todos têm a possibilidade de trabalhar com nomes já consagrados. Alguém que faz parte do coro vê o desempenho de um solista de perto. Imagine o impacto disso. É como um foguete”, compara Gilberto Chaves.