Exame Logo

Após 40 anos, On the Road ganha sua adaptação ao cinema

O livro de Jack Kerouac parece ter nascido para o cinema, mas vários projetos derraparam até Walter Salles assumir a direção e finalmente conseguir levar às telas a trama

Kristen Stewart em cena de Na Estrada. Foram mais de 40 anos até o livro de Kerouac ser adaptado para o cinema (Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 22 de junho de 2012 às 10h50.

São Paulo - Como na piada do estrangeiro perdido em Nova York, On the Road ficou um bom tempo parado na esquina da Walk com a Don´t Walk sem saber que rumo tomar. Escrito por Jack Kerouac, supostamente em três alucinadas semanas de abril de 1951, o manuscrito se manteve quase sete anos estacionado na gaveta do autor norte-americano sem chegar a lugar algum. Quando enfim desatolou e deu a partida, cantando pneus e jogando brita para todo lado, deixou o acostamento e ingressou de vez na freeway do sucesso imediato.

A prosa “espontânea” de Kerouac fez instantaneamente a cabeça de milhões de jovens leitores – primeiro no seu país, depois na Inglaterra e na França e, a seguir, no mundo inteiro, ou pelo menos no mundo ocidental. Lançado em setembro de 1957, o romance sobre três viagens de costa a costa pelos Estados Unidos logo se tornou cult, depois virou um clássico e, em seguida, mito.

Como todo mito, veio carregado de verdades, meias-verdades e algumas mentiras deslavadas – entre elas, a de que a versão publicada fora escrita nas tais três semanas. De todo modo, impôs-se como a pedra angular da então batizada “geração beat”, precursora da contracultura ao prezar valores como a liberdade hedonista e a vida nômade. Menos de uma década mais tarde, o romance iria virar, oh céus, o que alguns resolveram chamar de a “bíblia hippie”.

Escrito em vastas panorâmicas, com frases largas e amplas como as estradas do Oeste norte-americano, sem desvios, sem vírgulas, sem parágrafos e, claro, sem paradas para o xixi, On the Road veio ao mundo já em cinemascope. Ainda assim, Kerouac foi menos influenciado pelo cinema do que se supõe.

A recíproca, porém, não é verdadeira: em meio ao bando de hippies que adotou On the Road como “bíblia”, estavam os sujeitos responsáveis pelo que seria chamado de Nova Hollywood, entre os quais figuravam Martin Scorsese, Bob Rafelson, Hal Ashby e, claro, Peter Fonda e Dennis Hopper. Afinal, é óbvio que Easy Rider/Sem Destino, filme sobre motoqueiros estrelado pelos dois últimos, nem sequer seria concebível antes do advento de On the Road. Dessa turma de cineastas rebeldes, fazia parte ainda Francis Ford Coppola, a quem caberia adquirir os direitos de adaptação do livro para a tela.


Antes disso, Marlon Brando – o pai de todos ou, vá lá, o avô – já havia tomado a dianteira e pensado em botar as palavras de Kerouac a 24 quadros por segundo. Mas uma carta um tanto impertinente que o próprio Kerouac lhe enviou, ainda em 1957 – se escalando para fazer o papel de Sal Paradise, um dos protagonistas da trama, enquanto sugeria que o ator fosse Dean Moriarty, o outro, e dando palpites sobre como rodar o filme (“Vamos instalar uma câmera no banco dianteiro, com a estrada se desenrolando dia e noite à frente do para-brisas”) –, parece ter feito mais mal do que bem.

Brando nem se deu o trabalho de responder. Então, de repente, lá estava a adaptação de On the Road parada na esquina da Walk com a Don´t Walk, vendo o mundo passar. Enquanto o tempo escoava, até o supostamente infilmável Almoço Nu, de William Burroughs – autor também associado ao movimento beat –, vestia-se de celuloide e ia para as telas por mãos e obra de David “o rei da gosma” Cronenberg.

Kerouac morreu, reacionário e barrigudo como um caminhoneiro texano, em outubro de 1969. Dez anos depois, Coppola comprou os direitos cinematográficos. Ele e o filho, Roman, tentaram fazer um roteiro com a ajuda do “beatnólogo” Barry Gifford, mas o motor não pegou. Em meados da década de 1980, Coppola voltou à carga, contratando o doidão Russell Banks para roteirizar o livro e pensando em Joel Schumacher para dirigi-lo, com Ethan Hawke e Brad Pitt nos papéis de Sal e Dean, respectivamente. Nova derrapagem. Em 2001, o poderoso chefão acelerou de novo e chamou Gus Van Sant para a direção, convidando Johnny Depp para ser Sal e Colin Farrell para incorporar Dean. Sabe-se lá como ou por quê, o projeto capotou de vez.

E então, como todo mundo agora está cansado de saber, depois de Coppola ter assistido à exibição de Diários de Motocicleta, de Walter Salles, no festival de Sundance, em janeiro de 2004, eis que On the Road veio dar uma volta no Brasil. Mais do que uma volta: na verdade, fez quase um pit stop. Copolla convidou o cineasta brasileiro para dirigir o clássico de Kerouac e, com roteiro de Jose Rivera (que já fizera o script das aventuras motoqueiras de Che Guevara pelas veias abertas da América Latina), o filme enfim deu a largada e saiu do atoleiro de indecisões no qual havia chafurdado por mais de 40 anos.


Independentemente dos resultados obtidos por Walter Salles – e cabe ressaltar que este escriba ainda não viu o filme (a primeira exibição de Na Estrada para público e imprensa seria no Festival de Cannes, no fim de maio, depois do fechamento desta edição) –, é evidente que sua adaptação cinematográfica jamais poderá atingir os resultados obtidos por Kerouac.

A enxurrada de palavras do escritor, sua prosódia peculiar, as insidiosas rimas internas, as gírias, o coloquialismo franco, as aliterações, o ritmo “bebop” de sua prosa, em suma, todas as rupturas formais deflagradas pelo livro – que, aliás, ajudaram a libertar a literatura norte-americana de certo servilismo a fórmulas europeias ou europeizantes, fazendo-a retomar o legado panteísta de Walt Whitman, e um tanto do inconformismo de Henry David Thoreau, para não falar na revolta messiânica de Herman Melville –, obviamente não podem ser transpostas para a tela. E foram elas que, apesar da mordacidade letal com a qual Truman Capote definiu o estilo de On the Road (“That isn’t writing, it’s typing”, ou “Isso não é literatura, é datilografia”), realmente a tornaram uma obra marcante, e não as viagens (terrestres ou metafóricas) que ela descreve.

De todo modo, o filme enfim está feito. E, sem patriotismo ou patriotadas, dá certo orgulho saber que, após tantas e tamanhas arrancadas em falso, coube a um brasileiro vencer a maldição que parecia pairar sobre On the Road, impedindo-o de acelerar para a amplitude das telas que o livro sempre ambicionou.

O Filme

Na Estrada, de Walter Salles. Com Sam Riley, Garrett Hedlund, Kristen Stewart, Alice Braga, Viggo Mortensen, Kirsten Dunst. Estreia neste mês.

Veja também

São Paulo - Como na piada do estrangeiro perdido em Nova York, On the Road ficou um bom tempo parado na esquina da Walk com a Don´t Walk sem saber que rumo tomar. Escrito por Jack Kerouac, supostamente em três alucinadas semanas de abril de 1951, o manuscrito se manteve quase sete anos estacionado na gaveta do autor norte-americano sem chegar a lugar algum. Quando enfim desatolou e deu a partida, cantando pneus e jogando brita para todo lado, deixou o acostamento e ingressou de vez na freeway do sucesso imediato.

A prosa “espontânea” de Kerouac fez instantaneamente a cabeça de milhões de jovens leitores – primeiro no seu país, depois na Inglaterra e na França e, a seguir, no mundo inteiro, ou pelo menos no mundo ocidental. Lançado em setembro de 1957, o romance sobre três viagens de costa a costa pelos Estados Unidos logo se tornou cult, depois virou um clássico e, em seguida, mito.

Como todo mito, veio carregado de verdades, meias-verdades e algumas mentiras deslavadas – entre elas, a de que a versão publicada fora escrita nas tais três semanas. De todo modo, impôs-se como a pedra angular da então batizada “geração beat”, precursora da contracultura ao prezar valores como a liberdade hedonista e a vida nômade. Menos de uma década mais tarde, o romance iria virar, oh céus, o que alguns resolveram chamar de a “bíblia hippie”.

Escrito em vastas panorâmicas, com frases largas e amplas como as estradas do Oeste norte-americano, sem desvios, sem vírgulas, sem parágrafos e, claro, sem paradas para o xixi, On the Road veio ao mundo já em cinemascope. Ainda assim, Kerouac foi menos influenciado pelo cinema do que se supõe.

A recíproca, porém, não é verdadeira: em meio ao bando de hippies que adotou On the Road como “bíblia”, estavam os sujeitos responsáveis pelo que seria chamado de Nova Hollywood, entre os quais figuravam Martin Scorsese, Bob Rafelson, Hal Ashby e, claro, Peter Fonda e Dennis Hopper. Afinal, é óbvio que Easy Rider/Sem Destino, filme sobre motoqueiros estrelado pelos dois últimos, nem sequer seria concebível antes do advento de On the Road. Dessa turma de cineastas rebeldes, fazia parte ainda Francis Ford Coppola, a quem caberia adquirir os direitos de adaptação do livro para a tela.


Antes disso, Marlon Brando – o pai de todos ou, vá lá, o avô – já havia tomado a dianteira e pensado em botar as palavras de Kerouac a 24 quadros por segundo. Mas uma carta um tanto impertinente que o próprio Kerouac lhe enviou, ainda em 1957 – se escalando para fazer o papel de Sal Paradise, um dos protagonistas da trama, enquanto sugeria que o ator fosse Dean Moriarty, o outro, e dando palpites sobre como rodar o filme (“Vamos instalar uma câmera no banco dianteiro, com a estrada se desenrolando dia e noite à frente do para-brisas”) –, parece ter feito mais mal do que bem.

Brando nem se deu o trabalho de responder. Então, de repente, lá estava a adaptação de On the Road parada na esquina da Walk com a Don´t Walk, vendo o mundo passar. Enquanto o tempo escoava, até o supostamente infilmável Almoço Nu, de William Burroughs – autor também associado ao movimento beat –, vestia-se de celuloide e ia para as telas por mãos e obra de David “o rei da gosma” Cronenberg.

Kerouac morreu, reacionário e barrigudo como um caminhoneiro texano, em outubro de 1969. Dez anos depois, Coppola comprou os direitos cinematográficos. Ele e o filho, Roman, tentaram fazer um roteiro com a ajuda do “beatnólogo” Barry Gifford, mas o motor não pegou. Em meados da década de 1980, Coppola voltou à carga, contratando o doidão Russell Banks para roteirizar o livro e pensando em Joel Schumacher para dirigi-lo, com Ethan Hawke e Brad Pitt nos papéis de Sal e Dean, respectivamente. Nova derrapagem. Em 2001, o poderoso chefão acelerou de novo e chamou Gus Van Sant para a direção, convidando Johnny Depp para ser Sal e Colin Farrell para incorporar Dean. Sabe-se lá como ou por quê, o projeto capotou de vez.

E então, como todo mundo agora está cansado de saber, depois de Coppola ter assistido à exibição de Diários de Motocicleta, de Walter Salles, no festival de Sundance, em janeiro de 2004, eis que On the Road veio dar uma volta no Brasil. Mais do que uma volta: na verdade, fez quase um pit stop. Copolla convidou o cineasta brasileiro para dirigir o clássico de Kerouac e, com roteiro de Jose Rivera (que já fizera o script das aventuras motoqueiras de Che Guevara pelas veias abertas da América Latina), o filme enfim deu a largada e saiu do atoleiro de indecisões no qual havia chafurdado por mais de 40 anos.


Independentemente dos resultados obtidos por Walter Salles – e cabe ressaltar que este escriba ainda não viu o filme (a primeira exibição de Na Estrada para público e imprensa seria no Festival de Cannes, no fim de maio, depois do fechamento desta edição) –, é evidente que sua adaptação cinematográfica jamais poderá atingir os resultados obtidos por Kerouac.

A enxurrada de palavras do escritor, sua prosódia peculiar, as insidiosas rimas internas, as gírias, o coloquialismo franco, as aliterações, o ritmo “bebop” de sua prosa, em suma, todas as rupturas formais deflagradas pelo livro – que, aliás, ajudaram a libertar a literatura norte-americana de certo servilismo a fórmulas europeias ou europeizantes, fazendo-a retomar o legado panteísta de Walt Whitman, e um tanto do inconformismo de Henry David Thoreau, para não falar na revolta messiânica de Herman Melville –, obviamente não podem ser transpostas para a tela. E foram elas que, apesar da mordacidade letal com a qual Truman Capote definiu o estilo de On the Road (“That isn’t writing, it’s typing”, ou “Isso não é literatura, é datilografia”), realmente a tornaram uma obra marcante, e não as viagens (terrestres ou metafóricas) que ela descreve.

De todo modo, o filme enfim está feito. E, sem patriotismo ou patriotadas, dá certo orgulho saber que, após tantas e tamanhas arrancadas em falso, coube a um brasileiro vencer a maldição que parecia pairar sobre On the Road, impedindo-o de acelerar para a amplitude das telas que o livro sempre ambicionou.

O Filme

Na Estrada, de Walter Salles. Com Sam Riley, Garrett Hedlund, Kristen Stewart, Alice Braga, Viggo Mortensen, Kirsten Dunst. Estreia neste mês.

Acompanhe tudo sobre:ArteCinemaEntretenimentoLivros

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se

Mais de Casual

Mais na Exame