Em meio a uma crise criativa, o escritor americano Eddie Morra descobriu a solução para sua vida semifracassada. Um pequeno comprimido chamado NZT, assim que ingerido, fazia seu cérebro trabalhar numa velocidade inimaginável.
Pensando incrivelmente rápido e com poder de dedução elevadíssimo, Morra ingressou no mercado financeiro, fez sucesso, ganhou status e muito, muito dinheiro. Quem se importaria, nessa situação, com efeitos colaterais como apagões?
A premissa é base do roteiro do filme Sem Limites (ou Limitless, seu nome original), com Bradley Cooper no papel de Eddie Morra, que acaba de virar uma série produzida pela CBS, lançada no fim de setembro nos Estados Unidos.
Se a arte imita a vida, muita gente saudável está fazendo cada vez mais uso de medicamentos vendidos em farmácias para turbinar o cérebro. Prescritos originalmente para doenças como déficit de atenção, hiperatividade, epilepsia e até mal de Alzheimer, os remédios podem não ser tão eficientes quanto o NZT, mas podem melhorar a capacidade cognitiva.
Ingerir drogas para esse fim não é exatamente algo novo. O psicanalista Sigmund Freud, por exemplo, incentivava o uso de cocaína como estimulante há mais de um século. No Brasil, já se usava anfetaminas para trabalhar desde a década de 1950. Mas agora esse hábito chegou a outro nível.
A cultura foi retomada com força, na década de 1990, por estudantes americanos que começaram a ingerir metilfenidato e modafinila, princípios ativos de remédios como Ritalina e Modafinil, para estudar mais atentamente e obter notas melhores. Pouco depois, mais substâncias passaram a ser utilizadas por trabalhadores do Vale do Silício e do mercado financeiro americano.
Os números do comércio de medicamentos também mostram o tamanho do crescimento que já tivemos no Brasil. Segundo dados da IMS Health (uma das maiores bases de dados do mundo sobre saúde), o mercado de psicoestimulantes (sendo a Ritalina o principal) cresceu 25% no país entre junho de 2011 e junho de 2015.
Mas o impacto poderia ser ainda maior, uma vez que esses dados só levam em conta o mercado legal e, segundo a Organização Mundial da Saúde, 20% dos remédios vendidos no Brasil são falsificados ou contrabandeados.
Substâncias desse tipo passaram agora, com seu uso por pessoas saudáveis, a ser conhecidas como nootrópicos ou smart drugs. “Do ponto de vista bioquímico, nootrópicos são substâncias distintas entre si. A ideia delas é ativar o sistema nervoso central, mas o fazem de maneiras diferentes”, afirma Gisele Sampaio Silva, gerente-médica do Programa Integrado de Neurologia do Hospital Israelita Albert Einstein.
Na origem do conceito, nootrópicos são drogas que não causam efeitos colaterais e tampouco viciam. Porém, a definição sofreu alterações e hoje os critérios estão longe de ser consensuais – algumas pessoas não consideram remédios psicoestimulantes como a Ritalina um nootrópico, por exemplo.
“O termo ‘vício’ pode ser desmembrado em ‘adição’ e ‘dependência’. A adição é caracterizada pela perda de controle sobre o uso da substância, uso continuado apesar de prejuízo, uso compulsivo e fissura. Dependência é caracterizada por tolerância (necessidade de uso de doses cada vez maiores para ter o mesmo efeito) e abstinência (sintomas colaterais após interrupção do uso).
Essas medicações podem causar adição, mas têm risco menor de causar dependência”, explica Fábio Porto, neurologista do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da USP.
Além disso, os efeitos positivos mostrados em alguns estudos realizados no exterior podem levar a uma falsa ideia de que essas drogas são milagrosas.
“Quando os níveis de dopamina e norepinefrina (neurotransmissores, substâncias químicas que atuam nas sinapses entre os neurônios) estão anormalmente baixos nas regiões cerebrais responsáveis pela melhora do desempenho, o aumento dessas substâncias causado pelos remédios melhora os sintomas de pessoas com transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), por exemplo. Porém, o excesso delas causa reação contrária e provoca sintomas semelhantes à própria doença”, afirma Porto.
Segundo os médicos, outro indicador também pode servir como explicação para as melhorias alcançadas pelas smart drugs. Segundo a IMS Health, a prescrição de remédios para TDAH em pessoas com mais de 20 anos nos Estados Unidos está crescendo numa velocidade maior do que para crianças, o que levanta algumas dúvidas.
“Os medicamentos funcionam em pessoas doentes porque há um mecanismo de ação. Quem sabe os bons resultados em algumas pessoas não sejam por causa de um diagnóstico que não foi feito quando mais jovem?”, afirma Gisele. “É possível que essas pessoas tenham alguma disfunção leve não diagnosticada em que o uso provoque um resultado melhor. Mas em pessoas com o QI médio entre 90 e 140 é muito difícil medir exatamente quanto há de ganho”, completa Porto.
A questão mais complexa, segundo ele, são os efeitos do uso recreativo dessas substâncias em longo prazo, principalmente em adolescentes e adultos jovens, a faixa etária que mais as utiliza para esses fins.
“Isso porque as smart drugs agem sobre uma parte do cérebro mais recente na evolução humana e que só costuma estar totalmente desenvolvida por volta dos 30 anos de idade. Existem estudos que comprovam, por exemplo, que o metilfenidato atrapalha o crescimento em crianças e adolescentes que precisam do medicamento. Esse é o tipo de coisa que só conseguimos ver em pesquisas extensas. Como essas substâncias não estão aprovadas para o uso recreativo, é difícil fazer estudos em longo prazo e muito populosos. Portanto, fica uma dúvida sobre as reações desses medicamentos depois de cinco ou dez anos de uso”, afirma.
João Fabiano Lourenço, filósofo e pesquisador da Universidade de Oxford, discorda. “Existem estudos de qualidade mostrando que o aumento do desempenho cognitivo de pessoas saudáveis com o uso de certas drogas é considerável. Não há muitos estudos dos efeitos em longo prazo, mas isso também é verdadeiro sobre qualquer outro remédio comum”, afirma.
Ainda segundo ele, a verdadeira discussão não é a respeito do risco que se assume, mas a motivação para o uso desse tipo de substância. Enquanto alguns tomam remédio para voltar ao estágio normal de funcionamento, outros querem tomar para obter um nível acima.
Sobre o risco de se ingerir essas substâncias, o pesquisador faz uma comparação com o uso de aspirina para resfriado, em vez de ficar de repouso.
“As pessoas usam esses medicamentos simplesmente porque não querem ficar um dia sequer de cama ou porque não sabem dos efeitos colaterais. Talvez a principal explicação esteja relacionada a quanto a indústria farmacêutica se dispôs a gastar aprovando a droga para determinado uso. Custa em torno de 1 bilhão de dólares conseguir ter uma droga aprovada pela FDA [órgão americano que regulamenta o comércio de alimentos e medicamentos]”, afirma.
Um dos usos mais polêmicos das smart drugs diz respeito a provas e circunstâncias nas quais o nível de desempenho é um diferencial. O questionamento que surge é similar ao que existe hoje no esporte profissional: tomar essas substâncias para passar em um concurso disputado ou se destacar no trabalho pode ser considerado doping?
Os neurologistas Porto e Gisele concordam que sim: a lógica é a mesma do doping. “Acho que essas medicações deveriam ser proibidas para esse uso por questões éticas”, afirma Porto. Alguns vão mais longe e falam inclusive de um futuro em que, antes das avaliações, seja feito um exame antidoping intelectual.
“O objetivo de um exame é avaliar se o individuo sabe ou não determinado conteúdo ou se é capaz de raciocinar logicamente. Se ele faz isso com a ajuda de uma droga, me parece irrelevante”, discorda Lourenço. “Mesmo no esporte o uso de melhoramentos já é tão universal que seria mais honesto admiti-lo entre as regras. A tendência é que os testes antidoping desapareçam dos esportes. Introduzi-los em provas e concursos me parece sem sentido.”
O que parece ser consenso é que, independentemente de se tratar de substâncias controladas ou não, todo medicamento deve ser usado com cautela.
“Boa parte do risco associado à nicotina, por exemplo, surge do fato de que por muito tempo seu uso na forma do cigarro era inclusive encorajado. A cultura que se constrói ao redor da substância influencia muito. Seria mais razoável chamar também a cafeína e a nicotina de drogas e pregar um uso mais cuidadoso e racional de todas essas substâncias”, conclui Lourenço.
Os medicamentos mais usados por quem quer turbinar o cérebro, para que foram criados e seus efeitos colaterais
É a droga sobre a qual mais se pesquisou os efeitos em pessoas saudáveis – é aprovada no Brasil para uso de alguns profissionais noturnos, como médicos.
Serve para quê? Narcolepsia e sonolência diurna por apneia do sono.
Usada por indivíduos saudáveis para: aumentar a atenção e a concentração e facilitar a memória verbal e numérica.
Efeitos colaterais: aumento de pressão, alteração na função cardíaca, perda de sono e perda de apetite.
Disponibilidade no Brasil: sob prescrição médica (receita amarela).
Tem ação similar à Ritalina, mas mais forte. Aqui, não é muito usado para tratar doenças e, portanto, é de difícil acesso.
Serve para quê? TDAH.
Usada por indivíduos saudáveis para: aumentar a atenção e a concentração melhorando a vigília, facilitar a memória de trabalho e o aprendizado.
Efeitos colaterais: ansiedade, impulsividade, arritmia, insônia, diminuição do nível de crescimento (em pessoas doentes) e tem potencial de abuso.
Disponibilidade no Brasil: sob prescrição médica (receita amarela).
Um dos nootrópicos mais consumidos (o uso da Ritalina aumentou 775% no Brasil em 10 anos), é análoga das anfetaminas.
Serve para quê? Déficit de atenção, hiperatividade e narcolepsia.
Usada por indivíduos saudáveis para: melhorar a atenção e a concentração deixando a pessoa mais vigilante, facilitar a memória de trabalho e o aprendizado.
Efeitos colaterais: pressão alta, arritmia, perda de sono e apetite e diminuição do nível de crescimento (em doentes).
Disponibilidade no Brasil: sob prescrição médica (receita amarela).
Um dos primeiros nootrópicos sintetizados nos anos 1960. Deu origem ao termo, mas hoje tem similares mais eficientes. Faz parte da família dos racetams (usados no tratamento de doenças neurológicas).
Serve para quê? Epilepsia e vítimas de AVC.
Usada por indivíduos saudáveis para: aumento da atenção e da memória de longo prazo e facilidade de aprendizado.
Efeitos colaterais: causa sonolência e ganho de peso.
Disponibilidade no Brasil: sob prescrição médica (receita branca/comum).
"Comecei a usar nootrópicos com o objetivo de terminar um projeto longo de um sistema. Depois de assistir ao filme Sem Limites, tinha em mente que se eu procrastinasse menos, tivesse uma capacidade maior de concentração e mais tempo durante o dia, iria conseguir terminar o trabalho bem antes do prazo. Foi aí que descobri essas substâncias.
Durante um mês, revirei a internet em busca do que poderia tomar para atingir meu objetivo. Sabendo que não poderia usar drogas como Ritalina durante meses por causa dos efeitos colaterais, montei meu primeiro combo e durante cerca de seis semanas usei Piracetam, Colina, L-Theanina, alta concentração de cafeína, ginseng, guaraná em pó, alpha GPC, 5-HTP, Inositol, ômega 3, ômega 6 e DMAE.
O resultado? Longos períodos de concentração e motivação para escrever milhares de linhas de código e adiantar muito minhas tarefas. Seis horas de sono por dia eram o bastante e, como conseguia trabalhar sem parar, ainda sobrava tempo para atividades sociais. Ao longo dos meses fui modificando e fazendo ciclos com as substâncias de acordo com minhas necessidades. Consegui terminar o projeto em seis meses antes do prazo final. Recebi muitos elogios e dinheiro extra."
"Meu primeiro contato com smart drugs foi em 2005, com a modafinila. Nessa época, trabalhava ao menos 14 horas por dia e dormia menos de cinco horas por noite - muitas vezes nem dormia. Mas não me sentia cansado, ao contrário: minha produtividade era cada vez maior e o dinheiro compensava qualquer receio de que isso afetasse minha saúde.
Durante seis anos, consumi a modafinila com semirregularidade e sem nenhum acompanhamento médico. Em 2011, já morando na Europa, comecei a consultar um psiquiatra especializado em déficit de atenção em adultos. A partir disso, comecei a me medicar com metilfenidato - primeiro com a Ritalina, depois com o Concerta e ultimamente com ambos - e posso dizer que minha vida mudou completamente depois desse passo: as ideias fluíam com clareza e os projetos começaram a ser executados no prazo.
Daí em diante, os negócios prosperaram como nunca - e com a estabilidade que eu não tinha quando consumia a modafinila de forma irregular. Hoje sou presidente de uma empresa financeira e de uma startup de biotecnologia e ainda sobra tempo para ter vida social e me exercitar com regularidade. Seria muito difícil fazer tudo isso com eficiência sem um boost químico."
"Eu tomei minha primeira smart drug há uns nove anos e, de uns quatro pra cá, isso se tornou um hobby. Sem contar cafeína, tomo algum tipo de smart drug de cinco a seis dias por semana. Não tomo todo o tipo de drogas, apenas aquelas que sinto que terei a relação correta entre risco e recompensa: baixo risco, alta recompensa, que é basicamente a mesma regra que uso para tomar todas minhas decisões da vida, incluindo o que comer no café da manhã.
`Droga' é uma palavra assustadora para muitas pessoas. Mas o fato é que drogas podem, sim, aumentar a capacidade cognitiva das pessoas, isso não é uma questão em aberto. A questão não é se elas funcionam, mas sim quais são os riscos associados, e isso varia de droga para droga.
Nós vivemos em um sistema tecnológico que requer computadores e satélites para as pessoas serem produtivas. Todos parecem ok com essa realidade. Smart drugs são apenas outra forma de tecnologia para potencializar nossa biologia básica. Não acho que é algo que possa ser interrompido, nem que nós quiséssemos."