GLENNY, NA FLIP: “Eu queria mostrar para o exterior um Brasil que estivesse além do samba, carnaval e futebol” / Tomaz Silva/Agência Brasil
Da Redação
Publicado em 3 de julho de 2016 às 09h33.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h11.
O jornalista britânico Misha Glenny, autor do lançamento O Dono do Morro: um homem e a batalha pelo Rio, veio à Festa Literária Internacional de Paraty para falar de um Rio de Janeiro em ruínas. O enredo está centrado na história de Nem, o traficante Antônio Bonfim Lopes, e, para escrever sua história, o escritor passou três meses morando na favela da Rocinha e reuniu cerca de 48 horas de conversa com o personagem na cadeia, em Campo Grande. “Eu queria mostrar para o exterior um Brasil que estivesse além do samba, carnaval e futebol. E eu descobri que Nem é o elo perfeito entre os dois mundos”, diz Glenny.
Nem está preso desde 2011, um ano após a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora na cidade do Rio. O modelo durou pouco. Cinco anos após sua implantação, as UPPs chegaram ao ponto de colapso, num estado que decretou calamidade pública por falta de verba. Em pleno ano de Olimpíadas, o Rio de Janeiro volta a expor um cenário profundamente violento e desigual, com uma política pacificadora falida. Em seu livro, o jornalista Misha Glenny investigou a importância que Nem teve para o crescimento econômico e social da favela da Rocinha — e como seu afastamento desmantelou um robusto (e ilegal) programa de bem estar social. A seguir, algumas das principais observações de Glenny.
O começo de tudo
Antônio Bonfim Lopes começou tarde no tráfico, aos 24 anos. Era considerado um “cidadão de bem” pela família e pelos amigos. Era casado, já tinha uma filha pequena – e foi justamente quando descobriram que ela tinha uma doença crônica que o pai entrou para o mundo das drogas. Ele trabalhava antes como revisteiro da Revistanet e tinha construído uma rede importante de distribuição. Um talento fundamental para o tráfico. Nem conseguia olhar para uma pilha de cocaína em cima da mesa e visualizar o máximo de lucro que aquele pó poderia trazer se fosse distribuído corretamente. Com uma rede forte e capilarizada por vários pontos do Rio, explodiu o retorno financeiro com a droga. Assumiu a liderança da favela em 2005, aos 29 anos.
O “mandato” de Nem
Nem era idolatrado dentro da Rocinha, por atuar como uma espécie de Robin Hood. O dono do morro não é só chefe do tráfico, ele é o presidente da favela. E nem criou um programa de bem estar social dentro da favela, distribuindo os lucros entre o povo. Isso foi muito inteligente da parte dele, porque ele entendeu que, melhorando a qualidade de vida da população e reduzindo a violência dentro da favela, aumentaria também os lucros do tráfico. Foi sob sua liderança que a Rocinha se tornou um lugar que as elites do Rio de Janeiro queriam frequentar. No Barcelos, a parte baixa da favela, a economia era muito viva. Havia bancos, shoppings e bares. Baladas como o Clube Emoções atraíam gente de São Conrado, de Ipanema e da Zona Sul de modo geral. E isso trazia muito dinheiro para a favela e fazia circular a cocaína. A Rocinha era considerada um lugar seguro e se tornou um ótimo local para fazer política, com artistas e políticos garantindo belas fotos para o portfólio.
O tráfico dentro da favela
O Rio de Janeiro se tornou um ponto de venda de drogas quando a Colômbia começou a exportar cocaína para a Europa, no início dos anos 1980. O Brasil era o local de passagem e o Rio tinha uma geografia muito propícia para o comércio ilegal, que favorecia a divisão de facções. Em 1982, o Rio tinha uma taxa de homicídios semelhante à de Nova York, mas, em 1989, já era três vezes maior. Estabeleceu-se uma verdadeira guerra entre facções e Nem percebeu que essa violência era danosa para o tráfico. Ele era um político e atuava em duas frentes principais: a corrupção da política e o apoio da comunidade. Ele nunca falava ao telefone – apenas com policiais, e tinha um aparelho diferente para cada uma de suas fontes. Conseguiu se manter intocável por muito tempo, mas, em 2011, quando foi preso, já era o traficante mais procurado do Rio de Janeiro.
A polícia pacificadora
Quando José Mariano Beltrame, secretário de segurança do Rio, decidiu iniciar o projeto das UPPs, ele tinha entendido que a violência tomava conta dos locais onde havia ausência do estado. Foi muito corajoso e, em 2007, quando Sérgio Cabral assumiu o governo, ele encontrou espaço para avançar nessa área. O programa, iniciado em janeiro de 2010, tinha duas vertentes: a policial e a social. Essa divisão acabou não se sustentando na prática e, com frequentes cortes no orçamento, ficou inviável manter o programa como ele havia sido idealizado. O caso do Amarildo [ajudante de pedreiro que desapareceu em 2013 após ter sido visto pela última vez sendo levado por policiais da unidade pacificadora] quase quebrou a UPP e mostrou como ela é frágil.
A falência do modelo e a crise no Rio
Hoje, são cada vez mais frequentes os casos de abuso policial dentro das favelas e os tiroteios. Há uma guerra em curso. Com as UPPs, as taxas de homicídio caíram, mas crimes como assaltos e estupros aumentaram. A política de criminalizar as drogas só favorece o tráfico e a guerra nos morros. Discutir a legalização da maconha é um avanço, sem dúvidas, mas também não vai resolver o problema. O próprio Nem falava que maconha era um pé no saco do tráfico: pesa demais, não dá muito dinheiro e ainda cheira demais. O Brasil precisa avançar nas discussões sobre política de drogas. A UPP está em colapso e só deve durar até os Jogos Olímpicos.
(Camila Almeida, de Paraty)