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Estereótipos impedem que mulheres com autismo se revelem

Acreditava-se que o autismo afetava mais os homens, uma teoria que já foi refutada, mas cujo legado permanece como um efeito devastador em mulheres com a doença

Professora mostra uma figura para a aluna autista em uma escola de Paris (©AFP/Arquivo / Joel Saget)
DR

Da Redação

Publicado em 5 de maio de 2016 às 21h54.

Antes acreditava-se que o autismo afetava muito mais homens do que mulheres — uma teoria que já foi refutada, mas cujo legado permanece como um efeito devastador em mulheres com a doença.

Kay Locke, de 50 anos, que vive em Stockport, cidade na área metropolitana de Manchester, na Inglaterra, esperou 41 anos pelo diagnóstico que, finalmente, permitiria que ela se aceitasse como era.

“Costumava pensar que havia algo socialmente inaceitável a meu respeito”, explicou.

“As pessoas não gostavam de mim, embora eu fizesse de tudo para ser agradável. Eu sempre os irritava de alguma maneira, e depois nunca os via outra vez. Eu realmente queria ser sociável, mas apenas não sabia como.”

Durante essas quatro décadas, Locke teve dificuldades para manter amizades, porque não conseguia se encaixar nas expectativas da sociedade quanto à maneira que uma mulher deve se comportar e sentir.

“Sentia pressão para ser — por falta de uma expressão melhor — ‘normal’”, afirmou.

“É diferente para os homens. Meu pai era muito peculiar, e as pessoas gostavam do fato de ele ser estranho, mal-humorado e complicado — em minha experiência, isso é mais aceitável para um homem do que para uma mulher.”

“Quando eu era mais jovem, provavelmente era um certo pesadelo”, lembra Locke. “Dizia coisas que podiam soar muito inapropriadas ou impensadas.”

Ela teve dificuldades na escola, onde os professores a rotulavam de “criança maçante” que “não conseguia aprender” (apesar de Locke ter seguido em frente e hoje tem vários diplomas de mestrado, além de ter fundado seu próprio negócio, Yoga2Calm). Ela era terrivelmente assediada e, muita vezes, perdia o almoço porque no caminho ao refeitório poderia ter de enfrentar uma situação com a qual não saberia lidar.

Locke desenvolveu estratégias para poder ser “aprovada” em situações sociais.

“Tento evitar conversa fiada”, explicou. “Se alguém perguntar: ‘Como vai?’, vou pensar que realmente é uma pergunta muito abrangente e não vou saber como responder.”

“Mas aprendi a dizer: ‘Ah, estou bem. Como vai?’. Isso pode soar apenas como uma pequena estratégia, mas, para mim, saber o que fazer nessa situação é realmente algo importante.”

No entanto, apesar de Locke ter aprendido a navegar nas interações sociais, isso não quer dizer que tenham se tornado mais fáceis para ela.

“Quando tenho de lidar com uma situação social, posso ficar muito mal do estômago e ficar doente”, diz. “É minha ansiedade tirando o que tenho de melhor. Aprendi a apenas aceitar isso como parte da minha vida.”

É por isso que, depois de anos sentindo que havia “algo de errado” com ela, ser diagnosticada com o espectro autista foi um “absoluto alívio”.

“Olhando para trás, era óbvio”, afirma.

“Agora sei que não podia funcionar na sala de aula porque estava sobrecarregada, e aquilo me deixava muito ansiosa. Estava sempre pronta para brigar ou fugir, mas ninguém nunca percebeu isso, apenas me rotulavam como ‘estúpida’.”

“Tinha vários sintomas de uma menina e de uma mulher jovem que eram simplesmente ignorados.”

“Na verdade, dá vontade de dar risada, tiraram minhas amígdalas quando tinha 21 anos porque pensaram que eu não ficaria mais doente. Ninguém nunca pensou que os sintomas que eu apresentava repetidamente eram causados por ansiedade.”

Locke não está sozinha, de acordo com Carol Povey, diretora do Centro para Autismo da Sociedade Nacional Autística (NAS). Muitas mulheres com espectro autista passam anos vivendo sem um diagnóstico.

“Muitas vezes vemos mulheres que são diagnosticadas com mais idade porque receberam o diagnóstico errado de transtornos alimentar, bipolar ou de personalidade, quando os médicos foram incapazes de perceber os sinais da síndrome de Asperger”, explica Povey, acrescentando que o Centro para Autismo NAS Lorna Wing é especializado em diagnosticar mulheres que receberam o diagnóstico errado quando eram mais jovens. “Mas ainda há um longo caminho a percorrer”, diz.

Ainda existem milhares de mulheres e meninas sem o diagnóstico correto que estão em busca de apoio, mas sem saber a onde recorrer.

E de alguma forma Locke podia estar esperando seu diagnóstico, mas o resultado surpreendeu muitos de seus amigos e conhecidos, que não acreditavam que ela apresentava todos os traços “necessários” para ter autismo. Mesmo agora, muitas vezes, dizem a ela: “Você não parece ou age como se tivesse autismo”.

Mas, como Locke sabe muito bem, pessoas com autismo não possuem uma única maneira de agir.

Locke e o marido, Martin, têm duas filhas: Natasha, de 24 anos, e Olivia, de 15. Ambas foram diagnosticadas com o espectro autista.

Como todas as crianças, as irmãs são muito diferentes e suas experiências de autismo são também muito diversas.

“Todas temos autismo, mas expressamos [a síndrome] de forma diferente”, Locke explicou.

“O autismo de qualquer pessoa é diferente, já que nossa aparência é diferente, nossos cérebros são diferentes, a forma como amadurecemos é diferente, assim como a forma de lidar é diferente.”

Fiona O’Leary, de 44 anos, de West Cork, na Irlanda, concorda.

“Se você encontrar uma pessoa com o espectro”, explica, essa pessoa será única.

“Existem traços comuns, mas são apresentados de forma diferente, a personalidade desempenha um grande papel também.”

O’Leary, que é fundadora da organização não governamental Autistic Rights Together, tem cinco filhos com o marido, Tim: Dillon, de 23 anos, Vito, de 11, os gêmeos Romy e Sienna, de 8, e Phoebe, de 6.

Dillon e Vito foram diagnosticados com o espectro autista.

“Meu filho mais velho é muito sociável e extrovertido, enquanto que para o mais jovem as interações sociais são mais desafiadoras, um pouco mais como no meu caso, acredito”, explicou.

“A interação social para mim é certamente o assunto mais complexo de estar no espectro.”

Como Locke, O’Leary só foi diagnosticada por volta dos 40 anos, depois que seus filhos receberam o diagnóstico.

“Recebi minhas anotações do hospital há alguns anos e foi chocante lê-las, porque era óbvio que eu era autista desde pequena”, disse.

Ela cita traços como evitar olhar nos olhos das pessoas, problemas de interação social, “tudo foi anotado, mas ninguém considerou que eu poderia ser autista e acredito que em parte foi porque eu era mulher”.

“Quando eu era mais jovem, tinha ansiedade e transtorno alimentar, ambos traços comuns de mulheres no espectro”, diz O’Leary, destacando que os sintomas não levaram a um diagnóstico correto.

“Recebi o diagnóstico errado e me deram medicação —tranquilizantes para ansiedade — aos 16 anos. São medicamentos pesados com efeitos colaterais, não me ajudaram porque não eram o que precisava. Foi como se tivessem me engessado.”

“Receber o diagnóstico aos 42 anos foi muito importante para mim, porque passei a maior parte de minha vida me martirizando. Era muito crítica em relação a mim mesma. Não sabia quem eu era, e é uma maneira terrível de se viver. Desenvolvi anorexia quando era adolescente quase como uma maneira de lidar com a confusão.”

“Mas o diagnóstico explicou muito por que sou da maneira que sou e me amo muito mais agora.”

“Quando era jovem, assim como muitas garotas, era muito consciente sobre mim mesma”, acrescentou O’Leary. “Que é uma boa característica, mas uma faca de dois gumes, porque significa que sabemos que somos diferentes e fazemos de tudo para nos encaixarmos, para imitar.”

“Também internalizamos nossos sentimentos, o que para mim causava vários sintomas físicos, como dor de estômago e desmaios.”

“Aprendi a ficar quieta e a não reclamar, porque é o que as mulheres fazem. Então se eu estivesse em uma situação estressante, nunca diria a ninguém que estava me sentindo ansiosa, apenas sofria.”

“Tentar agradar outras pessoas a todo momento é exaustivo, e é como me sentia, sendo a Fiona antes do diagnóstico.”

“Como mulheres, nos esforçamos tanto para agradar os outros — para nos encaixarmos nas caixas que eles querem que nos encaixemos — que negligenciamos a nós mesmas e negligenciamos nossa saúde mental, e acho que isso é realmente muito triste, mas é a realidade.”

As mulheres que desenvolveram a capacidade de “mascarar” ou esconder os sinais de que estão no espectro autista podem, por fora, parecer mais integradas na sociedade, mas, como O’Leary afirma, o esforço tem um preço.

Segundo Povey, mascarar os sentimentos pode ser parcialmente responsável pela alta incidência de ansiedade e transtornos alimentares entre mulheres no espectro.

“Mascarar a si mesma pode ser muito cansativo e estressante”, diz. “E muitas vezes isso está relacionado com o desenvolvimento de problemas secundários como ansiedade, transtornos alimentares ou depressão, bem como o aumento das chances de um diagnóstico errado.”

Alis Rowe, de 27 anos, de Londres, foi diagnosticada com a síndrome de Asperger há cinco anos. Ela passou muito tempo de sua formação escolar mascarando seu comportamento natural.

“Ninguém deveria fingir ser o que não é”, diz Rowe.

“Até terminar a universidade, sempre tentei me encaixar. Fazia coisas que não queria fazer, porque pensava que eram as coisas que deveria estar fazendo.”

“No entanto, quando você percebe que não faz parte do ‘mainstream’ [do que é convencional], percebe que as coisas convencionais não vão funcionar para você.”

“Na verdade, os conselhos que as pessoas costumavam me dar, para ‘me esforçar’ e ‘sair da minha zona de conforto’, no final me deixavam muito pior e provavelmente causaram minha depressão”, continua Rowe.

“Eu sei quem sou. Sempre fui muito feliz em casa, onde tinha permissão para ser eu mesma e fazer minhas próprias coisas.”

“Foi apenas quando estava com outros da minha idade que me sentia estranha, anormal, inferior e diferente.”

“Não me enquadro no que a sociedade define como uma mulher deve ser. Quando você é mais jovem, isso pode fazer você duvidar de sua própria identidade, de sua sexualidade.”

“Mascarar é algo muito fácil de se fazer, você apenas copia os outros, e funciona quando você é mais jovem, já que as interações sociais são simples. Mas, assim que você atinge a adolescência e adquire uma maior consciência de si próprio e dos outros, começa a desmoronar.”

Rowe é fundadora do The Curly Hair Project, um empreendimento social dedicado a apoiar mulheres e meninas no espectro, o que a colocou em contato com milhares de outras mulheres com experiências semelhantes às suas. O projeto a levou a acreditar que o autismo pode estar subdiagnosticado entre as mulheres.

Povey, da NAS, concorda que as estimativas sobre o número de mulheres no espectro autista são difíceis de calcular.

“Não há forma de saber a verdadeira discrepância entre o número de homens e mulheres autistas; as taxas de prevalência variam muito entre proporções de 2-1 para 6-1”, explicou.

“Anteriormente, acreditava-se que o autismo afetava muito mais homens do que mulheres, enquanto, mais recentemente, avalia-se que a discrepância nos diagnósticos pode ser devido [ao fato] de que as mulheres são melhores em mascarar os clássicos sintomas do autismo e apresentá-los de maneiras diferentes, tornando a identificação mais difícil para médicos e pais.”

“Pesquisas anteriores sobre o autismo se concentraram muito mais em homens, significando que a forma pela qual entendemos a doença, culturalmente e clinicamente, tende a ser baseada em experiências e comportamentos de homens e meninos.”

“Isso reforça a narrativa muito masculina do autismo, que tem moldado os critérios usados para diagnosticar o autismo, o tipo de apoio disponível para as pessoas e a percepção pública sobre o que é o autismo.”

Neste ciclo perpétuo, que poderia ser visto como uma forma de discriminação estrutural não intencional, muitas mulheres e meninas passam a vida sem um diagnóstico ou recebem o diagnóstico errado e ficam sem apoio, o que poderia fazer uma enorme diferença em suas vidas.

Nicky Clark, de anos 49, de Shropshire, na Inglaterra, passou por isso. Clark e suas duas filhas foram diagnosticadas com o espectro autista. Mas o diagnóstico dela e de sua filha mais velha não foi nada simples.

“Diagnosticar o espectro autista é mais difícil entre meninas, porque muitas vezes somos condicionadas a apresentar uma máscara”, disse.

“É como se você fosse um cisne deslizando na superfície da água, mas furiosamente dissimulando por baixo.”

“O estresse de esconder todo aquele fingimento, para não perturbar as pessoas, deve ter um papel no motivo pelo qual há uma alta incidência de transtornos alimentares e ansiedade em mulheres com o espectro autista.”

Lizzy, de 21 anos, a filha mais velha de Clark, foi diagnosticada aos 11 anos, depois de um processo de 18 meses de avaliação — durante o qual ela recebeu o diagnóstico equivocado de déficit de atenção/hiperatividade e o remédio Ritalin.

Sua filha mais nova, Emily, agora com 18 anos, foi diagnosticada aos 3 anos. O processo no caso dela foi mais fácil, e Clark acredita que seja porque ela apresentou mais sinais típicos do espetro autista — não olhava nos olhos das pessoas, não conversava e parecia estar ausente.

Ter duas filhas diagnosticadas em idades diferentes significa que Clark tem experiência em notar a diferença que o diagnóstico precoce pode fazer em termos de apoio disponível para uma criança.

“É absolutamente crítico”, disse. “Lizzy não teve apoio, mas o diagnóstico de Emily significou que ela foi capaz de conseguir apoio, primeiro na educação convencional, e depois com um especialista em casa.”

Clark, por sua vez, apenas foi diagnosticada em outubro de 2015. Ela notou que as pessoas ficam muitas vezes “surpresas” ao saber que ela se encontra no espectro autista, porque sua carreira como defensora dos direitos de pessoas portadoras de deficiência e escritora com blogs no The Huffington Post do Reino Unido e artigos publicados nos jornais The Guardian e Independent não se enquadra na visão delas do que uma pessoa com autismo pode conseguir.

“As pessoas dizem: ‘Você não pode ser autista, você é muito criativa’”, diz. “Mas, na verdade, a escola de teatro foi maravilhosa para mim, porque, depois de anos mascarando, estava bem preparada para atuar — como se eu tivesse sido várias pessoas diferentes, em vez de ser eu mesma, toda minha vida.”

Um motivo pelo qual Clark sente que tinha de esconder muito de sua verdadeira personalidade foi devido ao padrão tendencioso sobre as expectativas do que é um comportamento aceitável para um homem e uma mulher.

“Realmente acho que sou vista como ‘difícil’ devido à maneira pela qual reajo às coisas”, explicou. “Nunca foi minha intenção causar problemas, mas um pouco do meu comportamento era visto como agressivo, enquanto que, se fosse um homem, teria sido considerado assertivo. Quando, na verdade, eu não estava fazendo nada mais do que dizer ‘aqui estou’. Isto é o que sou.”

Clark admite que “tremeu” quando revelou publicamente seu diagnóstico.

“As pessoas me chamavam de corajosa, o que possivelmente destaca o perigo que parece existir para uma mulher com espectro autista”, disse.

“Mas senti que tinha de divulgar meu diagnóstico porque, de outra forma, estaria negando esta parte de mim e também uma parte das minhas filhas.”

Depois de passar anos mascarando suas verdadeiras identidades, Clark, Locke, O’Leary e Rowe acreditam que é de vital importância que as mulheres com autismo parem de negar quem são.

Locke diz que decidiu falar sobre seu espectro autista porque sentiu que era importante “levantar e entrar na contagem” e dizer “nós existimos”.

“Minha grande esperança é diminuir o medo que as mulheres sentem em admitir que têm autismo”, disse. “Porque a pior coisa é sofrer e não receber nenhuma ajuda.”

O’Leary acrescentou: “Esta é a razão pela qual precisamos mais do que a conscientização sobre o autismo; precisamos de aceitação”.

“Quando a sociedade como um todo aceitar as mulheres com autismo como elas são, então todas poderemos ser nós mesmas. Podemos ter orgulho de ser autistas.”

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Antes acreditava-se que o autismo afetava muito mais homens do que mulheres — uma teoria que já foi refutada, mas cujo legado permanece como um efeito devastador em mulheres com a doença.

Kay Locke, de 50 anos, que vive em Stockport, cidade na área metropolitana de Manchester, na Inglaterra, esperou 41 anos pelo diagnóstico que, finalmente, permitiria que ela se aceitasse como era.

“Costumava pensar que havia algo socialmente inaceitável a meu respeito”, explicou.

“As pessoas não gostavam de mim, embora eu fizesse de tudo para ser agradável. Eu sempre os irritava de alguma maneira, e depois nunca os via outra vez. Eu realmente queria ser sociável, mas apenas não sabia como.”

Durante essas quatro décadas, Locke teve dificuldades para manter amizades, porque não conseguia se encaixar nas expectativas da sociedade quanto à maneira que uma mulher deve se comportar e sentir.

“Sentia pressão para ser — por falta de uma expressão melhor — ‘normal’”, afirmou.

“É diferente para os homens. Meu pai era muito peculiar, e as pessoas gostavam do fato de ele ser estranho, mal-humorado e complicado — em minha experiência, isso é mais aceitável para um homem do que para uma mulher.”

“Quando eu era mais jovem, provavelmente era um certo pesadelo”, lembra Locke. “Dizia coisas que podiam soar muito inapropriadas ou impensadas.”

Ela teve dificuldades na escola, onde os professores a rotulavam de “criança maçante” que “não conseguia aprender” (apesar de Locke ter seguido em frente e hoje tem vários diplomas de mestrado, além de ter fundado seu próprio negócio, Yoga2Calm). Ela era terrivelmente assediada e, muita vezes, perdia o almoço porque no caminho ao refeitório poderia ter de enfrentar uma situação com a qual não saberia lidar.

Locke desenvolveu estratégias para poder ser “aprovada” em situações sociais.

“Tento evitar conversa fiada”, explicou. “Se alguém perguntar: ‘Como vai?’, vou pensar que realmente é uma pergunta muito abrangente e não vou saber como responder.”

“Mas aprendi a dizer: ‘Ah, estou bem. Como vai?’. Isso pode soar apenas como uma pequena estratégia, mas, para mim, saber o que fazer nessa situação é realmente algo importante.”

No entanto, apesar de Locke ter aprendido a navegar nas interações sociais, isso não quer dizer que tenham se tornado mais fáceis para ela.

“Quando tenho de lidar com uma situação social, posso ficar muito mal do estômago e ficar doente”, diz. “É minha ansiedade tirando o que tenho de melhor. Aprendi a apenas aceitar isso como parte da minha vida.”

É por isso que, depois de anos sentindo que havia “algo de errado” com ela, ser diagnosticada com o espectro autista foi um “absoluto alívio”.

“Olhando para trás, era óbvio”, afirma.

“Agora sei que não podia funcionar na sala de aula porque estava sobrecarregada, e aquilo me deixava muito ansiosa. Estava sempre pronta para brigar ou fugir, mas ninguém nunca percebeu isso, apenas me rotulavam como ‘estúpida’.”

“Tinha vários sintomas de uma menina e de uma mulher jovem que eram simplesmente ignorados.”

“Na verdade, dá vontade de dar risada, tiraram minhas amígdalas quando tinha 21 anos porque pensaram que eu não ficaria mais doente. Ninguém nunca pensou que os sintomas que eu apresentava repetidamente eram causados por ansiedade.”

Locke não está sozinha, de acordo com Carol Povey, diretora do Centro para Autismo da Sociedade Nacional Autística (NAS). Muitas mulheres com espectro autista passam anos vivendo sem um diagnóstico.

“Muitas vezes vemos mulheres que são diagnosticadas com mais idade porque receberam o diagnóstico errado de transtornos alimentar, bipolar ou de personalidade, quando os médicos foram incapazes de perceber os sinais da síndrome de Asperger”, explica Povey, acrescentando que o Centro para Autismo NAS Lorna Wing é especializado em diagnosticar mulheres que receberam o diagnóstico errado quando eram mais jovens. “Mas ainda há um longo caminho a percorrer”, diz.

Ainda existem milhares de mulheres e meninas sem o diagnóstico correto que estão em busca de apoio, mas sem saber a onde recorrer.

E de alguma forma Locke podia estar esperando seu diagnóstico, mas o resultado surpreendeu muitos de seus amigos e conhecidos, que não acreditavam que ela apresentava todos os traços “necessários” para ter autismo. Mesmo agora, muitas vezes, dizem a ela: “Você não parece ou age como se tivesse autismo”.

Mas, como Locke sabe muito bem, pessoas com autismo não possuem uma única maneira de agir.

Locke e o marido, Martin, têm duas filhas: Natasha, de 24 anos, e Olivia, de 15. Ambas foram diagnosticadas com o espectro autista.

Como todas as crianças, as irmãs são muito diferentes e suas experiências de autismo são também muito diversas.

“Todas temos autismo, mas expressamos [a síndrome] de forma diferente”, Locke explicou.

“O autismo de qualquer pessoa é diferente, já que nossa aparência é diferente, nossos cérebros são diferentes, a forma como amadurecemos é diferente, assim como a forma de lidar é diferente.”

Fiona O’Leary, de 44 anos, de West Cork, na Irlanda, concorda.

“Se você encontrar uma pessoa com o espectro”, explica, essa pessoa será única.

“Existem traços comuns, mas são apresentados de forma diferente, a personalidade desempenha um grande papel também.”

O’Leary, que é fundadora da organização não governamental Autistic Rights Together, tem cinco filhos com o marido, Tim: Dillon, de 23 anos, Vito, de 11, os gêmeos Romy e Sienna, de 8, e Phoebe, de 6.

Dillon e Vito foram diagnosticados com o espectro autista.

“Meu filho mais velho é muito sociável e extrovertido, enquanto que para o mais jovem as interações sociais são mais desafiadoras, um pouco mais como no meu caso, acredito”, explicou.

“A interação social para mim é certamente o assunto mais complexo de estar no espectro.”

Como Locke, O’Leary só foi diagnosticada por volta dos 40 anos, depois que seus filhos receberam o diagnóstico.

“Recebi minhas anotações do hospital há alguns anos e foi chocante lê-las, porque era óbvio que eu era autista desde pequena”, disse.

Ela cita traços como evitar olhar nos olhos das pessoas, problemas de interação social, “tudo foi anotado, mas ninguém considerou que eu poderia ser autista e acredito que em parte foi porque eu era mulher”.

“Quando eu era mais jovem, tinha ansiedade e transtorno alimentar, ambos traços comuns de mulheres no espectro”, diz O’Leary, destacando que os sintomas não levaram a um diagnóstico correto.

“Recebi o diagnóstico errado e me deram medicação —tranquilizantes para ansiedade — aos 16 anos. São medicamentos pesados com efeitos colaterais, não me ajudaram porque não eram o que precisava. Foi como se tivessem me engessado.”

“Receber o diagnóstico aos 42 anos foi muito importante para mim, porque passei a maior parte de minha vida me martirizando. Era muito crítica em relação a mim mesma. Não sabia quem eu era, e é uma maneira terrível de se viver. Desenvolvi anorexia quando era adolescente quase como uma maneira de lidar com a confusão.”

“Mas o diagnóstico explicou muito por que sou da maneira que sou e me amo muito mais agora.”

“Quando era jovem, assim como muitas garotas, era muito consciente sobre mim mesma”, acrescentou O’Leary. “Que é uma boa característica, mas uma faca de dois gumes, porque significa que sabemos que somos diferentes e fazemos de tudo para nos encaixarmos, para imitar.”

“Também internalizamos nossos sentimentos, o que para mim causava vários sintomas físicos, como dor de estômago e desmaios.”

“Aprendi a ficar quieta e a não reclamar, porque é o que as mulheres fazem. Então se eu estivesse em uma situação estressante, nunca diria a ninguém que estava me sentindo ansiosa, apenas sofria.”

“Tentar agradar outras pessoas a todo momento é exaustivo, e é como me sentia, sendo a Fiona antes do diagnóstico.”

“Como mulheres, nos esforçamos tanto para agradar os outros — para nos encaixarmos nas caixas que eles querem que nos encaixemos — que negligenciamos a nós mesmas e negligenciamos nossa saúde mental, e acho que isso é realmente muito triste, mas é a realidade.”

As mulheres que desenvolveram a capacidade de “mascarar” ou esconder os sinais de que estão no espectro autista podem, por fora, parecer mais integradas na sociedade, mas, como O’Leary afirma, o esforço tem um preço.

Segundo Povey, mascarar os sentimentos pode ser parcialmente responsável pela alta incidência de ansiedade e transtornos alimentares entre mulheres no espectro.

“Mascarar a si mesma pode ser muito cansativo e estressante”, diz. “E muitas vezes isso está relacionado com o desenvolvimento de problemas secundários como ansiedade, transtornos alimentares ou depressão, bem como o aumento das chances de um diagnóstico errado.”

Alis Rowe, de 27 anos, de Londres, foi diagnosticada com a síndrome de Asperger há cinco anos. Ela passou muito tempo de sua formação escolar mascarando seu comportamento natural.

“Ninguém deveria fingir ser o que não é”, diz Rowe.

“Até terminar a universidade, sempre tentei me encaixar. Fazia coisas que não queria fazer, porque pensava que eram as coisas que deveria estar fazendo.”

“No entanto, quando você percebe que não faz parte do ‘mainstream’ [do que é convencional], percebe que as coisas convencionais não vão funcionar para você.”

“Na verdade, os conselhos que as pessoas costumavam me dar, para ‘me esforçar’ e ‘sair da minha zona de conforto’, no final me deixavam muito pior e provavelmente causaram minha depressão”, continua Rowe.

“Eu sei quem sou. Sempre fui muito feliz em casa, onde tinha permissão para ser eu mesma e fazer minhas próprias coisas.”

“Foi apenas quando estava com outros da minha idade que me sentia estranha, anormal, inferior e diferente.”

“Não me enquadro no que a sociedade define como uma mulher deve ser. Quando você é mais jovem, isso pode fazer você duvidar de sua própria identidade, de sua sexualidade.”

“Mascarar é algo muito fácil de se fazer, você apenas copia os outros, e funciona quando você é mais jovem, já que as interações sociais são simples. Mas, assim que você atinge a adolescência e adquire uma maior consciência de si próprio e dos outros, começa a desmoronar.”

Rowe é fundadora do The Curly Hair Project, um empreendimento social dedicado a apoiar mulheres e meninas no espectro, o que a colocou em contato com milhares de outras mulheres com experiências semelhantes às suas. O projeto a levou a acreditar que o autismo pode estar subdiagnosticado entre as mulheres.

Povey, da NAS, concorda que as estimativas sobre o número de mulheres no espectro autista são difíceis de calcular.

“Não há forma de saber a verdadeira discrepância entre o número de homens e mulheres autistas; as taxas de prevalência variam muito entre proporções de 2-1 para 6-1”, explicou.

“Anteriormente, acreditava-se que o autismo afetava muito mais homens do que mulheres, enquanto, mais recentemente, avalia-se que a discrepância nos diagnósticos pode ser devido [ao fato] de que as mulheres são melhores em mascarar os clássicos sintomas do autismo e apresentá-los de maneiras diferentes, tornando a identificação mais difícil para médicos e pais.”

“Pesquisas anteriores sobre o autismo se concentraram muito mais em homens, significando que a forma pela qual entendemos a doença, culturalmente e clinicamente, tende a ser baseada em experiências e comportamentos de homens e meninos.”

“Isso reforça a narrativa muito masculina do autismo, que tem moldado os critérios usados para diagnosticar o autismo, o tipo de apoio disponível para as pessoas e a percepção pública sobre o que é o autismo.”

Neste ciclo perpétuo, que poderia ser visto como uma forma de discriminação estrutural não intencional, muitas mulheres e meninas passam a vida sem um diagnóstico ou recebem o diagnóstico errado e ficam sem apoio, o que poderia fazer uma enorme diferença em suas vidas.

Nicky Clark, de anos 49, de Shropshire, na Inglaterra, passou por isso. Clark e suas duas filhas foram diagnosticadas com o espectro autista. Mas o diagnóstico dela e de sua filha mais velha não foi nada simples.

“Diagnosticar o espectro autista é mais difícil entre meninas, porque muitas vezes somos condicionadas a apresentar uma máscara”, disse.

“É como se você fosse um cisne deslizando na superfície da água, mas furiosamente dissimulando por baixo.”

“O estresse de esconder todo aquele fingimento, para não perturbar as pessoas, deve ter um papel no motivo pelo qual há uma alta incidência de transtornos alimentares e ansiedade em mulheres com o espectro autista.”

Lizzy, de 21 anos, a filha mais velha de Clark, foi diagnosticada aos 11 anos, depois de um processo de 18 meses de avaliação — durante o qual ela recebeu o diagnóstico equivocado de déficit de atenção/hiperatividade e o remédio Ritalin.

Sua filha mais nova, Emily, agora com 18 anos, foi diagnosticada aos 3 anos. O processo no caso dela foi mais fácil, e Clark acredita que seja porque ela apresentou mais sinais típicos do espetro autista — não olhava nos olhos das pessoas, não conversava e parecia estar ausente.

Ter duas filhas diagnosticadas em idades diferentes significa que Clark tem experiência em notar a diferença que o diagnóstico precoce pode fazer em termos de apoio disponível para uma criança.

“É absolutamente crítico”, disse. “Lizzy não teve apoio, mas o diagnóstico de Emily significou que ela foi capaz de conseguir apoio, primeiro na educação convencional, e depois com um especialista em casa.”

Clark, por sua vez, apenas foi diagnosticada em outubro de 2015. Ela notou que as pessoas ficam muitas vezes “surpresas” ao saber que ela se encontra no espectro autista, porque sua carreira como defensora dos direitos de pessoas portadoras de deficiência e escritora com blogs no The Huffington Post do Reino Unido e artigos publicados nos jornais The Guardian e Independent não se enquadra na visão delas do que uma pessoa com autismo pode conseguir.

“As pessoas dizem: ‘Você não pode ser autista, você é muito criativa’”, diz. “Mas, na verdade, a escola de teatro foi maravilhosa para mim, porque, depois de anos mascarando, estava bem preparada para atuar — como se eu tivesse sido várias pessoas diferentes, em vez de ser eu mesma, toda minha vida.”

Um motivo pelo qual Clark sente que tinha de esconder muito de sua verdadeira personalidade foi devido ao padrão tendencioso sobre as expectativas do que é um comportamento aceitável para um homem e uma mulher.

“Realmente acho que sou vista como ‘difícil’ devido à maneira pela qual reajo às coisas”, explicou. “Nunca foi minha intenção causar problemas, mas um pouco do meu comportamento era visto como agressivo, enquanto que, se fosse um homem, teria sido considerado assertivo. Quando, na verdade, eu não estava fazendo nada mais do que dizer ‘aqui estou’. Isto é o que sou.”

Clark admite que “tremeu” quando revelou publicamente seu diagnóstico.

“As pessoas me chamavam de corajosa, o que possivelmente destaca o perigo que parece existir para uma mulher com espectro autista”, disse.

“Mas senti que tinha de divulgar meu diagnóstico porque, de outra forma, estaria negando esta parte de mim e também uma parte das minhas filhas.”

Depois de passar anos mascarando suas verdadeiras identidades, Clark, Locke, O’Leary e Rowe acreditam que é de vital importância que as mulheres com autismo parem de negar quem são.

Locke diz que decidiu falar sobre seu espectro autista porque sentiu que era importante “levantar e entrar na contagem” e dizer “nós existimos”.

“Minha grande esperança é diminuir o medo que as mulheres sentem em admitir que têm autismo”, disse. “Porque a pior coisa é sofrer e não receber nenhuma ajuda.”

O’Leary acrescentou: “Esta é a razão pela qual precisamos mais do que a conscientização sobre o autismo; precisamos de aceitação”.

“Quando a sociedade como um todo aceitar as mulheres com autismo como elas são, então todas poderemos ser nós mesmas. Podemos ter orgulho de ser autistas.”

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