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Como as marcas estão aproveitando sua estafa mental para vender mais

Na pandemia, uma enxurrada de novos anúncios prometem produtos milagrosos contra ansiedade, estresse e a favor do bem-estar

Consumo: esses comerciais são parte de uma enxurrada de anúncios prometendo alívio em um momento estressante. (Shira Inbar/The New York Times)

Consumo: esses comerciais são parte de uma enxurrada de anúncios prometendo alívio em um momento estressante. (Shira Inbar/The New York Times)

MD

Matheus Doliveira

Publicado em 5 de outubro de 2020 às 10h26.

Última atualização em 5 de outubro de 2020 às 13h18.

Uma pandemia letal e o desemprego generalizado coincidiram com uma tensa campanha presidencial e agitação em todo o país.

Para a indústria publicitária, isso significa oportunidade.

"Se a história nos ensinou algo, é que podemos passar por qualquer coisa – e essa cerveja às vezes ajuda", diz o ator Paul Giamatti em um comercial da Coors Light.

O narrador de um comercial do Firstleaf, um clube de vinhos por assinatura, usa a mesma ideia: "Vamos precisar de muito vinho para sobreviver a este ano."

Esses comerciais são parte de uma enxurrada de anúncios prometendo alívio em um momento estressante.

Anúncios on-line da Moon Pals, linha de animais de pelúcia com olhos grandes e tristes, prometem um "sono mais profundo", "melhor funcionamento cognitivo" e "ansiedade reduzida". Os materiais de marketing da empresa informam os potenciais clientes de que os braços das criaturas de pelúcia da Moon Pals são feitos com peso suficiente para que sejam capazes de dar "abraços que podem salvar o mundo".

A Vitality Extracts, empresa que vende elixires e bugigangas, promete "elevar seu humor e aliviar a tensão". Seu Pacote Estresse & Ansiedade inclui uma pequena garrafa rotulada "Fim do Estresse", que contém uma "mistura de óleo essencial puro", e um par de "pulseiras calmantes contra a ansiedade". A US$ 50, o pacote está esgotado.

A Procter & Gamble garante que pode "transformar a vida estressada na melhor vida" em anúncios recentes das StressBalls, cujos ingredientes incluem extrato de ashwagandha e extrato de valeriana. A Nature's Bounty, empresa de bem-estar, promete uma maneira de seus clientes "encontrarem paz" em novos anúncios do chiclete Stress Comfort, que inclui ingredientes como ácido gama-aminobutírico, melatonina e extrato de lavanda.

A Roman, uma empresa de Nova York que oferece tratamentos para condições como disfunção erétil e queda de cabelo, está anunciando cápsulas de alívio do estresse que afirma terem base científica. Um usuário anônimo de produtos da Roman apresentados em seus materiais de marketing declara: "Esta empresa mudou minha vida." Mas a Roman reconhece que alguns ingredientes de seus produtos, como a raiz-de-ouro (Rhodiola rosea), "ainda não foram extensivamente estudados nos EUA".

Stephanie Van Stee, professora associada da Universidade do Missouri-St. Louis, especialista em Comunicação de Saúde, aconselha os consumidores a não permitir que o estresse domine seu ceticismo. "Você precisa olhar para esses anúncios criticamente e pesquisar para ter certeza de que sabe no que está se metendo com algumas dessas coisas", disse ela.

Num período em que mais de 200 mil pessoas nos Estados Unidos morreram de Covid-19 e milhões perderam o emprego, quase um terço dos adultos americanos relataram sinais de ansiedade ou depressão, um aumento significativo em relação ao ano anterior, informou o Centro de Controle e Prevenção de Doenças no mês passado. Uma pesquisa recente da Kaiser Family Foundation descobriu que, dos milhões de trabalhadores que enfrentaram cortes salariais ou demissões, mais da metade culpa a pandemia por prejudicar sua saúde mental.

Mensagens de prestação de serviço público voltadas para uma população recém-vulnerável começaram a aparecer há alguns meses, com comerciais do Advertising Council, um grupo sem fins lucrativos. Em uma campanha, artistas como Meghan Trainor e Addison Rae encorajaram os adolescentes a se conectarem com amigos; em outro, criadores do TikTok como Jaci Butler e Parker James compartilharam dicas sobre como lidar com o isolamento.

Essas mensagens vieram seguidas de uma leva imensa de anúncios de produtos para auxiliar no sono, aplicativos de saúde mental, serviços de terapia remota, medicamentos que exigem receita médica, poções e tinturas.

O Calm, um aplicativo de meditação e sono, gastou cerca de US$ 15,6 milhões em comerciais de TV de março a agosto, contra US$ 3 milhões um ano antes, de acordo com a empresa de pesquisa iSpot.TV. Os gastos da empresa com o Facebook quase triplicaram no mesmo período, de acordo com estimativas da plataforma de análise de publicidade Pathmatics. Em um anúncio do Calm que apareceu no Instagram, a atriz Eva Green lê uma história para dormir, "The Magic Hotel", da autora Christina Yang, especializada nesse segmento. A voz de contralto da atriz conta com as notas suaves de um piano ao fundo.

O Headspace, outro aplicativo de meditação, gastou US$ 27,3 milhões em uma recente campanha televisiva que atingiu os telespectadores cerca de 1,9 bilhão de vezes, de acordo com a iSpot.TV. "Esta crise está afetando todos nós. Nossa saúde mental está sofrendo, mas a maioria simplesmente não sabe como lidar com isso. Mas podemos tentar, com ferramentas para ajudar a cuidar de nossa mente", afirma o narrador em um comercial.

A agência de anúncios digitais Playbook Media está testando mensagens sobre o Mellow, um aplicativo em desenvolvimento que mostra imagens de pinturas aos usuários como um dispositivo calmante. "Há uma oportunidade de mercado para capitalizar o momento atual", observou Bryan Karas, executivo-chefe da Playbook.

Os gastos com anúncios de medicamentos antidepressivos em plataformas tradicionais também aumentaram ligeiramente, subindo para US$ 76,8 milhões de março a junho, valor que foi de US$ 75,6 milhões um ano antes, de acordo com a empresa de pesquisa Kantar. O Trintellix, um antidepressivo, tem oito anúncios no Facebook, de acordo com o Facebook Ad Library.

A indústria da canábis também vem agitando a demanda por produtos com potencial para acalmar. As empresas focadas em CBD, ou canabidiol, gastaram quase US$ 4,3 milhões em anúncios de março a junho, mais de cinco vezes os US$ 798 mil que gastaram um ano antes, de acordo com a Kantar. Uma dessas empresas, a Green Roads, diz aos clientes: "Hoje, é fácil ficar sobrecarregado. Basta esperar um minuto." O Web CBD de Charlotte observou no Instagram que "se sentir ansioso pode ser uma resposta compreensível para muitos dos eventos estressantes que a vida nos proporciona, especialmente durante uma pandemia".

Os reguladores advertiram as empresas de CBD contra o excesso de promessas. A FDA (agência americana responsável pelos alimentos e medicamentos) reprimiu os anúncios que defendiam o CBD como um tratamento pandêmico que pode "esmagar o corona". A Comissão Federal de Comércio alertou o Patriot CBD, pedindo que parasse de fazer declarações enganosas como: "Quando seu corpo está cronicamente estressado, seu sistema imunológico sofre. Com a propagação desse coronavírus potencialmente mortal, o estresse será alto... Considere o óleo de CBD."

Janelle Applequist, professora associada de Publicidade e Relações Públicas da Universidade do Sul da Flórida, comentou que o apelo de anúncios que prometem algum consolo provavelmente vai continuar.

"O que é assustador agora é que estamos em casa há tanto tempo, e o dia a dia se tornou tão difícil, que é muito tentador ver um anúncio de uma droga e pensar que ela pode trazer alívio. Estamos falando de pessoas que vivem sérias pressões financeiras, ansiedade social, solidão."

E acrescentou: "Essa é quase uma receita para o desastre."

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