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No futuro do trabalho, podemos ficar de fora de novo, diz CEO de Salvador

Em entrevista, Monique Evelle fala sobre empreendedorismo, sucesso e o futuro do trabalho nas periferias do Brasil em especial do Dia da Consciência Negra

Empreendedora Monique Evelle, de Salvador, CEO do Desabafo Cultural e sócia da SHARP (Dudu Assunção/Divulgação)

Luísa Granato

Publicado em 20 de novembro de 2018 às 06h00.

Última atualização em 13 de março de 2019 às 14h51.

São Paulo — “Tem uma frase que ouvi: entre mudar o mundo e ganhar dinheiro, fico com os dois. Eu fico com o dois, porque dinheiro de branco é diferente de dinheiro de preto. Quando ganho dinheiro, tenho família para sustentar”, fala Monique Evelle, empreendedora de Salvador (BA) sobre as diferenças de negócios liderados por negros no Brasil.

O empreendedorismo para ela começou cedo, com 16 anos. No entanto, na periferia de Salvador, ela não sabia que o que estava fazendo era empreender. Monique queria criar um projeto sobre comunicação e direitos humanos porque tinha essa necessidade.

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Hoje, ela é idealizadora e CEO do Desabafo Social, Radar.vc e Evelle Consultoria. Também é sócia da SHARP e foi repórter do Profissão Repórter da Rede Globo. Em 2017, foi reconhecida por seu trabalho pela revista Forbes, entrando na lista “30 under 30”, ranking de jovens que estão fazendo a diferença.

Com 23 anos, ela conta que é procurada para falar como ativista de direitos humanos, mas não como empresária. “Por mais que tenha um discurso sobre raça e gênero, é difícil entender que é um assunto transversal a tudo o que faço. Está no meu trabalho e no que pratico, na forma como contrato, onde direciono meu dinheiro e onde procuro por ideias”, conta ela.

Conversando com EXAME em São Paulo, Monique conta que não espera que sua trajetória seja tratada como exceção e sua jornada seja reduzida apenas a seus sucessos. Ela defende que a inovação acontece todos os dias na periferia, que não precisamos ir até o Vale do Silício para buscar um guia para o futuro, quando pelo Brasil sempre existe a gambiarra no Vale do Silêncio, como chama os projetos criados em comunidades brasileiras.

“Só eu sei o que fiz para estar aqui. O que estudei, mas ninguém gosta do processo. Quem adora filé não gosta de ver o boi sendo morto”, diz.

Em especial do Dia da Consciência Negra, a CEO foi chamada para comentar as desigualdades e desafios que permanecem no mercado de trabalho para os jovens negros e moradores das periferias.

Este ano, Monique está participando do projeto Sagaz Social, um aplicativo focado em cidadãos desempregados, em sua maioria negros, que apresenta uma plataforma de aprendizagem, curadoria de profissionais e de inovação aberta. “As atualizações chegarão por notificação como do Whatsapp. A ideia é formar uma rede de pessoas capacitadas, oferecendo vagas, freelas, eventos e cursos”, explica.

Entre os desafios que os jovens negros enfrentam hoje no mercado de trabalho , ela se preocupa com como as mudanças tecnológicas afetarão os empregos.

“Quando falamos das habilidades do futuro, uma das barreiras na periferia são os termos do empreendedorismo. Você fala em flexibilidade, proatividade, empatia. Já ouviu falar? São todas habilidades que todo mundo na periferia já tem de forma compulsória. Somos proativos porque temos que buscar oportunidades, uma mãe solteira é flexível por ter que cuidar da família e trabalhar. Mais criativo que periferia não existe, mas aí é chamado de gambiarra. Na verdade, é a inovação da quebrada, a inovação do improviso. Então, é preciso se preparar para o futuro. Eles já têm as qualidades e precisam estudar a técnica para entrar no mercado. Falta juntar o talento com o conhecimento técnico”, explica ela.

Confira outros desafios sobre mercado de trabalho comentados pela CEO:

Acessibilidade de vagas

“Primeiro, as grandes empresas, como o Nubank, colocam as vagas em inglês. Poucos brasileiros falam inglês fluente. E também não são todos que acessam a internet. Quem é da quebrada, nem vai saber que a vaga existe e quando sabe, está em inglês. Agora, temos a área de Recursos Humanos procurando por diversidade e apoiando o recrutamento às cegas. Se você quer negro, mulher, LGBT, você precisa dizer que quer. A diversidade já existe nas empresas, mas em cargos de servidão. A discussão não é servir, mas como passar em um cargo de trainee.”

Empreendedorismo na periferia

“Não sou romântica com o empreendedorismo. Dá trabalho e é cansativo. Quando você chega aos lugares como CEO, as pessoas ainda perguntam pela sócia e tenho que falar que sou eu. A situação social não embranquece ninguém, ainda sou a mulher preta de 'dread'. O cabelo pode mudar, o resto não. A carteira de trabalho é um conforto. Tem gente que é pai, sabe? É bom o dinheiro cair na conta todo mês, ter um plano de saúde… Para a pessoa que nunca teve segurança na vida, agora vou dizer para largar tudo e ser feliz, ir empreender? Não digo isso para ninguém. É injusto, mas se estivesse na situação, não buscaria o risco, continuaria no meu emprego na Globo. Empreender é você não saber se vai comer no final do mês, é um caminho cheio de incertezas. Quer apostar tudo? Tudo bem, mas entenda o território, não vale romantizar. A periferia não tem dinheiro para errar. Tudo o que fiz foi na cara e na coragem. O Nubank teve investidor, o Conta Black , não. Fui para o Vale do Silício e até hoje não tem investidor. No vale do silêncio, as periferias, é assim. Se migrar para lá, vai ser o mesmo por ser preta e mulher”

Sucesso

“Também não romantizo a periferia, pois não era para existir. Se fosse a geração da minha mãe, de 50 anos, o foco da vida seria fazer faculdade, conseguir um emprego legal e sair correndo de lá. Vencer na vida era sair da periferia. Agora, vejo gente da minha idade, com 23 anos, que faz a faculdade e retorna, quer continuar lá e potencializar o lugar. O sucesso é isso: retornar. Meus pais podem não morar mais lá, mas estou sempre voltando.

Pessoalmente, como CEO e sócia de três empresas, sucesso para mim também é poder ficar o final de semana e feriado sem responder o WhatsApp. Poder ir para Salvador com a minha família e tirar férias todo ano. Quando saio do trabalho, não quero falar sobre isso. E o trabalho não vai terminar se eu responder um e-mail na sexta-feira de noite, entende? Então, sucesso tem relação com minha saúde mental, em ter uma válvula de escape na arte e na cultura e ter dinheiro para fazer isso. Tem aquela frase, depois você procura de quem foi: entre mudar o mundo e ganhar dinheiro, fico com os dois. Eu fico com o dois, porque dinheiro de branco é diferente de dinheiro de preto. Quando ganho dinheiro, tenho família para sustentar. Com ele posso continuar meus projetos na quebrada."

Dicas para os jovens

“Primeiro, quando se discute a necessidade de diploma, o Emicida disse: ‘Água em escassez, bem na nossa vez’. Agora que conseguimos entrar nas universidades, falam que não precisa mais de diploma. Para você que é negro e favelado, não escute e procure seu diploma. Na dúvida, tenha. Fico muito preocupada com o ano que vem, pois o cenário não está fácil e o desemprego nas periferias ainda pode aumentar.

Meu segundo conselho é: pedir ajuda. É uma coisa difícil, a gente se acostuma a se virar sozinho, mas peça ajuda. Não fique imaginando se vai receber um não. Procure alguém que admira, no empreendedorismo ou um cargos que procura no mercado de trabalho, e peça conselhos.

Terceiro: se informe sobre o que é o emprego do futuro . A gente se pergunta se haverá espaço para todo mundo no mercado… na modernidade, nunca houve. Se fala que todo mundo tem espaço, mas um morre de fome, o outro, de frio. Então, entenda o que é futurismo e o que é negócio digital. Mesmo para começar, você precisa conhecer as palavras para procurar. Então procure saber o que é PJ. Na dúvida, tenha um MEI. Temos que embarcar no futuro do trabalho, não por eu achar que seja assim, mas há chance de ficarmos de fora de novo.”

Cotas

“É engraçado, em 1868, surgiu a Lei do Boi, que criava cotas para filhos de fazendeiros nas escolas de medicina veterinária. Agora, quando a cota é para a gente, não vale? Não ver cor mantém o que já existe. Se somos iguais, será que o tratamento é o mesmo?

Tenho uma amiga que estudou em Harvard, mas é a única de cinco irmãos. Conseguiu uma bolsa para estudar em colégio particular e sabia inglês a vida toda por isso. Quem se destaca por mérito, sempre aparece como caso extremo, mas ninguém sabe a história. Eu, Monique, não estou aqui por biogênese. Só eu sei o que fiz para estar aqui, mas ninguém gosta do processo. Se todos fossem, iguais, o IBGE não teria categoria de pretos, pardos, brancos... Se fosse igual, não seria estranha minha presença no meu prédio, onde sempre o porteiro recebe ligações perguntando se realmente moro lá. Pode falar que todo mundo é igual, mas na hora de contratar, o chefe ainda vai ver a cor. Igualdade é uma coisa, equidade é outra. Na igualdade, as duas podem ter um pedaço de pão, mas equidade é saber que quem precisa desse pedaço de pão agora sou eu.”

Viés inconsciente?

“Não suporte essa expressão, mas vamos lá. As pessoas podem entender melhor a desigualdade se fizerem o teste da cabeça. Olha em volta, observe quem é quem no ambiente e em que posição está. A branquitude também é uma categoria social. Seu eu tenho um histórico na minha família de pessoas escravizadas, a minha bisavó viveu no período da abolição, as pessoas brancas têm que entender seu histórico de colonizador. Até imigrantes receberam terras. É difícil dormir com essa. Ao entender isso, pense na sua relação com a pessoa negra, com o uso pejorativo de termos usando preto e negro, como lista negra, em relação ao branco como salvação, como em pomba branca.

Outra coisa, pergunte. Não deixe de pesquisar e depois me pergunte o que é racismo, mas, na dúvida, pergunte como deve falar ou como agir. É assim: se pedir por favor e com licença primeiro,vai evitar pedir desculpas depois.”

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