Terra virtual sem lei
Coluna semanal do analista Márcio de Freitas comenta os temas mais debatidos entre os poderes em Brasília
André Martins
Publicado em 14 de janeiro de 2021 às 13h08.
Última atualização em 14 de janeiro de 2021 às 14h27.
A invasão do Capitólio em Washington, nos Estados Unidos, mostrou a capacidade de mobilização e organização de grupos milicianos com o auxílio essencial das redes sociais. Nada ali foi espontâneo, nem as mortes acidentais. Só as vítimas talvez não soubessem, mas estavam na conta de quem insuflou o movimento.
A vida real foi invadida pelos instrumentos virtuais sem nenhum controle ou regulamentação. Essa fronteira ainda é mais sem lei que o velho oeste. Usar plataformas para transmitir discursos, aplicativos para convocar os mais fanáticos seguidores e, na ação, transmitir passo a passo tudo ao vivo nos perfis do grupo bárbaro foi um choque para todo o mundo. What’s up?
Essa situação só chegou aonde chegou porque não se aplica à internet e à teia de seus filhotes aquilo que serve para várias outras áreas de atividade humana: a lei. Em sociedade, todos têm a plena liberdade de agir até onde a lei permite. No universo cibernético e nos arrastões das redes sociais, ainda não há regulamentação que estabeleça claramente o ponto final, o limite e a responsabilização. E não há lei nacional que resolva o problema de uma world wide web, por vezes, extremamente wild.
Mundial e selvagem, essa liberdade excessiva da rede é defendida hoje com unhas e dentes pela direita, com os discípulos do quase ex-presidente Donald Trump procurando uma terra prometida para chamar de sua, depois de banidos e expulsos do paraíso. Essa defesa já foi feita pela esquerda, pelos hippies, pelos disruptivos e inovadores inventores de novas tecnologias do vale do silício.
Além de escrever as letras do Grateful Dead, John Perry Barlow marcou a era inicial do pontocom com um manifesto contra qualquer controle do Estado: A Declaração de Independência do Ciberespaço. “Em nome do futuro, peço a vocês do passado que nos deixem em paz”, cravou ele aos analógicos governos da década de 1990. “Os governos têm os seus poderes advindos do consentimento dos governados. Vocês não solicitaram nem receberam o nosso. Nós não convidamos vocês. Vocês não nos conhecem, nem conhecem o nosso mundo. O Ciberespaço não está dentro de suas fronteiras”, delimitou Barlow.
É nessas fronteiras que vicejam as fake news, o assassinato de reputação, campanhas eleitorais irregulares, a comercialização de dados pessoais por empresas privadas, a manipulação e o direcionamento por algoritmos que nos colocam sempre diante de um espelho de narciso. Só vemos a nós mesmos, ou o que se parece conosco, e curtimos.
A internet é isso: um grande espelho a refletir nossa imagem e semelhança. Endeusamos o que vemos, o que queremos, o que compramos e exibimos. E seguimos junto à falange que se parece conosco, mesmo que não seja muito belo. Um segundo para a selfie e sorria, o mundo parecerá menos tedioso com um sorriso fotogênico e algumas curtidas.
A manifestação dentro do Capitólio mostrou aos norte-americanos essa imagem de si mesmos, assustando muitos. Outros se mostram anestesiados ou até felizes. Entre um clique e outro, grupos radicais dão um like fatal na democracia.
É bom lembrar que o pai da desregulamentação da internet e das mídias nos Estados Unidos, quando Barlow lançou seu manifesto, foi o então presidente democrata Bill Clinton. Tudo parecia lindo e maravilhoso, mas o tal Conselheiro Acácio sempre aparece atrasado com as consequências, algum tempo depois.
As plataformas bilionárias continuam resistindo a uma regulamentação, com critérios particulares pouco claros e privados de solucionar os problemas. Baniram Donald Trump, mas qual a régua? Ele é a doença ou a febre da infecção social? Ou seriam as plataformas que deixaram a Cambridge Analytica participar da democracia com instrumentos de manipulação e mentira? Pode uma empresa impedir um representante eleito pelo povo de se manifestar, mesmo que absurdamente?
E o futuro? Como será? Essa questão tem percorrido os corredores do Capitólio há algum tempo. Se agora vai, é cedo para saber, mas a fratura está exposta.
O Estado existe para regular isso, limitar e preservar a convivência dentro de um ambiente de respeito, equilíbrio e dignidade. E antes que alguns argumentem que a internet é privada, é bom lembrar que ela foi inventada durante a Segunda Guerra Mundial por brilhantes intelectuais contratados pelos governos. Foi fomentada e desenvolvida com recursos públicos. E oferecida gratuitamente à sociedade, pública e privada. E isso numa época em que os governos não respeitavam a vida particular, tanto que um dos maiores responsáveis pela existência do computador, o inglês Alan Turing, pagou com a vida pela sua opção sexual individual. Atrocidades do passado foram enfrentadas, faltam as do presente. E isso para o bem da democracia no mundo.
* Analista Político da FSB
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