A polarização política está levando a população a realizar loucuras e mascarar tais atos radicais como patriotismo (EDISON BUENO/PHOTOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO/Reprodução)
Bússola
Publicado em 21 de janeiro de 2023 às 12h45.
Por Márcio de Freitas*
O que se viu nos últimos tempos na política brasileira é a manifestação polarizada radical extrema (*), onde um grupo faz a negação total do outro ao ponto da violência. A não aceitação do resultado eleitoral é sintoma, talvez, de algo mais profundo, uma expressão diferente do ethos do brasileiro do século XXI. Se o Brasil se olhou no espelho nos últimos tempos, levou alguns sustos com sua própria imagem.
É preciso ao menos tentar entender o espírito desse tempo, muito além de simplesmente encontrar culpados - que devem ser punidos quando julgados, diga-se. Qual a causa desse mal estar da brasilidade? Por que o país mergulha fundo na intolerância? Isso nos obriga a um esforço maior para entender essa doença e alcançar, se existe, uma cura.
Na antiguidade, Atenas e Esparta representavam cidades-estado em tudo antagônicas: uma democrática, outra despótica; uma comercial, outra militar; uma filosofal, outra pragmática. O Brasil parece engendrar as duas cidades antigas misturadas nas mesmas famílias, grupos de amigos, ruas, bairros e cidades. A mixórdia nos faz questionar sobre nossa identidade como povo. Afinal, quem somos? Essas imagens selvagens vistas nos prédios dos Três Poderes pela TV espelham o que nos tornamos? Certo é que não temos os heróis da Guerra do Peloponeso.
Em fórmula simplificadora, usamos o hábito de classificar o mundo com nossas etiquetas básicas de entendimento, os rótulos. Aos grupos, vão sendo colocados adesivos de "petista", ou “bolsonarista", liberal, comunista e ainda os raros centristas. Está certo isso? Não sei. Só sei que é assim, como diria a personagem de Ariano Suassuna.
Ao estudar a formação das sociedades, o antropólogo francês Marcel Mauss observou que povos vizinhos construíam sua identidade também pela negação de hábitos, comportamentos e padrões sociais. Alguns acabaram nos "grilhões" da agricultura, outros preferiram ser libertos caçadores-coletores. Isso valia para a organização social, aceitação de uma hierarquia de poder ou não, por manter escravos ou não, numa escala de valores que os tornava distinguíveis de seus próximos - tornados, por essas escolhas sociais, distantes do convívio conjunto.
“As sociedades vivem com empréstimos mútuos, porém se definem mais pela recusa do que pela aceitação do empréstimo”, diz o antropólogo francês Marcel Mauss. As culturas se expressam como estruturas de recusa. É se comparando com um vizinho que um povo passa a se considerar como um grupo distinto. Recuso, logo sou.
Os exemplos são muitos. Trazendo para o campo onde o brasileiro gosta: nos estádios de futebol uma tribo nega as qualidades da outra, mesmo se estar forem evidentes. Isso porque não se aceita a vitória daqueles que usam cores diferentes de seu uniforme. A culpa quase sempre é do juiz, do técnico, de um zagueiro desatento… e se nega ao adversário uma superioridade estampada largamente no placar. Melhor negar. Vide o fla-flu dos democráticos contra fascistas nas redes sociais: déjà vu.
A formação das "áreas de cultura” é necessariamente política. Os tipos de questões que nossa tradição intelectual tende a expressar em termos como liberdade, responsabilidade, autoridade, igualdade, solidariedade e justiça. Toda essa reflexão de Mauss é recuperada no livro “O despertar de tudo: uma nova história da humanidade”, de David Graeber e David Wengrow. (Companhia das Letras). É um pouco disso que vivemos no país.
E o que passamos, hoje, outras sociedades já vivenciaram. Continuar a alimentar essa divisão é um processo de autodestruição. Os cismas ideológicos podem sangrar muito as nações. O Brasil já esteve à beira de situações críticas, como o fim da ditadura militar nos anos 80. Mas teve lideranças políticas que construíram os caminhos de unidade nacional. José Sarney está aí para contar como continuou a obra de Tancredo Neves.
A saída é pela política, com equilíbrio. Aos políticos cabe tecer os fios da unidade, não da revanche, do ódio, da intolerância ou do antagonismo. É preciso entender o processo e tentar curar a ferida. Simplificar ou ignorar a gravidade do momento, fazendo a catarse em uma só pessoa ou grupo, ou destruindo objetos privados e o espaço público de nada adianta.
Brigar com os fatos será uma derrota de todos. Acertar contas com o passado pode inviabilizar o futuro. A recusa de aceitar a realidade pode ser o outro nome do negacionismo.
* Perdão aos deuses do pleonasmo vicioso redundante
*Márcio de Freitas é Analista Político da FSB Comunicação
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