Joaquim Levy: a dívida pública tem limites?
O Estado saudável é a expressão da vontade coletiva, mas pode se tornar disfuncional quando a sociedade não tem um diagnóstico correto dos problemas
Bússola
Publicado em 15 de fevereiro de 2022 às 17h05.
Última atualização em 15 de fevereiro de 2022 às 17h16.
Por Joaquim Levy*
Tem se tornado popular dizer que a dívida pública emitida em moeda local não tem limite e não precisa ser inflacionária. Essa é uma perspectiva interessante para países onde haja muitas coisas a serem feitas (todos?) ou que enfrentem uma insuficiência crônica de demanda, talvez por razões demográficas.
A proposta baseia-se em parte na revelação keynesiana de que o gasto público pode ajudar a reorganizar uma economia com capacidade ociosa. Ela foi muito oportuna nos anos 1930, quando os Estados Unidos, apesar de seu vasto estoque de capital e talento, enfrentavam alto desemprego depois do surto de crescimento da década anterior.
Ainda há debate sobre o que teria causado aquela depressão — o que teria levado à desorganização da economia e qual o estrago feito pela contração da moeda a seguir. Para muitos, o otimismo com as inovações tecnológicas que massificaram os bens de consumo e as apostas nos mercados de capital levou ao crash, cujos efeitos foram piorados pela resposta da política monetária e de crédito. Sem entrar em detalhes dessa discussão, parece bastante consensual que o mercado funcione em ciclos, e intuitivo que o Estado possa ajudar em momentos de crise.
O Estado saudável é a expressão da vontade coletiva. Ele pode se tornar disfuncional quando a sociedade não tem um diagnóstico correto dos problemas, e há casos de ele ser sequestrado por interesses particulares contrários à sociedade. Mas, há séculos, Confúcio e Hobbes ensinavam que o Estado, com seus defeitos e riscos, existe para organizar as atividades da sociedade e protegê-la.
É seu efeito organizador, quando baseado em diagnósticos corretos, que permite ao Estado contribuir para dinamizar a atividade econômica. A dificuldade está em saber aplicar esse elixir. Para ilustrar o ponto, vale uma analogia com a dinâmica de uma família. Analogias desse tipo, que em geral informam que a família “não pode gastar mais do que ganha”, são um anátema para os economistas, porque elas falhariam em capturar aspectos essenciais da macroeconomia. Ainda assim, vale a pena tentá-la, cuidando em definir os contornos dessa família.
Um exemplo interessante seria de uma família composta de uma matriarca e vários filhos e filhas que tocam uma fazenda. A matriarca ficaria com o papel do governo em uma economia fechada. A dívida pública seria representada pela disposição dos filhos cederem parte de seus esforços direta ou indiretamente para a realização de alguma tarefa que a matriarca indicasse (gasto público), em troca da promessa de ela lhes dar algo depois.
Essa expectativa é tão mais forte quanto a convicção de que a matriarca tem o poder de, se necessário, impor, hoje ou no futuro, algum esforço de cada filho para poder honrar todas as promessas. Uma matriarca mais intervencionista poderia até estimular alguns filhos a fazer coisas específicas prometendo mobilizar os recursos dos outros irmãos para esse fim, à semelhança da expansão do crédito público direcionado para “políticas de desenvolvimento”.
As promessas da matriarca provavelmente terão sucesso se, por exemplo, a fazenda andou abandonada, e elas servirem para coordenar o esforço para fazer a propriedade voltar a produzir, aproveitando o que existe. É a situação keynesiana ideal. Mas é fácil ver que essa rede de promessas tem limites. Se houver suspeita, por exemplo, de que uns (e.g., os irmãos ainda criança) receberão algo e não devolverão nada (quando crescerem), o ciclo pode quebrar, especialmente se a matriarca for parcial.
Mesmo com toda a boa vontade dos filhos e idoneidade nas promessas, há limites na produção de uma fazenda sob certa tecnologia, que se forem excedidos podem levar as promessas ao descrédito, o que seria comparável a uma crise na dívida e depreciação da moeda.
A imaginação e a inovação motivadas pela matriarca ou pelos filhos podem, é verdade, estender o efeito positivo da rede de promessas. Podem ser criadas novas demandas, já que há mais na vida de uma fazenda do que abóboras: música depois do jantar ou a renovação dos quartos da sede pode interessar a algum dos filhos e se houver quem saiba atender a essas demandas, novas promessas bem colocadas podem fazer o “PIB” da fazenda crescer e manter a roda girando mais um pouco.
Algo parecido se daria com estímulos para a inovação tecnológica. Mas, ainda assim, não há nada que sugira a ausência de limites. E pode haver um filho que pergunte se tudo precisa passar pela matriarca, ou se poderia ser melhor organizado só entre eles: em que casos o crédito privado não daria conta do problema? Será que o entusiasmo da matriarca não estaria sufocando alguns dos filhos, que têm ideias mais interessantes? Ou é melhor deixar ela regendo o sistema, porque nem todos os filhos jogam naturalmente juntos? Não parece haver respostas gerais para essas questões.
Então, o que essa família pode dizer para o Brasil? Talvez que um impulso fiscal keynesiano é valioso para evitar o colapso da economia diante de um choque “exógeno” ou de uma recessão mais forte, como demonstrado pela recuperação pós-covid da economia aqui e nos EUA. Mas que se essas promessas forem muito ambiciosas, podem trazer inflação. E os juros tenderão a subir, mesmo que a qualidade da dívida pública não caia imediatamente.
Afinal, ninguém gosta de ver o valor de seus ativos reduzidos em relação ao preço das outras coisas, e se a dívida insistir em crescer mais rápido que a produção, as promessas vão perder valor e alguns filhos podem até ir embora.
Assim, a família nos lembra que a dívida pública e o crédito privado podem lubrificar as engrenagens da economia, especialmente quando há capital ocioso. Mas, sua sustentabilidade depende da velocidade de sua expansão e do bom uso dos recursos. Daí a importância de um planejamento cuidadoso, com objetivos claros e análise séria do custo e do real retorno dos investimentos físicos e sociais financiados pela rede de promessas criada quando se expande a dívida pública.
Texto publicado originalmente no siteO Especialista
*Joaquim Levy é diretor de estratégia econômica e relações com mercados no Banco Safra
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