Gol de mão na política
Coluna semanal do analista Márcio de Freitas comenta os temas mais debatidos entre os poderes em Brasília
Mariana Martucci
Publicado em 3 de dezembro de 2020 às 19h38.
Última atualização em 3 de dezembro de 2020 às 19h49.
Maradona morreu mas continua inspirando gols de mão na política, e não falamos dos hermanos. O Supremo Tribunal Federal começa a avaliar nesta sexta, dia 4, como criar uma via marginal ao texto constitucional que libere o caminho para a reeleição das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado. A via central proíbe esse tipo de trânsito.
A Carta Magna brasileira, escrita entre 1987 e 1988, envelheceu tanto que precisou ser emendada mais de 100 vezes. E outra tantas estão na fila, mas quase sempre tentaram respeitar a via legal: Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com tramitação no Congresso.
É esse o jeito de mudar a lei maior. Se o texto está claro para sujeitos alfabetizados, nem precisa interpretar. Se houve vácuo e o Congresso não se emendou, vale tentar entender a intenção do constituinte originário. Tenta-se agora uma original supressão do texto explícito por uma aliteração do preto no branco.
Chama-se casuísmo. Não há outra palavra. E jamais outros poderosos da política desrespeitaram os limites impostos pelo escrito: José Sarney, Antônio Carlos Magalhães e filho, Michel Temer e Aécio Neves nunca tentaram a reeleição durante uma mesma legislatura pelos limites do artigo 57, parágrafo 4º. Aliás, Temer usou esse limite em seu favor para suceder Luiz Eduardo Magalhães (PFL) e Arlindo Chinaglia (PT). Sem essa barreira, o peemedebista jamais teria sido presidente da Câmara naqueles momentos históricos. Renan Calheiros e João Paulo Cunha tentaram via PEC e perderam.
É óbvio que o STF não é um tribunal de rábulas. Os ministros conhecem as leis, seu sentido, sua ontologia. Sabem o papel de freios e contrapesos do Tribunal na democracia. Quando recentemente o país sentiu uma ameaça de golpe no ar por manifestações lidas como autoritárias, mandaram recados duros em defesa das instituições e da democracia. Foram exemplares em enxotar qualquer possibilidade de golpe, afinal a Constituição não permite.
O papel da defesa da democracia teve representantes do STF na linha de frente. Por isso, é incompreensível ver, meses depois, manifestações claras de um “golpe" constitucional nas regras do jogo em curso dentro do Palácio da Justiça. Um movimento como este confunde o cidadão, que fica sem saber exatamente de onde vem o golpe e quem são os golpistas. Ficam todos iguais ao final, do mesmo tamanho, senão menores. Numa confusão que encolhe a democracia. E abre as portas para o desregramento geral, amplo e irrestrito.
“Se Deus não existe, tudo é permitido”, escreveu Dostoiévski. Se o Supremo diminuir a Constituição a um papel que pode ser usado para atender a interesses momentâneos e particulares, o liberou geral estará instalado definitivamente na política brasileira, e não há quem bote o gênio na garrafa depois que ele passear pelas tortas árvores do cerrado do Planalto Central.
É interessante que se faz o movimento de permitir a reeleição vazando raciocínios um tanto tacanhos. Uns dizem que os chefes da Câmara e do Senado exercem cargos executivos — e que a simetria está com a reeleição dos prefeitos, governadores e presidentes (então por que não colocaram isso no texto quando FHC manobrou para obter seu direito de ficar mais quatro anos?). Ou então que a Carta de 1988 permitiu a reeleição nas vereanças e assembleias, nas unidades da Federação… O rabo a balançar o cão? A Federação delega autonomia para os estados elaborarem suas próprias constituições estaduais, mas daí a uma lei estadual se sobrepor a uma lei federal vai um reordenamento jurídico e tanto.
Qualquer que seja o raciocínio, falta a borracha para apagar da Constituição o trecho explícito que proíbe a reeleição para as mesas num mesmo período de legislatura. Se não o fizerem, a prova do crime continuará no mesmo artigo esperando uma mudança de ministros para permitir outra interpretação que acabe com a festa, no interesse de outro grupo político com amigos diversos dos atuais na Corte.
Lembrem: neste ano tivemos a profissão de fé do ex-ateu Fernando Henrique Cardoso lamentando ter aprovado a reeleição. Arrependido ainda que tardio. E quase todo candidato a cargo presidencial promete, quando está em campanha, acabar com a reeleição para o executivo. Bolsonaro prometia isso em campanha. O governador João Doria já o fez para se livrar do cargo de governador de São Paulo mirando para o alto.
Houvesse mais firmeza de propósitos, o país estaria discutindo assuntos mais urgentes. Deveria cuidar de uma agenda comezinha (com ironia, por favor): enfrentar uma pandemia que matará mais de 200.000 brasileiros e uma recessão roubando empregos de mais de 14 milhões de empregos do nosso povo. Mas essa pauta não está na agenda das grandes lideranças das Mesas Diretoras nem nas articulações envolvendo os poderes da República. Questão de prioridade.
*Analista Político da FSB
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