Organização: cerca de 80% dos acolhidos nos sítios em Jarinu são ex-frequentadores da Cracolândia (Rovena rosa/Agência Brasil/Agência Brasil)
Estadão Conteúdo
Publicado em 19 de julho de 2017 às 11h21.
Ao menos 14 pessoas que viviam em um centro de acolhida de uma missão ligada à Igreja Católica, que recebe usuários de drogas e moradores de rua em Jarinu, no interior paulista, morreram nos últimos 30 dias. Pelo menos nove delas apresentavam quadros de diarreia e vômito, acompanhados de desnutrição, desidratação ou intoxicação alimentar. Outros 19 foram internados com esses sintomas, mas sobreviveram. As causas dos óbitos ainda estão sendo investigadas.
As vítimas moravam nos sítios da Missão Belém, a 76 km da capital. O espaço recebe, em sua maioria, dependentes vindos da Cracolândia. A entidade, fundada pelo padre Gianpietro Carraro em 2005, atua no Brasil e na Itália e atende 2 mil pessoas. Só nas quatro propriedades de Jarinu são 850 abrigados.
Segundo informações dos boletins de ocorrência dos óbitos, aos quais a reportagem teve acesso, a maioria dos mortos era de idosos e vivia nos sítios da Missão Belém há anos. Eram ex-dependentes químicos, ex-moradores de rua ou pacientes com problemas psiquiátricos rejeitados pelas famílias.
A primeira das 14 mortes aconteceu no dia 18 de junho. A vítima, de 56 anos, teve um mal súbito após receber medicações. Três dias depois, mais um óbito foi registrado, desta vez de um homem de 50 anos internado há oito em Jarinu. Ele foi o primeiro hospitalizado a apresentar diarreia e vômito.
Nas semanas seguintes, casos do tipo aumentaram. Do dia 3 de julho até ontem, o Hospital de Clínicas de Campo Limpo Paulista, município vizinho de Jarinu, recebeu 25 internos da Missão Belém, dos quais 6 morreram. De acordo com a Prefeitura do município, a maioria dos pacientes chegou ao local "em avançado estado de desidratação, desnutrição e intoxicação alimentar, em alguns casos associados a doenças crônicas, HIV e sequelas de acidente vascular cerebral (AVC)".
A Vigilância Municipal de Jarinu diz ter feito fiscalizações no local antes e depois das mortes, mas afirma não ter encontrado sinais aparentes de contaminação. Segundo a Prefeitura do município, o órgão aguarda os resultados de análises de amostras de água e fezes enviadas ao Instituto Adolfo Lutz. Contaminação por rotavírus já foi descartada pelo órgão.
Desde 2011, a Missão Belém é alvo de investigação do Ministério Público e da Prefeitura de Jarinu. Segundo a promotora Aline Morgado da Rocha, o local funciona, na prática, como uma comunidade terapêutica, mas não tem licença para desempenhar tal atividade. O estabelecimento não tem nem licença de funcionamento da prefeitura.
A legislação vigente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) prevê que espaços que recebam usuários de drogas em regime de residência devem ter licença segundo as regras locais. Além de apresentar responsável técnico de nível superior e mecanismos de encaminhamento à rede de saúde.
Para o psicólogo e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Marcos Garcia, há um "limbo legal" no oferecimento deste tipo de serviço. "Alguns têm cadastro como assistência social ou equipamento de saúde, mesmo não seguindo as normas do Sistema Único de Saúde (SUS)."
A Prefeitura de Jarinu e o Ministério Público Estadual (MPE) tentaram interditar os sítios da Missão Belém em Jarinu em 2012. A Justiça, no entanto, não determinou o fechamento.
Segundo o secretário da Saúde do município, Antenor Gomes Gonçalves, que também era titular da pasta na época, a Prefeitura já havia identificado que o local não tinha condições físicas de abrigar grande número de pessoas. "A Vigilância Sanitária decidiu pela interdição total do local na época, mas a Missão Belém entrou com um mandado de segurança e a juíza impediu o fechamento, alegando que eles cumpriam um papel social", diz o secretário. "É muito claro para a Prefeitura que aquilo não está bom. Já fizemos reuniões com padres, com as secretarias envolvidas, para que todo mundo tenha conhecimento e busquemos uma solução", afirmou Gonçalves.
Sobre a falta de licença de funcionamento, Gonçalves afirma ainda que a dificuldade é enquadrar a missão em um tipo de estabelecimento. "Cada momento, eles se dizem um tipo de instituição. O responsável já disse até que a casa é particular da Igreja e eles recebem quem quiserem. Recentemente, há cerca de 20 dias, entraram com um pedido de licença de espaço religioso com albergamento. Isso está em análise", explicou.
Para a promotora de Jarinu, Aline Morgado da Rocha, a instituição está em situação irregular por não preencher os requisitos necessários para o serviço prestado. "Eles agem como uma clínica de reabilitação, mas não são uma clínica juridicamente, não tem um corpo de funcionários adequado, não tem controle das pessoas que entram e saem dali", declarou.
Segundo a Promotoria, embora o local já esteja sob investigação desde 2011, a situação se agravou há um ano. "Esclareço que a precariedade do local somente se evidenciou há pouco mais de um ano, sem haver ainda nenhuma notícia da gravidade dos últimos eventos (14 mortes)", disse ontem o Ministério Público, em nota.
Por causa desse agravamento que culminou nas mortes, a Promotoria determinou a realização de vistorias no local por Polícia Civil, Secretaria de Saúde e Secretaria de Assistência Social. O secretário da Saúde de Jarinu disse que a última vistoria do órgão foi feita no dia 12, mas prometeu voltar ao local nesta semana.
O número de abrigados no principal sítio da Missão Belém em Jarinu, o São Miguel Arcanjo, quadruplicou em oito anos, segundo relato do próprio coordenador do grupo, Marcio Antonio dos Santos.
Ex-dependente químico atendido no local em 2009, o hoje responsável pela missão disse que a propriedade abrigava 125 pessoas quando ele chegou ao local. Hoje, são mais de 450. Santos nega, no entanto, que haja superlotação. "Temos espaço para todos."
A reportagem esteve no local na sexta-feira, 14, e visitou algumas instalações. O sítio São Miguel Arcanjo é dividido em 25 casas com capacidade para 15 a 20 pessoas cada uma. As tarefas de cozinha e limpeza são desempenhadas pelos próprios internos. Cada espaço tem um coordenador, também ex-dependente tratado no local.
Os dormitórios visitados pela reportagem estavam limpos e organizados, assim como um espaço comum onde são realizados eventos. A reportagem presenciou, no entanto, um interno transportando junto ao corpo um grande pedaço de carne de um animal recém-abatido.
Cerca de 80% dos acolhidos nos sítios em Jarinu são ex-frequentadores da Cracolândia. Pelo menos um terço dos que estão atualmente abrigados é de idosos, muitos com doenças crônicas, deficiências físicas ou problemas mentais.
O grupo religioso conta com voluntários que trabalham nas ruas de São Paulo, tentando convencer usuários de drogas a largar o vício com o auxílio da fé, além de ônibus e micro-ônibus que fazem as viagens do centro da capital paulista até o sítio em Jarinu.
Segundo Santos, os ônibus costumavam fazer uma viagem por semana entre São Paulo e Jarinu, trazendo 80 novos abrigados a cada trajeto. A regra só mudou há pouco mais de um mês, quando moradores da cidade do interior reclamaram da presença de usuários de drogas no município. "Como estavam vindo muitos usuários, alguns desistiam de ficar aqui e iam embora, indo para o centro de Jarinu. A partir daí, suspendemos a chegada de novos abrigados e passamos a fazer um trabalho de pagar a passagem de volta para São Paulo daqueles que querem ir embora", explica Santos.
O coordenador explica que há mais de 200 voluntários atuando nos sítios da Missão Belém em Jarinu, todos ex-internos. Eles são responsáveis, por exemplo, pelo cuidado dos pacientes mais debilitados. "Temos um cuidador para cada quatro abrigados. Aqui é náufrago salvando náufrago."
O sítio não tem uma equipe médica fixa, apenas a visita voluntária de um profissional do tipo uma vez por semana. Vale destacar que o serviço também não é obrigatório em comunidade terapêuticas. Nos sítios ainda há orações, esportes e cursos profissionalizantes.