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Política ambiental de Bolsonaro prejudica toda a região, diz Nobel da Paz

Um dos caminhos para reduzir o desmatamento, acredita Santos, é a pressão de eleitores e consumidores sobre governos e empresas

Presidente colombiano Juan Manuel Santos concede entrevista à Reuters 30/7/2018 REUTERS/Carlos Julio Martinez (Carlos Julio Martinez/Reuters)
EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 26 de julho de 2020 às 18h36.

Última atualização em 26 de julho de 2020 às 21h36.

Depois de governar a Colômbia por oito anos, ganhar o Nobel da Paz pela negociação que encerrou o conflito com a guerrilha das Farc, Juan Manuel Santos abraçou a causa ambiental.

Ele é uma das referências mundiais que têm se reunido por videoconferência em um grupo dedicado a buscar soluções concretas para a Amazônia.

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No projeto, que reúne nomes da política, economia e cultura, estão também o economista Jeffrey Sachs e o fotógrafo Sebastião Salgado. Um dos caminhos para reduzir o desmatamento, acredita Santos, é a pressão de eleitores e consumidores sobre governos e empresas.

Isolado em Anapoima, município a 90 quilômetros de Bogotá, ele concedeu por vídeo esta entrevista, centrada em bioeconomia e geopolítica. Santos acredita que a pandemia, cujo estrago considera pequeno perto das consequências do aquecimento global, está movendo o ponteiro ideológico do mundo de volta para o centro.

Estadão/Broadcast - Grandes empresas, associações de fazendeiros e bancos têm se interessado pelo tema ambiental no Brasil. Uma razão é que a destruição ambiental pode trazer perdas econômicas mas esse risco não é novo. Por que atores tão ligados ao capitalismo agora defendem sustentabilidade?

Juan Manuel Santos - O mundo está se dando conta rapidamente da importância de políticas de sustentabilidade. Havia uma negação, que muitos líderes no mundo ainda cultivam. Mas as evidências estão nos mostrando que não apenas é um problema, mas uma urgência tomar decisões que permitam preservar o meio ambiente e a biodiversidade. As empresas estão sendo pressionadas a atuar nessa direção. É um bom sinal que muitas empresas em países em que o ambiente está sendo destruído escutem: "Se vocês continuarem destruindo, não compraremos seus produtos".

Há casos de empresas com desastres ambientais e poluição no histórico que associam seu nome a projetos ambientais e escondem o que importa. O cidadão já é capaz de detectar essas empresas?

Santos - Há empresas que realmente mudaram sua forma de pensar e estão se corrigindo. E tem outras que só estão querendo melhorar sua imagem e continuar em políticas não sustentáveis. Os cidadãos começam a diferenciar uma de outra. As empresas que realmente estão fazendo políticas sustentáveis daquelas que só querem melhorar sua imagem. É a cidadania que pressiona, no final.

Os países europeus estão verdadeiramente interessados em preservação ou citam o desmatamento alheio para manter subsídios históricos a sua agricultura?

Santos - Os países europeus, em sua maioria, são sim conscientes da necessidade de preservar o meio ambiente. Mas há aí uma injustiça histórica. Eles se desenvolveram destruindo o meio ambiente e agora querem impor a países que parem seu desenvolvimento. Temos de encontrar uma maneira de permitir o desenvolvimento desses países e ao mesmo tempo preservar. Mas acredito sim que a maioria dos países europeus está preocupada genuinamente com o que está ocorrendo no mundo com a mudança climática.

O pagamento de países ricos a nações em desenvolvimento que preservam é o sistema ideal?

Santos - Esse é um dos mecanismos. Essa pandemia, por sorte, está colocando a ciência acima do populismo, da ideologia. Se isso for transferido ao meio ambiente, poderemos acelerar as ações para parar o aquecimento global.

Governos populistas vinham conseguindo seguidores rebaixando a posição de cientistas em questões ambientais. A pandemia pode resgatar o peso da ciência?

Santos - Por sorte, a ciência volta a ser importante. Líderes e governantes precisam ter em conta a ciência para tomar suas decisões. É um dos efeitos positivos deste momento. O tipo de liderança que tem tido mais êxito no controle da pandemia é o de mulheres. Alemanha, Nova Zelândia, Noruega, Finlândia, Taiwan são liderados por mulheres. Países liderados por populistas autoritários geram desconfiança. É só olhar a diferença de resultados.

O radicalismo de parte dos ambientalistas empurrou uma parcela dos eleitores de centro à escolha de populistas de direita e até ultradireita. Em português, se cunhou a expressão 'ecochatos', que poderia ser traduzida ao espanhol como 'ecopesados'. Ambientalistas mais pragmáticos ajudariam?

Santos - Sem dúvida. Os ambientalistas mais pragmáticos são indispensáveis. Quando alguém é fundamentalista, muitas portas são fechadas a ele. Um ambientalista pragmático é o que mais necessitamos, por exemplo, para parar a destruição do Amazonas.

Neste contexto, é positivo o surgimento de figuras como Greta Thunberg?

Santos - Acho muito positivo, porque ela se transformou num símbolo. Quando figuras como Greta alertam para um problema, muitos começam a pressionar seus governos.

O sr. foi ministro de Defesa de um governo conservador num período duro da guerra contra as Farc. Chega ao poder, se converte em um presidente progressista e estimula a imagem de terceira via. Num mundo tão polarizado, é mais difícil alcançar consensos para garantir preservação?

Santos - O populismo, de esquerda ou de direita, é muito atrativo em determinada conjuntura, mas fatal no médio e longo prazo. A história o comprova. O importante é manter os diálogos para gerar uma massa crítica no centro. Mas, nesta polarização que vive o mundo, estamos começando a ver o pêndulo regressar para o centro.

O governo brasileiro rejeita o aquecimento global e, inicialmente, negou até o aumento do fogo na Amazônia. O enfraquecimento de organismos internacionais fez o isolamento internacional perder peso como ferramenta de pressão?

Santos - Me preocupa muito, me dói muito como latino-americano o que ocorre no Brasil. O que Bolsonaro faz sobre o meio ambiente e a ordem internacional multilateral, no longo prazo, prejudicará toda a América Latina. A pandemia mostra que falar e atuar só com base na intuição e na ideologia não traz bons resultados.

O isolamento brasileiro pode favorecer outros países da região, como a Colômbia?

Santos - Pelo contrário. É triste para os latino-americanos ver os dois países mais importantes da América Latina nas mãos de populistas. O Brasil, com Bolsonaro, e o México, com López Obrador. Um de direita e o outro de esquerda. Por isso, a América Latina perdeu espaço no mundo inteiro. É inacreditável que neste momento em que a América Latina precisa de financiamento, não haja uma só voz reclamando o financiamento especial que está sendo dado ao resto do mundo. É incrível também que a América Latina perca a presidência do BID, que durante 60 anos foi a única instância internacional com um representante latino-americana que falava de igual para igual com o FMI e o Banco Mundial. Donald Trump propôs um candidato americano e é incrível que muitos países latino-americanos estejam apoiando esse candidato americano (o Brasil é um deles).

No Brasil, a ministra da Agricultura incorporou o discurso ambiental e alertou que a destruição da Amazônia pode prejudicar exportações, enquanto o ministro do Meio Ambiente tem o discurso mais duro, de oposição a ONGs. É o contrário do que costuma ocorrer. Como se vê isso fora?

Santos - Na Colômbia e no resto da América Latina, não conseguimos realmente entender isso. O ministro do Meio Ambiente sendo menos ambientalista que a ministra da Agricultura. São as contradições produzidas pelos regimes populistas. Demonstra como regimes populistas são contraproducentes.

Trump foi um dos primeiros a se colocar fora do Acordo de Paris e contrariar conceitos ambientais que pareciam senso comum. Logo foi seguido por outros líderes. Se Trump não se reeleger, o pêndulo do qual o sr. falou pode passar mais rapidamente ao centro, influenciar outros países?

Santos - Se Trump perder, e tudo indica que isso vai ocorrer, o governo de Joe Biden vai recuperar os espaços que Trump fechou. O sistema multilateral que os EUA construíram depois da Segunda Guerra era conveniente a países como Colômbia e Brasil, porque a lei da selva protege só os mais poderosos. Nós, Brasil, Colômbia e América Latina em geral, temos muito mais a perder do que a ganhar sem regras do jogo internacionais. Biden é partidário de um sistema multilateral, diferente do que Trump quis impor.

Biden esteve muitas vezes na América Latina, conhece o continente. Isso facilitaria o contato com a região?

Santos - Com certeza. A relação de Trump com a região foi quase de desprezo.

Antes da covid, pesquisas mostravam um cenário favorável à reeleição de Trump, pela economia sobretudo. Há quem veja que a pandemia seria uma reação do planeta a líderes como ele. O que acha?

Santos - Não estou tão convencido que a economia iria reelegê-lo, ainda que teria muito mais possibilidade. A pandemia teve dois efeitos nos EUA. Um é o econômico, nisso foi muito negativa. O segundo é a quantidade de erros de Trump na resposta à pandemia. Isso até fez com que perdesse apoio em seu próprio partido. As bases que pareciam sólidas já não são tão sólidas.

Em regiões como o Catatumbo, na fronteira com a Venezuela, restam guerrilhas que mantêm poder sobre parte do território e isso tem conexão com a questão ambiental. Por que é tão difícil conseguir que se plante na área cultivável algo que não seja coca? O sr. teve oito anos no poder, por que não resolveu?

Santos - Ainda como presidente, propus uma mudança radical na política internacional contra as drogas. Chegamos a 50 anos de guerra às drogas e perdemos. Sugiro tirar a proibição. A Colômbia foi o país que pagou o mais alto preço na luta contra as drogas e ainda somos os exportadores número 1 de cocaína. Precisamos mudar a estratégia, mas isso não pode ser feito por um só país. Além disso, o efeito do narcotráfico na ecologia é grande. Parte importante do desflorestamento é promovida pelos narcotraficantes. Quando eles são retirados de áreas em que estavam, entram na floresta para produzir coca um, dois ou três anos, e seguem lá.

Por que é tão difícil implementar medidas concretas quando se está no poder?

Santos - Governar é uma sinfonia. Tem de colocar todo mundo em sintonia para conseguir objetivo. Isso não é fácil. Se enfrenta muitos opositores que querem que não se tenha êxito. Lidar com eles e logo coordenar as forças é difícil. O mais importante aspecto da liderança é ter empatia. Se colocar na pele das pessoas, entender suas angústias.

O que pretendia ter feito na área ambiental e não fez?

Santos - Todos os líderes, se somos honestos e temos uma dose de humildade, olhamos para trás e nos frustramos. Reduzimos a desigualdade na Colômbia, mas segue sendo muito grande, vergonhosa. Gostaria de ter protegido melhor o meio ambiente, ainda que tenhamos multiplicado por 10 as áreas protegidas. A pobreza foi reduzida em oito anos quase tanto quanto o Brasil em determinado momento. E agora essa pandemia vai nos fazer recuar 10 ou 20 anos.

A guerrilha que o sr. ajudou a debelar começou com a luta por terras cultiváveis e terminou desmatando para plantar coca. Sustentabilidade traz paz?

Santos - Sustentabilidade é o que vai nos permitir seguir vivendo. Estamos indo para o precipício. A pandemia não é nada comparado ao que a humanidade pode sofrer se não tomarmos decisões muito drásticas. A pandemia deve nos abrir os olhos para mudar paradigmas de desenvolvimento, carências que há no mundo inteiro mas sobretudo da América Latina: desigualdade, má distribuição da riqueza e da terra. Neste momento, estamos destruindo o mais importante que temos na América Latina, a biodiversidade.

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