O poço é mais fundo do que pensava, diz ex-secretário sobre Saúde do Rio
Para o ex-secretário estadual de Saúde, Fernando Ferry, uma nova onda de protestos de servidores vai explodir nas próximas semanas
Agência O Globo
Publicado em 23 de junho de 2020 às 06h49.
Secretário estadual de Saúde por apenas 36 dias, Fernando Ferry anunciou ontem seu pedido de demissão. Ao GLOBO, afirmou que nunca viu “um descalabro administrativo” tão grande e que “o poço é mais fundo do que pensava”. Segundo ele, que era diretor do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle até assumir o cargo no governo, uma nova onda de protestos de servidores vai explodir nas próximas semanas, por conta de contratos que o estado deixou de renovar com organizações sociais que administram dez unidades de saúde. É o segundo titular da pasta a deixar o governo em meio à pandemia do coronavírus. O anterior, Edmar Santos, saiu após denúncias de fraudes envolvendo contratos para construção de hospitais de campanha e compra de respiradores.
Quais motivos fizeram o senhor pedir exoneração da Secretaria estadual de Saúde 36 dias depois de ser nomeado para o cargo?
É um descalabro administrativo muito grande, que nunca vi na minha vida. É muita improbidade. Não vou sujar o meu CPF. Tem uma série de coisas que fizeram na gestão passada e que, no momento, não dá para resolver de jeito nenhum juridicamente. Problemas deixados pelo (ex-subsecretário executivo de Saúde) Gabriell Neves, que está preso, pelo Fred (Carlos Frederico Duboc, ex-superintendente de Orçamento e Finanças), que está preso. E não sei se mais alguém vai ser preso. Até resolver todos os imbróglios administrativos iria demorar mais uns dois ou três anos. Pensei: “Até um certo tempo, a culpa é da gestão passada, mas, depois de um certo tempo, a culpa passa a ser do gestor que assumiu.” Fiquei com medo de responder na Justiça. Quando o gestor responde na Justiça, quem paga o advogado é o gestor.
Pode exemplificar a “série de coisas” impossível de ser solucionada no momento?
São principalmente contratos com organizações sociais que venceram e o governo não pagou. Nas próximas semanas, protestos de servidores da Saúde vão se agravar. São dez unidades de saúde com contratos vencendo. Muitos profissionais ficarão sem pagamento. Perguntei à Procuradoria Geral do Estado se eu poderia pagar, mas informaram que eu incorreria em improbidade administrativa. Eu pedi auxílio ao Ministério Público estadual, mas eles disseram: “Desculpa, porém essa decisão administrativa é do secretário.”
E isso em meio à pandemia de coronavírus. O cenário é crítico, então?
Hoje a gente esbarra num problema da falta de equipamentos, de respiradores, de remédio. Eu vi que o poço é muito mais fundo do que pensava, por conta desse descalabro administrativo todo. Para se ter uma ideia, marquei uma reunião com representantes do sindicato dos enfermeiros para ver uma questão de 240 profissionais que foram demitidos, e, no dia da reunião, o meu superintendente de Finanças foi preso. Eu fiquei muito assustado. Eu falei para a mulher do sindicato: “Desculpa, o Fred foi preso. O que você quer que eu faça?” No dia seguinte, ela pegou um carro de som e foi para a frente da secretaria. Depois, descobri que ela é filiada a um partido político e vai ser candidata a vereadora. Tem um jogo político muito forte, e eu não sou político. Sou um quadro técnico.
Em sabatina na Assembleia Legislativa (Alerj) na semana passada, o trabalho da Secretaria de Saúde foi muito contestado. Isso pesou?
Quando vejo o furacão político no qual 69 deputados votam contra o governador, falei: “Vou ser trucidado”. Eu estava há um mês no cargo e falavam comigo como se eu estivesse há quatro anos. E a gente está em um ano eleitoral. Então pensei: “Os desafetos do Witzel vão me fritar, pô!”. Não sou político, não tenho preparo para isso. Os deputados querem cassar o mandato dele.
O clima com Witzel azedou depois de o senhor receber na secretaria o deputado bolsonarista Anderso Moraes (PSL), um dos principais opositores do governador na Alerj...
Esse Anderson apareceu na secretaria sem marcar. Eu não vou receber o deputado? Ofereci um café a ele. Conversamos de forma cordial. Eu nem sabia direito quem era ele. Depois que fui saber que era do PSL e ficava batendo no governador. Ele queria indicar duas pessoas para trabalhar lá, e falei para ele: “Me dá os currículos que estou fazendo análises”. Foi só isso.
O senhor sofreu pressão do governo para assinar contratos que julga ilegais? Comenta-se que pessoas ligadas ao Pastor Everaldo, presidente do PSC, partido de Witzel, tentaram interferir na sua atuação à frente da pasta.
Não teve nenhuma pressão nesse sentido. Só vi o Pastor Everaldo uma vez, em 2018, durante a campanha do governador Witzel. Na época, eu estava na direção do Hospital Universitário Gaffrée Guinle. Eu costumo encontrar políticos para pedir dinheiro, via emendas parlamentares, para o hospital. Mas não tenho vinculação política com ninguém.