Internet para alunos da rede pública custaria o mesmo que perdão a igrejas
Projeto do Congresso com recursos para pacotes de internet a alunos foi vetado pela Presidência. Na semana passada, governo perdoou dívidas de igrejas com custo estimado de 1,4 bilhão de reais
Carolina Riveira
Publicado em 21 de março de 2021 às 08h01.
Última atualização em 22 de março de 2021 às 12h06.
Um ano após o começo da pandemia, o problema da falta de internet a alunos pobres no Brasil ainda não começou a ser endereçado nacionalmente. O debate ganhou novo capítulo nesta sexta-feira, 19, quando o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente um projeto de lei aprovado peloCongresso que custearia serviços de internet a parte dos estudantes das escolas públicas.
O veto pegou de surpresa os deputados envolvidos no PL e os secretários de educação, segundo fontes ouvidas pela EXAME. Apresentado em junho de 2020, o PL é de autoria do deputado Idilvan Alencar (PDT-CE), junto a um grupo de mais de 20 deputados. O texto foi aprovado no fim do ano na Câmara e em fevereiro no Senado, já sob direção do presidente Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
O custo estimado do PL é de 3,5 bilhões de reais, suficiente para atender 18,6 milhões de alunos (todos os alunos no CadÚnico) e cerca de 1,6 milhão de professores da rede pública. Com o valor previsto, os beneficiários seriam contemplados com pacotes de internet móvel por seis meses. Para os 3,5 milhões de alunos do ensino médio seria incluída ainda a aquisição de tablets.
O projeto incluiu também medidas para possibilitar doações de empresas privadas, reduzindo a insegurança jurídica, segundo os autores.
Os motivos do veto presidencial, embasados pelos ministérios da Educação (MEC) e da Economia, são sobretudo dois: por parte da Economia, a questão fiscal, citando a regra de ouro e a Lei de Responsabilidade Fiscal; pelo lado da Educação, o fato de que o MEC, segundo o texto do veto, estuda fazer programa semelhante no futuro, que batizará de Programa Brasil de Aprendizagem.
A deputada Tabata Amaral (PDT-SP), relatora do projeto na Câmara, diz que o veto soa como uma "piada de mal gosto". "Eu tenho muita dificuldade para apontar o que o MEC fez nesse último ano. O ministro [Milton Ribeiro] já se pronunciou várias vezes dizendo que não era papel dele coordenar os esforços na pandemia. E agora, depois de um ano, ele diz que vai 'começar' a pensar em um projeto?", diz.
A relatora afirma que o PL da Câmara tramitou por quase um ano, e, neste período, o MEC não apresentou medidas próprias.
Questionado pela reportagem sobre o prazo de implementação do citado Programa Brasil de Aprendizagem, o MEC não se posicionou até a publicação desta reportagem. Em nota posterior, nesta segunda-feira, 22, a pasta esclareceu que o programa "está em fase de desenvolvimento" e que, "tão logo seja lançado, poderão ser esclarecidas dúvidas sobre sua abrangência e funcionamento" ( veja nota na íntegra ). O MEC disse também que o objetivo do PL de levar internet aos alunos é "meritório", mas tem problemas para execução.
Prioridades questionadas
Além de um futuro projeto a ser criado pelo MEC, o governo aponta no veto que já há programas federais de conectividade, citando dois projetos de banda larga apresentados nas gestões Lula e Temer. Ambos, no entanto, têm como foco fornecimento de internet às escolas, num contexto pré-pandemia, mas não equacionam o cenário da quarentena, em que os alunos acessam as aulas em casa.
Nas redes sociais, críticos têm feito desde a sexta-feira comparações frequentes do veto com outras medidas recentes do governo, como o perdão à dívida de igrejas, na semana passada. A medida custará estimados 1,4 bilhão aos cofres públicos até 2024, o que pagaria todo o custo de internet aos alunos no PL (ou cerca de 40% do valor total do projeto, se incluídos os tablets, como mostra o gráfico abaixo).
Com outra medida recente, a isenção de impostos de importação para armas, o Executivo abriu mão de arrecadar montante que pode chegar a 1 bilhão de reais nos mesmos quatro anos.
Embora os projetos não sejam necessariamente comparáveis (o PL de internet seria pontual, válido somente para os próximos 12 meses), o simbolismo não pegou bem. Durante a pandemia, o MEC tem sido criticado pela ausência de iniciativas em meio à crise educacional.
O Consed, grupo dos dirigentes de educação estaduais, se reuniu neste mês com o ministro da Educação, Milton Ribeiro, antes do veto ao PL, para pedir soluções à conectividade dos alunos. Vitor de Angelo, que é presidente do Consed e secretário de Educação do Espírito Santo, diz ter sido bem recebido pelo ministro, mas classificou o veto à iniciativa do Congresso como "frustrante".
"O governo é rápido pra fazer muitas coisas, mas não tem a mesma celeridade e o mesmo empenho pra fazer outras, que não há dúvidas que são também extremamente importantes", diz. "Faltou sensibilidade para compreender a urgência."
Em sua primeira entrevista ao assumir o cargo, já com as escolas fechadas, o ministro Ribeiro disse que boa parte dos alunos têm celular e que não é papel do MEC oferecer internet ou coordenar outros esforços para conter a crise educacional do coronavírus.
Na ocasião, a fala foi criticada por estar em desacordo com a Constituição, que aponta que a União, por ter mais recursos oriundos de impostos, tem papel de apoiar ações e garantir equidade entre os estados.
O PL com os recursos para internet deve voltar ao debate no Congresso nas próximas semanas. Algumas bancadas já se manifestaram a favor de derrubar o veto, o que precisaria de maioria simples dos votos em sessão conjunta entre Câmara e Senado.
Em resposta à EXAME sobre o veto, o MEC defendeu que o Congresso aprove a Política de Inovação Conectada, do governo Temer, que "possui princípios mais abrangentes que asseguram a inserção da tecnologia como ferramenta pedagógica de uso cotidiano nas escolas públicas", na avaliação da pasta. Sobre se os prazos para implementar novos programas e se não poderiam atrasar a oferta diante da necessidade imediata dos alunos, o Ministério não respondeu.
Cada um por si
O PL aprovado pelo Congresso prevê quatro possíveis fontes de recursos, sendo a principal delas o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), além de eventuais outras frentes, como os gastos emergenciais do governo em meio à pandemia, que superaram 600 bilhões de reais no ano passado.
No Ministério da Economia, a principal justificativa apontada para vetar a lei de conectividade é desacordo com a responsabilidade fiscal. O governo afirma que os 3,5 bilhões adicionais incorreriam no descumprimento do teto de gastos e da meta de déficit primário enviada do Orçamento.
Em nota à EXAME, o Ministério da Economia afirma que "o PL acarretará aumento de despesa", cujas compensações "não são integralmente apresentadas" ( veja na íntegra ). Sobre os gastos emergenciais da pandemia, a pasta diz que o decreto de calamidade pública que permitia despesas extras terminou em dezembro passado.
Lucas Hoogerbrugge, líder de Relações Governamentais do Todos Pela Educação e do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais, chamou a justificativa do veto de "extremamente frágil". "O governo federal não cumpre seu papel e ainda atrapalha muito."
Na pandemia, boa parte dos estados e municípios já tem feito programas para oferecer internet, com recursos próprios. O modelo de contratação de dados sugerido no PL da conectividade, por exemplo, é embasado no que o estado do Maranhão vem aplicando — e que foi considerado o formato de melhor custo-benefício.
Mas em meio à queda da arrecadação com a crise, estados têm tido dificuldade para concretizar e ampliar os programas. Mesmo estados com iniciativas de internet mais consolidadas não têm conseguido investir também nas redes municipais, que ficam a cargo das Prefeituras (estas, com ainda menos recursos).
O IBGE aponta que mais de 6 milhões de alunos matriculados não tiveram atividades acadêmicas em novembro, nem mesmo de forma remota. A evasão de alunos no ensino médio pode ter chegado a 11% no ano passado, segundo pesquisa do DataFolha.
Mesmo com alguma reabertura parcial das escolas neste ano, educadores já projetam que o ensino híbrido (com mescla entre aulas presenciais e online) seguirá essencial, diante da incerteza sobre o fim da pandemia.
Neste cenário, a principal argumentação dos defensores de uma lei nacional de apoio à conexão para os alunos é o superávit do Fust, uma vez que a função do fundo é ampliar serviços de telecomunicações aos brasileiros.
Até 2016, segundo o Tribunal de Contas da União, menos de 0,002% do arrecadado pelo Fust serviu a seu objetivo, e a maior parte tem sido desvinculada pelo Executivo para outros fins. O recurso do Fust e outros fundos superavitários é tema de disputa há tempos: na PEC Emergencial aprovada neste ano, ficou decidido que o governo também poderá, em dois anos, usar o dinheiro de fundos para abater a dívida da União.
Angelo, do Consed, diz que a preocupação fiscal é importante, mas criticou o fato de que o governo ajudou a aprovar neste mês mais de 40 bilhões de reais para o auxílio emergencial. "Estamos falando de 3,5 bilhões num projeto que vai impactar milhões de alunos, e de um fundo que tem bilhões de reais em superávit. Vamos usar o argumento da responsabilidade fiscal e dizer, então, que cada aluno que siga à sua própria sorte?"
Outro argumento usado pelos defensores do PL é que o valor, que seria repassado aos estados, seria pago somente uma vez, não criando, portanto, um gasto recorrente nas despesas.
Sobre a adequação do projeto ao horizonte de responsabilidade fiscal, a deputada Tabata Amaral diz que dedicou "muitas semanas" antes de apresentar o relatório para conversar com o Executivo e adequar o texto, e que não foi procurada pelo governo antes do veto. Uma das alterações feitas na relatoria foi a redução da abrangência do PL, fazendo o custo cair ante os 26 bilhões de reais propostos pelos autores.
Falta tudo
O valor sugerido no projeto do Congresso está em linha com estudos recentes sobre o tema. Em nota técnica, o Ipea concluiu que, para ampliar a conectividade aos alunos na rede pública sem acesso à internet, seriam necessários cerca de 3,8 bilhões de reais em compra de equipamentos e dados móveis.
Dos seis milhões de alunos sem acesso estimados pelo Ipea para o cálculo, há maior proporção de pretos, pardos e indígenas, com entre 30% e 40% nesse grupo estando sem internet, enquanto entre brancos e amarelos a taxa cai para menos de 15%.
Os estados com mais alunos sem conexão estão nas regiões Norte e Nordeste, ou longe das capitais. Mas mesmo os estados mais ricos ou áreas urbanas enfrentam o problema: São Paulo, que tem o maior produto interno bruto da federação, é o quinto estado com mais alunos sem acesso, segundo os dados de 2018 do IBGE usados pelo Ipea.
Nacionalmente, metade dos alunos que moram em favelas (muitas em grandes capitais) também estão sem estudar na pandemia, a maior parte por problemas de acesso à internet, segundo pesquisa de novembro do DataFavela.
Como mostrou reportagem daEXAME em 2020, além da conexão, alunos sofrem também com a falta de equipamento. Muitos têm de emprestar o celular dos pais, de modo que frequentemente não podem assistir aulas enquanto os parentes estão no trabalho. Mesmo para quem tem aparelho próprio, a tela pequena do celular dificulta visualizar as aulas ou exercícios para os estudos. Além de chips de internet, estados têm usado medidas como aulas pela TV pública aberta e até pelo rádio.
Resolver essas lacunas custará dinheiro e esforços, mas o preço a se pagar pela inércia também é alto. Estudo do economista Ricardo Paes de Barros no ano passado estima que o país perde mais de 214 bilhões de reais por ano com alunos de 16 anos que deixam a escola. O valor vem dos salários mais baixos que ganham os jovens sem formação, menor contribuição à economia do país, qualidade de vida mais baixa e maior envolvimento em crimes. O aumento da evasão gerado pela pandemia pode piorar essa conta.
Enquanto isso, o avanço do coronavírus, com mais de 2.000 mortes por dia no Brasil, deixa claro que será necessário continuar em 2021 a adaptação da educação para o cenário de pandemia. Além do aparato tecnológico, será preciso investir em infraestrutura física das escolas para uma volta às aulas que seja mais segura. Para chegar lá, o plano não pode ser "cada estado por si", dizem os especialistas.
"Qualquer investimento extra em infraestrutura necessita de financiamento e é primordial que haja apoio técnico e financeiro do governo federal", diz Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Pellanda diz que são medidas similares às necessárias para a saúde, com estados requisitando ações nacionais no combate à pandemia.
Seja por meio de estados, municípios ou União, o Brasil precisa evitar a todo custo perder um novo ano letivo.
*A reportagem foi atualizada na segunda-feira, 22 de março, para incluir o posicionamento do Ministério da Educação sobre a implementação de novos projetos, enviado após a publicação da reportagem.
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